Processo nº 562/2016 Data: 22.09.2016
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla qualificada”.
Erro notório.
Pena.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 562/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência Colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática de 1 crime de “burla qualificada”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e a pagar ao ofendido dos autos a indemnização de MOP$206.000,00 e juros.
Em cúmulo jurídico com as penas que lhe foram aplicadas no âmbito dos Processos CR3-15-0531-PCS, CR4-15-0209-PSM e CR1-15-0537-PCS, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 4 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 261 a 267-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Do assim decidido veio o arguido recorrer para em conclusões apresentadas a final da sua motivação de recurso imputar ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “excesso quanto à pena principal”; (cfr., fls. 283 a 289-v).
*
Respondendo diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 296 a 298-v).
*
Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.284 a 289v. dos autos, o recorrente assacou, ao douto Acórdão sob sindicância, o erro notório na apreciação de prova e a ofensa das disposições nos arts.40° e 65° do CPM por lhe se afigurar que a pena aplicada a si mostra excessivamente severa.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as concisas e criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.296 a 298v.), no sentido do não provimento do presente recurso.
*
No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014):
O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Fundamentando o erro notório na apreciação de prova, o recorrente arguiu sucessivamente a escassa credibilidade dos depoimentos tanto do ofendido como da testemunha que é o amigo do ofendido, a insuficiência da prova firme para abonar seguramente o Acórdão na parte respeitante aos factos dados por provados pelo tribunal a quo, e a carência da prova para sustentar a conclusão de ele saber da falsidade das fichas.
Ponderando as provas constantes dos autos e atendendo à parte «事實之判斷» do Acórdão posto em crise, entendemos que é objectiva a conclusão (do tribunal a quo) de «經嚴謹、綜合、客觀和批判分析了於審判聽證中當庭宣讀的嫌犯之聲明、各證人的聲明,結合在審判聽證中審查的書證、扣押品及其他證據後,本合議庭認定上述事實。», e são suficientes e sólidas as provas para suportar os factos dados por provados pelo tribunal a quo.
E sufragamos a proficiente observação da ilustre colega na douta Resposta, que aponta «在本案,被害人有港幣二十萬元現金賭本,上訴人宣稱借出相等於被害人原賭本一倍的金額給被害人賭博,條件是被害人簽下借據,被害人答應。上訴人安排同夥帶來港幣三十萬假籌碼換取被害人港幣二十萬現金。帶籌碼來的人並沒有帶走被害人簽下的借據,亦沒有要求被害人簽收較現金數目多出的籌碼,這是不尋常的情況,由此顯示,上訴人與帶籌碼來的人之間已有默契,而不是上訴人所宣稱的單純介紹人。隨後,上訴人在與被害人前往X娛樂場途中,逃去無踪。» O que torna manifestamente descabido o argumento do recorrente de ele não saber da falsidade da fichas.
A estas luzes, e sopesando os factos provados na sua totalidade em harmonia com a orientação jurisprudencial dominante no ordenamento jurídico de Macau, entendemos, sem hesitação, que não se verifica o invocado erro notório na apreciação de prova.
De outro lado, a mesma argumentação aduzida em sede do «erro notário na apreciação de prova» mostram nitidamente que ele pretendeu pôr em crise a apreciação e livre convicção do Tribunal a quo sobre os meios de prova, tentando sobrepor a sua valorização sobre a do Tribunal.
O que justifica que recordamos o ensinamento do Venerando TUI no seu Processo n.°13/2001: O recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador.
Por sua vez, o Venerando TSI inculca (aresto no Proc.n.°470/2010): Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
*
O próprio Acórdão sob sindicância demonstra, sem margem para dúvida, que ao graduar a pena a aplicar, o douto Tribunal a quo tomou como parâmetro e orientação o prescrito arts.40° e 65° do CPM, pois aí se refere expressamente «量刑須根據《刑法典》第40及65條之規定。»
Por outra banda, não faz sentido e é insubsistente o alegado na 37 conclusão da dita Motivação (雖然上訴人過往已有不少犯罪記錄,但觀乎其犯罪記錄全都是非法再入境罪,就本案的詐騙罪的犯罪性質來說屬初犯). De qualquer maneira, o recorrente não é primário para efeitos de graduação da pena.
Sendo assim, e atendendo à moldura penal consagrada na alínea a) do n.°4 do art.214° do Código Penal, afigura-se-nos justa e equilibrada a pena imposta ao recorrente, não descortinando a assacada violação do disposto nos arts.40° e 65° do mesmo Código”; (cfr., fls. 335 a 336-v).
*
Passa-se a apreciar.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 262-v a 263-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou nos termos atrás já referidos, na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão.
Assaca à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo, subsidiáriamente, a “redução da pena única”.
Porém, como – bem – se observa (e demonstra) no douto Parecer do Ministério Público que dá clara e cabal resposta às pretensões do ora recorrente, (e cujo teor aqui se dá por reproduzido), evidente é que nenhuma razão lhe assiste.
–– Comecemos pelo alegado “erro”.
Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que: “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 14.07.2016, Proc. n.° 340/2016).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.03.2016, Proc. n.° 101/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016).
No caso dos autos, a decisão da matéria de facto apresenta-se-nos clara e lógica, perfeitamente compatível com os elementos de prova produzidos e apreciados pelo Tribunal a quo que, em sede de fundamentação, não deixa de explicitar, de forma adequada, a sua convicção, (cfr., fls. 264 a 265), não se vislumbrando como, onde ou de que forma tenha violado qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regras de experiência, ou legis artis.
Assim, e limitando-se o recorrente a insistir na negação da prática dos factos que lhe eram imputados, e que, em audiência, se deram como provados, evidente é que se terá de julgar improcedente esta parte do recurso, pois que, não basta afirmar a existência de “erro” para que ele se verifique efectivamente.
Mais não se mostrando de dizer sobre a questão, continuemos.
–– Passemos para a “pena”.
Vejamos.
Ao crime de “burla” pelo ora recorrente cometido cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão; (cfr., art. 211°, n.° 4 do C.P.M.).
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
E, em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.03.2016, Proc. n.° 134/2016, de 07.07.2016, Proc. n.° 436/2016 e de 21.07.2016, Proc. n.° 483/2016).
E, em causa estando um prejuízo do ofendido contabilizado em MOP$206.000,00, não sendo o arguido primário, e verificando-se que a pena ao mesmo fixada se apresenta, ainda assim, próxima do seu mínimo legal, nenhuma redução desta pena se apresenta possível.
Vejamos agora a “pena única”.
No caso, e em harmonia com o critério do art. 71°, n.° 2 do C.P.P.M., em causa está uma moldura penal com um mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão e um máximo de 5 anos e 2 meses de prisão.
Ponderando na factualidade dada como provada e nas necessidades de prevenção criminal, fixou o Colectivo a quo a pena única de 4 anos e 3 meses de prisão.
Como se apresenta também aqui evidente, nenhuma censura merece o assim decidido.
Como decidiu o Tribunal da Relação de Évora (e em conformidade temos entendido):
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II – Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Decisão Sumária do ora relator de 29.04.2016, Proc. n.° 307/2016, de 24.05.2016, Proc. n.° 1031/2015 e de 30.05.2016, Proc. n.° 355/2016).
Ora, no caso, e não se vislumbrando também nenhuma circunstância que diminua considerávelmente a culpa ou ilicitude da conduta, à vista está a solução, sendo pois de confirmar a pena única decretada.
Tudo visto, há que decidir pela improcedência do recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Macau, aos 22 de Setembro de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 562/2016 Pág. 18
Proc. 562/2016 Pág. 19