打印全文
Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 19 / 2006

Recorrente: Secretário para a Segurança
Recorrido: A







1. Relatório
   A veio interpor recurso contencioso contra o Secretária para a Segurança, tendo por objecto o despacho deste que lhe aplicou a pena disciplinar de aposentação compulsória.
   Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.° 140/2005, foi julgado procedente o recurso contencioso e anulado o acto administrativo.
   Deste acórdão recorreu o Secretário para a Segurança para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O regime de dilação por interrupção dos prazos prescricionais prevista no art.º 113.º do Código Penal é aplicável ao processo disciplinar ex vi art.º 277.º do ETAPM.
   2. No caso subjudicibus é-lhe supletivamente aplicável o disposto na al. a) do n.º 1 e n.º 3 do referido artigo, assim se dilatando o prazo prescricional para, no mínimo, 7 anos e meio.
   3. Tempo esse que ainda não decorrera sobre a prática do último acto de instrução, sequer sobre a ocorrência dos factos, à data da decisão punitiva, contida no Despacho n.º 20/SS/2005 de 2 de Maio.
   4. Ao recusar a aplicação supletiva dos conteúdos normativos referidos, expressamente invocados pela entidade recorrida, o dito acórdão está eivado do vício de violação de lei, que conduz, à sua anulação, no que se funda o presente recurso jurisdicional (art.º 152.º do CPAC).”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso e ordenada a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância para apreciar os demais vícios invocados pelo recorrente do recurso contencioso.
   
   O recorrido apresentou as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. A norma do n.º 3 do art.º 113.º do Código Penal não alarga, nem visa alargar, o prazo normal de prescrição, mas, antes, estabelece, para a hipótese da ocorrência de várias interrupções, o prazo máximo findo o qual o processo penal já não pode ter lugar;
   2. Foi para impedir interrupções infinitas e novos decursos de prazos que o legislador estabeleceu, em proveito do agente, que “a prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início (...) tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade ... ”;
   3. Não é legítimo o recurso às normas do art.º 113.º do CP, porque não se verifica, em matéria de interrupção do prazo prescricional, questão jurídica carecida de regulamentação jurídica;
   4. Nunca se poderia aplicar ao caso dos autos a norma do n.º 3 do art.º 113.º, com o particular sentido que o recorrente lhe dá, porque não se verificou o pressuposto das várias interrupções do prazo prescricional que a lei exige;
   5. A pretensão do recorrente não respeita a autonomia e independência do processo disciplinar relativamente ao processo penal;
   6. O que o recorrente faz é levar o mais longe que lhe é possível o esforço para salvar um procedimento prejudicado por incidências estranhas, esquecendo que, muitas vezes, são estas incidências estranhas que impõem a solução da prescrição do mesmo procedimento;
   7. O douto acórdão recorrido, ao dar por verificado o vício de violação de lei por violação as normas do n.º 2 do art.º 289.º do ETAPM e da al. d) do n.º 1 do art.º 110.º conjugada com a do n.º 1 do art.º 335.º ambas do CP, e, concomitantemente, ao anular o despacho punitivo, explicitou a solução que decorre da lei, pelo que não padece de qualquer vício;
   8. O prazo da prescrição aplicável ao caso sub judice é de 5 anos e não 6 anos, dado não se aplicar a norma da al. h) do n.º 2 do art.º 315.º do ETAPM;
   9. O acórdão recorrido viola esta norma, quando a faz aplicar numa situação em que manifestamente ela não se aplica, por não se verificarem os factos que definem a respectiva hipótese normativa.”
   Pedindo que seja negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido.
   
   O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o parecer que consiste essencialmente nos seguintes aspectos:
   - Não é aplicável supletivamente ao presente caso o art.º 113.º, n.ºs 1, al. a) e 3 do Código Penal por inexistência de casos omissos, lacunas, falhas ou falta de disposição sobre a prescrição no processo disciplinar;
   - Pois, no art.º 289.º, n.º 3 do ETAPM está previsto o regime especial de interrupção da prescrição do procedimento disciplinar;
   - É pacífico que o prazo de prescrição para o presente caso é de seis anos, ao abrigo do art.º 45.º do Decreto-Lei n.º 61/90/M, antiga Lei Orgânica da Polícia Judiciária, vigente na altura dos factos;
   - Decorreu já mais de seis anos entre a prática do último acto de instrução, a notificação edital do arguido, e a instauração do novo processo disciplinar contra o arguido, pelo que se deve julgar extinto, por prescrição, o procedimento disciplinar (art.º 286.º, n.º 1 do ETAPM);
   - Mesmo que fosse aplicável o art.º 113.º do Código Penal, nomeadamente o seu n.º 3, já decorreu, de qualquer modo, o prazo de prescrição;
   - Com esta última disposição, o legislador não pretende alargar o prazo normal de prescrição, mas antes estabelece uma limitação, em benefício do arguido, para o caso de se sucederem vários factos interruptivos;
   - Deve-se julgar improcedente o presente recurso.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Tribunal de Segunda Instância deu como provados os seguintes factos:
   “A, subinspector da Polícia Judiciária de Macau, era arguido do processo disciplinar n.° 3/1998 por indiciada prática de factos atinentes a violação de segredo profissional, tendo sido notificado por via de editais de 12 de Maio de 1998 para ser ouvido no âmbito desse processo.
   Posteriormente, e por provados essencialmente tais factos reportados a 10 de Fevereiro de 1998, acabou por vir a ser condenado como autor material de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo art.º 335.º, n.º 1, do Código Penal de Macau (CPM), cometido em 10 de Fevereiro de 1998, por decisão judicial emitida no dia 1 de Abril de 2004 em sede de recurso penal, já transitada em julgado.
   Entrementes, devido ao extravio do dito processo disciplinar, foi instaurado, em 30 de Junho de 2004, um novo procedimento disciplinar, com o n.º 10/2004, em jeito da reforma daquele, que culminou na emissão do seguinte acto punitivo (ora recorrido) pelo Senhor Secretário para a Segurança (entidade ora recorrida):
   ‘Despacho n.º XX/SS/2005
   Assunto: Processo Disciplinar n.º 010/2004 (Polícia Judiciária)
Arguido: Subinspector, A
   1. Decorreram mais de 30 dias sobre o pedido de cooperação da Polícia Judiciária de Portugal quanto à inquirição naquele País dos ex-inspectores B e C. A prova pretendida fazer, tal como já se retirava do meu Despacho de fls. 152 e 153, em nada viria a contribuir para o melhor esclarecimento das questões que se patenteiam no momento de decidir. Na verdade, existe nos autos matéria suficiente para se avaliar da produção dos efeitos pretendidos com qualquer uma das diligências, designadamente a ocorrência, ou não, da extinção do procedimento disciplinar, o que dispensa a inquirição do Inspector C, bem como a abonação expectável da inquirição do Inspector B, o que se dá como adquirido nos autos em face da prova já produzida, e não deixará de se reflectir na decisão.
   Dispenso, assim, a realização das diligências requeridas, passando a decidir.
   2. Nos autos de processo disciplinar supraidentificado resulta como provada a matéria da acusação de fls. 53-56, não apenas pela confissão do arguido, A, mas também pela consolidação que deles faz a sentença condenatória do Tribunal de Competência Genérica de Macau, transitada em julgado após ter sido, pelo Tribunal de Segunda Instância, negado provimento a recurso dela interposto.
   Sem prejuízo do que mais abunda da acusação de fls. 53-56, que aqui se dá por reproduzida e integrada quanto aos factos nela descritos, a conduta infractora consubstancia-se na obtenção não autorizada por quem para tal teria competência – sendo que o arguido dela não estava dotado–, entrega e posterior junção a um processo de recurso hierárquico em que o arguido era recorrente, de um documento constante de um processo de inquérito de natureza criminal, relativo a um crime de homicídio, processo este protegido pelo segredo de justiça.
   Com esta conduta violadora do segredo de justiça, crime pelo qual foi condenado, como acima se refere, na pena de 60 dias de multa, com a alternativa de 40 dias de prisão, o arguido violou os deveres de lealdade e de sigilo a que aludem as alíneas d) do n.º 2, com referência ao n.º 6, e e) do mesmo n.º 2 com referência ao n.º 7, tudo do artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração e Função Pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro e, ainda, o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 60/91/M, de 24 de Setembro (antiga lei orgânica da Polícia Judiciária), a que hoje corresponde o n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 27/98/M, de 29 de Junho.
   Tal conduta, mormente no que tange à violação do dever de sigilo (segredo profissional), inviabiliza a manutenção da relação juridico-funcional, não se oferecendo as condições de manutenção da confiança que o artigo 315.º, n.ºs 1 e 2 alínea h) do citado ETAPM tutela, mormente quando estamos perante uma factualidade protagonizada por um funcionário investido em funções de investigação criminal, a quem é exigida uma especial diligência e responsabilidade na protecção do segredo de justiça.
   Nenhuma das circunstâncias taxativamente elencadas no artigo 283.º do ETAPM agravam a conduta do arguido, todavia, favorecem-no as atenuantes inscritas nas alíneas a) – prestação de mais de 10 anos de serviço classificado de Bom, uma vez que a lei não faz referir tal atenuante aos últimos dez anos e, se o fizesse, jamais poderia imputar-se ao arguido a falta de classificação a partir do ano de 1996 – e b), relativa à confissão expontânea dos factos independentemente da sua relevância para a descoberta da verdade, ambas do artigo 282.º do mesmo estatuto, bem como a atenua o reconhecimento de que agiu motivado por necessidade de provar o mérito da sua prestação funcional – alínea j) do mesmo artigo.
   Assim, ponderando a gravidade dos factos e o circunstancialismo atenuante da conduta, bem como o facto de o arguido à data da prática da falta contar, já, mais de 15 anos de serviço efectivo, não acompanho a proposta de demissão, antes punido arguido, subinspector, da Polícia Judiciária, A, nos termos dos n.ºs 1 e 2 alínea h) e n.º 3 do artigo 315.° do citado ETAPM, com a pena de aposentação compulsiva, o que faço de acordo com a competência que me advem da Ordem Executiva n.º 13/2000.
   Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 02 de Maio de 2005
   O Secretário para a Segurança
   [...]”
   
   
   2.2 A prescrição do procedimento disciplinar
   O recorrente considera que é aplicável o art.º 113.º, n.ºs 1, al. a) e 3 do Código Penal (CP) ao presente caso, porque a notificação do arguido para o interrogatório interrompe o prazo de prescrição, com o aumento de metade do seu período máximo, ou seja, três anos no caso ou, se a infracção não fosse considerada de grave, dois anos e meio. Assim, o prazo de prescrição só ocorreria pelo menos sete anos e meio sobre os factos que ainda não completou à data da prolação do despacho objecto do recurso contencioso.
   
   A questão suscitada no presente recurso jurisdicional prende-se com a interpretação e aplicação das referidas normas ao procedimento disciplinar contra o ora recorrido.
   Dos factos provados resulta nomeadamente o seguinte:
   - O recorrido era arguido do processo disciplinar n.° 3/1998 por indiciada prática de factos atinentes a violação de segredo profissional, tendo sido notificado por via de editais de 12 de Maio de 1998 para ser ouvido no âmbito desse processo;
   - No respectivo processo penal, foi condenado definitivamente pela prática de um crime de violação de segredo de justiça previsto no art.º 335.º, n.º 1 do CP;
   - Devido ao extravio do dito processo disciplinar, foi instaurado, em 30 de Junho de 2004, um novo procedimento disciplinar, com o n.º 10/2004, contra o recorrido que culminou com o acto recorrido de lhe aplicar a pena de aposentação compulsiva.
   
   Está em causa a violação de segredo profissional relacionado com um processo penal de inquérito, que constitui infracção disciplinar muito grave, segundo a determinação do art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 61/90/M, a antiga Lei Orgânica da Directoria da Polícia Judiciária de Macau, vigente na altura dos factos, que continha a remissão para o n.º 2 do artigo 315.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), cuja al. h) prevê exactamente o caso de violação de segredo profissional.
   Ainda ao abrigo do art.º 45.º do mesmo Decreto-Lei:
   “O procedimento disciplinar prescreve nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, excepto quanto às infracções muito graves, cujo procedimento prescreve passados 6 anos.”
   
   Nos termos do art.º 289.º, n.ºs 1 e 2 do ETAPM:
   “1. O procedimento disciplinar prescreve passados 3 anos sobre a data em que a falta houver sido cometida.
   2. Se o facto qualificado de infracção disciplinar for também considerado infracção penal e os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a 3 anos, aplicar-se-ão ao procedimento disciplinar os prazos estabelecidos na lei penal.”
   A infracção disciplinar imputada ao recorrido corresponde ao crime de violação de segredo de justiça previsto no art.º 335.º, n.º 1 do CP e é punível com pena de prisão de dois anos. Assim, o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal é de cinco anos, conforme o art.º 110.º, n.º 1, al. d) do CP.
   
   Comparados os dois prazos de prescrição, é de considerar o prazo de seis anos previsto no art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 61/90/M acima referido. Não é de chamar a posterior lei orgânica da Polícia Judiciária, o Decreto-Lei n.º 27/98/M, pois o diploma, que entrou em vigor em 1 de Julho de 1998, por seu art.º 50.º, alargou o prazo de prescrição de infracções disciplinares muito graves para dez anos, manifestamente menos favorável ao recorrido.
   
   Voltando ao referido art.º 289.º do ETAPM, prescreve assim o seu n.º 3:
   “3. Se antes do decurso do prazo prescricional referido no n.º 1 for praticado relativamente à infracção qualquer acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo, a prescrição conta-se desde o dia em que tiver sido praticado o último acto.”
   Segundo os factos provados, temos por assente que o último acto praticado no primeiro processo disciplinar de n.º 3/1998 era a notificação edital do recorrido datada de 12 de Maio de 1998. E é este facto que deve ser considerado como o reinício do prazo de prescrição. O art.º 113.º, n.º 1, al. a) do CP invocado pelo recorrente conduz ao mesmo efeito.
   Contando o prazo de prescrição de seis anos a partir desta data, ele completou no dia 12 de Maio de 2004, já anterior à instauração do segundo processo disciplinar n.º 10/2004 em 30 de Junho de 2004 e à prática do acto punitivo de 2 de Maio de 2005.
   
   Ao contrário do que entende o recorrente, o n.º 3 do art.º 113.º do CP não faz prolongar o prazo de prescrição com o acrescimento de metade do prazo. A norma tem o seguinte teor:
   “3. A prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade; mas quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos, o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.”
   Sem entrar aqui na discussão sobre a aplicabilidade desta norma ao procedimento disciplinar, por se mostrar irrelevante para a decisão do presente recurso, entendemos que aquilo que se determina nesta norma é o estabelecimento de um prazo de limite máximo para a prescrição de procedimento criminal, destinado ao caso de verificação sucessiva de interrupções da prescrição, mas não o aumento automático de metade do prazo quando se verifica uma interrupção do prazo. O objectivo desta norma é para evitar o prolongamento infinitivo do prazo de prescrição quando aparecer várias interrupções.
   Assim, continua a ser válido o prazo de seis anos para a prescrição do procedimento disciplinar relativo à violação do segredo de justiça praticada pelo recorrido. Uma vez que o acto recorrido foi praticado já depois de decorrido tal prazo, é de manter a decisão de anulação.
   Torna-se, deste modo, desnecessária a pronúncia sobre a chamada ampliação do âmbito do recurso jurisdicional requerida pelo recorrido com o objectivo de prevenir a eventualidade de decidir a baixa do processo ao tribunal recorrido.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional.
   Sem custas por o recorrente ser legalmente isento das mesmas.
   
   
   
   
   Aos 30 de Novembro de 2007.






Juízes : Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai


O Procurador-Adjunto
presente na conferência: Song Man Lei

Processo n.° 19 / 2006 13