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Processo n.º 645/2016 Data do acórdão: 2016-9-15
Assuntos:
– pedido de escusa de juiz
– art.º 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
– art.º 32.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal
– art.º 32.º, n.º 3, do Código de Processo Penal
– juízo sobre o thema decidendum
– boa relação de amizade
– boa relação de trabalho
– grande intimidade entre o juiz e alguma das partes
– amizade íntima entre o juiz e alguma das partes
– troca de opiniões sobre situações da vida
– troca de opiniões jurídicas
– princípio do juiz natural
S U M Á R I O

1. No âmbito do Código de Processo Penal (CPP), consagram-se, como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
2. No impedimento, verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1).
3. A recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave do que os do impedimento, traduzidos em correr o risco de ser considerada suspeita a intervenção de um juiz, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (art.º 32.º, n.os 1 e 2).
4. A escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
5. A suspeita sobre a imparcialidade do juiz só é susceptível de conduzir à recusa deste quando objectivamente considerada. Não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
6. O simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não constitui fundamento válido para a sua recusa.
7. Não baste uma boa relação (independentemente de ser longa ou curta) de amizade ou de trabalho entre o juiz e alguma das partes para efeitos de verificação do requisito material postulado na norma do n.º 1 do art.º 32.º. Exige-se, antes, que haja grande intimidade ou amizade íntima entre o juiz e alguma das partes. Ou seja, as relações de convivência e amizade do juiz com uma das partes devem ser tais, ou em tal grau, que constituam justo receio de parcialidade, isto é, que sejam susceptíveis de perturbar a rectidão do julgamento.
8. Isto também porque o n.º 1 do art.º 32.º não se contenta com um qualquer motivo (por exemplo, com a alegada anterior troca de opiniões sobre situações da vida e/ou de opiniões jurídicas com alguma das partes no processo a julgar), ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, visto que o expediente do pedido de escusa de juiz é um expediente sério, para razões sérias, tanto mais que dele resulta a afectação do princípio sagrado e inalienável do juiz natural que, enquanto manifestação do direito de defesa, significa que deve, ao longo de todas as fases processuais, manter-se nelas o juiz que resulta da aplicação e enunciação das regras gerais e abstractas vertidas nas leis de organização judiciária sobre a repartição da competência.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 645/2016
(Autos de pedido de escusa de juiz)
Requerente: M.ma Juíza Senhora Dr.a A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Veio a M.ma Juíza de Primeira Instância Senhora Dr.a A pedir, ao abrigo do disposto sobretudo no art.o 32.o, n.o 3, do Código de Processo Penal (CPP), a escusa da sua intervenção no julgamento dos autos de Processo Comum Singular n.o CR2-15-0610-PCS, a ela afectos presentemente no 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), tendo alegado o seguinte no seu requerimento:
– a ofendida desse processo penal por crimes de difamação agravada, p. e p. pelos art.os 174.º, n.º 1, e 178.º do Código Penal, é a actual Juíza Presidente do Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal do TJB Senhora Dr.ª B;
– a própria requerente e essa M.ma Juíza têm sido boas amigas entre si desde 2002 (ano em que se conheceram e ingressaram no curso de formação de magistrados), com frequentes convívios e trocas de opiniões sobre situações da vida e até sobre questões do Direito (inclusivamente sobre as questões jurídicas semelhantes às ora em causa no dito processo penal), e com comparticipação na tradução do 1.º volume de um manual do Curso de Direito Processual Penal de Macau do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, tendo vindo a requerente a trabalhar, a partir dos finais de Maio de 2016, com essa M.ma Juíza num mesmo Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal do TJB;
– portanto, entre a requerente e essa M.ma Juíza já se encontra estabelecida uma relação boa, relativamente longa, de amizade e de trabalho;
– relação essa que, no caso de a requerente ir despachar e julgar os autos acima referidos, constituirá, para efeitos do art.º 32.º, n.º 3, do CPP, um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, podendo pôr em causa a imagem justa e imparcial dos órgãos judiciais.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir do pedido de escusa.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Flui do exame dos autos o seguinte:
– à M.ma Juíza requerente fica presentemente afecto o Processo Comum Singular n.o CR2-15-0610-PCS do 2.o Juízo Criminal do TJB, processo que ainda não se encontra julgado;
– a ofendida desse processo penal, por crimes de difamação, é a actual Juíza Presidente do Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal do TJB Senhora Dr.ª B;
– a M.ma Juíza requerente alega que ela e essa M.ma Juíza têm sido boas amigas entre si desde 2002 (ano em que se conheceram e ingressaram no curso de formação de magistrados), com frequentes convívios e trocas de opiniões sobre situações da vida e até sobre questões do Direito (inclusivamente sobre as questões jurídicas semelhantes às ora em causa no dito processo penal), e com comparticipação na tradução do 1.º volume de um manual do Curso de Direito Processual Penal de Macau do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, tendo vindo a requerente a trabalhar, a partir dos finais de Maio de 2016, com essa M.ma Juíza num mesmo Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal do TJB.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No âmbito do CPP consagram-se, como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
Ora, adaptada a doutrina de JOSÉ ALBERTO DOS REIS (in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1.º, 2.ª Edição, 1960, Coimbra Editora, páginas 387 e seguintes) às normas do CPP nesta matéria, cabe observar que:
– o impedimento caracteriza-se pelo seguinte traço: verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1). Se o não fizer, podem o Ministério Público, o arguido, o assistente ou parte civil, logo que sejam admitidos a intervir no processo, provocar a declaração do impedimento, em qualquer estado do processo (art.º 30.º, n.º 2);
– a recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave do que os do impedimento, traduzidos em “correr o risco de ser considerada suspeita [a intervenção de um juiz], por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art.º 32.º, n.os 1 e 2);
– e a escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
Sendo certo que conforme o já defendido no douto Acórdão de 2/2/1999 do Tribunal da Relação de Lisboa de Portugal, no Processo n.º 67445 (in www.dgsi.pt/jtrl.nsf/3318…), citado aqui a título de mera referência académica: a suspeita sobre a imparcialidade do juiz só é susceptível de conduzir à recusa deste quando objectivamente considerada. Não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
Em sentido convergente, cfr. também, a título de mera referência académica, o douto Acórdão de 10/7/1996 do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, in Col. Jur. XIX, 4, 62, aliás já citado no douto Acórdão de 15/10/1999 do então Tribunal Superior de Justiça de Macau no Processo n.º 1235 (in Jurisprudência 1999, II Tomo, págs. 659 a 661): a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser considerados objectivamente, não bastando um puro convencimento subjectivo para que se possa ter por verificada a ocorrência da suspeição.
Outrossim, não fica inútil citar o douto Acórdão da Relação de Coimbra de Portugal, de 2/12/1992, in Col. Jur., XVII, 1992, ainda que também a título de mera referência académica, segundo o qual: o simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não constitui fundamento válido para a sua recusa. Há sempre que alegar factos concretos que constituem motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
No caso concreto dos autos, a M.ma Juíza requerente alega, de entre as outras circunstâncias, que ela chegou a trocar, frequentemente, com a M.ma Juíza ofendida no processo penal atrás referido opiniões sobre questões do Direito, inclusivamente sobre as questões jurídicas semelhantes às ora em causa nesse processo penal.
Contudo, esta troca de opiniões jurídicas não representa um fundamento válido para a escusa de juiz, na esteira da doutrina sensata veiculada no Acórdão da Relação de Coimbra de Portugal de 2/12/1992 acabado de ser referenciado acima. E o mesmo se pode dizer em relação à troca de opiniões sobre situações da vida, troca de opinioes essa que é comum entre as pessoas amigas, e, porém, não equivale a um motivo sério nem grave para gerar desconfiança das pessoas sobre a imparcialidade da M.ma Juíza requerente no julgamento do processo penal em mira.
E no tocante às restantes circunstâncias alegadas no pedido de escusa vertente, as mesmas também se reconduzem, ao fim e ao cabo, a uma boa relação de amizade e de trabalho entre a M.ma Juíza requerente e a M.ma Juíza ofendida.
Entretanto, realiza o presente Tribunal Colectivo que não baste uma boa relação (independentemente de ser longa ou curta) de amizade ou de trabalho entre o juiz e alguma das partes para efeitos de verificação do requisito material postulado na norma do n.º 1 do art.º 32.º do CPP. Exige-se, antes, que haja grande intimidade ou amizade íntima entre o juiz e alguma das partes. Ou seja, “as relações de convivência e amizade do juiz com uma das partes devem ser tais, ou em tal grau, que constituam justo receio de parcialidade, isto é, que sejam susceptíveis de perturbar a rectidão do julgamento” (cfr. toda a problemática explanada na Obra ibidem de JOSÉ ALBERTO DOS REIS, páginas 445 a 447).
Isto também porque o art.º 32.º, n.º 1, do CPP “não se contenta com um «qualquer motivo», ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção” (neste sentido, cfr. a doutrina justa exposta no Acórdão de 17/4/2008 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Processo n.º 1208/08-3.ª, referido por MANUEL LEAL-HENRIQUES na sua Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume 1, 2013, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, página 237, 5.º pagrágrafo), visto que o “expediente do pedido de escusa de juiz é um expediente sério, para razões sérias, tanto mais que dele resulta a afectação do princípio sagrado e inalienável […] do juiz natural que, enquanto manifestação do direito de defesa, significa que deve, ao longo de todas as fases processuais, manter-se nelas o juiz que resulta da aplicação e enunciação das regras gerais e abstractas vertidas nas leis de organização judiciária sobre a repartição da competência” (neste sentido, cfr. a doutrina vertida no Acórdão de 31/1/2012 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal mencionado por MANUEL LEAL-HENRIQUES na Obra ibidem, página 239, 4.º pagrágrafo).
Como resulta de todo o acima referenciado a nível jurídico-doutrinário, é de julgar que todas as restantes circunstâncias alegadas no pedido de escusa também não são susceptíveis de perturbar a rectidão do julgamento no processo penal em questão, ou, por outras palavras, não são irrefutavelmente reveladoras de que a M.ma Juíza requerente deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em indeferir o pedido de escusa.
Sem custas pelo presente processado.
Macau, 15 de Setembro de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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