Processo n.º 652/2014 Data do acórdão: 2016-9-22
Assuntos:
– contradição insanável da fundamentação
– matéria de facto provada
– art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal
– art.º 418.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Sendo irredutível a contradição na matéria de facto dada por provada na sentença recorrida, é de reenviar o processo para novo julgamento, nos termos conjugados dos art.os 400.º, n.º 2, alínea b), e 418.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 652/2014
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido: A, proprietário da
Engenharia X (X工程)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 79 a 81 do Processo Contravencional Laboral n.° LB1-14-0024-LCT do Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base, condenatória do arguido transgressor A, como proprietário da Engenharia X (X工程), em vinte mil patacas de multa, pela prática de uma contravenção por falta de pagamento no prazo da remuneração de base ao trabalhador, p. e p. pelos art.os 85.º, n.º 1, alínea 6), e 62.º, n.º 3, da Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto, bem como no pagamento, a favor do trabalhador ofendido B, da quantia indemnizatória civil de onze mil e duzentas patacas de indemnização cível, arbitrada oficiosamente, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a invalidação dessa decisão condenatória com base na opinada existência do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, e do vício de violação do art.º 74.º, n.º 1, do Código Penal, tendo, para o efeito, concluído a sua motivação de moldes seguintes:
– <<[…]
1 - A sentença recorrida enferma a contradição insanável quanto à matéria de facto provado e da fundamentação, pois que não pode dizer-se, a tempo, que o trabalhador B foi contratado pela entidade patronal o proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A, e por outro lado, a dizer que o parceiro era um efectivo parceiro de negócio, a acção contravencional devia ter igualmente abrangido tal parceiro.
2 - Perante os factos provados, dá-se entendido que a relação de trabalho foi constituído por dois sujeitos: 1º sujeito: a entidade patronal, o proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A e o 2º sujeito, o trabalhador B com uma duração de trabalho no período entre Junho a Outubro de 2012.
3 - Da análise da fundamentação, o tribunal a quo põe em causa a natureza efectiva da relação negocial entre a transgressora e o seu parceiro de negócio, entendido que a acção contravencional devia ter igualmente abrangido tal parceiro. Se de acordo com essa fundamentação ora apontada pelo tribunal a quo impõe-se o tribunal a quo assente na matéria de facto provada que B foi contratado pelo A, proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A, e o tal parceiro C. Pois só existe uma relação de trabalho durante o período de Junho a Outubro.
4 - Por outro lado, ainda na análise da fundamentação, não podemos retirar uma conclusão feito pelo tribunal a quo que a acção contravencional devia ter igualmente abrangido tal parceiro, uma vez segundo a explicação do proprietário da empresa que o Tribunal a quo assentou nas declarações, que de acordo com a parceria feita cabia ao seu parceiro de negócio a contratação de trabalhadores e o seu pagamento, actuava autonomamente, repartindo consigo os lucros. Se seguir esse raciocínio, impõe-se o tribunal a quo assente na matéria de facto não provada que “B foi contratado pelo A, proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A,” visto que a verdadeira entidade patronal foi o tal parceiro.
5 - Ainda na análise da fundamentação, não podemos aceitar o raciocínio do Tribunal a quo pois por um lado entendeu que a acção contravencional devia ter igualmente abrangido tal parceiro e por outro lado fixou-se na matéria de facto provada que o transgressor A, proprietário de Engenharia XX工程有限公司之所有人A, não procedeu ao pagamento de 14 dias de trabalho no período de Junho a Outubro de 2012. Na nossa óptica, mesmo que a acção contravencional devia ter igualmente abrangido o tal parceiro, não deixa de ser provada na matéria de facto que a transgressora não procedeu ao pagamento de 67.5 dias de trabalho conforme fixada no mapa de apuramento, pois tem a entidade patronal conforme entendido pelo Tribunal a quo (o transgressor A, proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A e o tal parceiro) a responsabilidade solidária.
6 - Ainda na análise da fundamentação, admitindo-se à verdade que o transgressor A, proprietário de Engenharia X X工程有限公司之所有人A, havia dado o dinheiro ao seu parceiro de negócio para que procedesse ao pagamento devido a todos os trabalhadores o que aconteceu com todos com excepção do trabalhador queixoso, não deixa de aliviar a responsabilidade do pagamento de salário por parte daquele transgressor, pois quem paga mal paga duas vezes.
7 - Violou assim o Tribunal a quo o artº. 400º nº,. 2 b) do C.P.P.M. por a sentença padece vícios de contradição insanável da fundamentação.
8 - Pelos vícios acima suscitada, deve conter a matéria de facto provada que a transgressora não procedeu ao pagamento de 67.5 dias de salário equivalente no montante de $54,000.00 (cinquenta e quatro mil patacas) e fixou arbitrariamente a quantia ao trabalhador B pelos danos causados, por entender ser justo o valor indicado no mapa de apuramento e reunir elementos suficientes para o Tribunal a quo efectuar o cálculo de indemnização.
9- Ao fixar uma indemnização parcial, violou o tribunal a quo o artº.74º nº. 1 do C.P.P. ex vi artº. 100º nº. 1 da Lei nº. 9/2003.
Nestes termos, e pelas razões acima expostas, o recurso ora interposto mereça, ao nosso ver, de provimento. Devendo o mesmo recurso julgado procedente, reenviando o processo ao novo julgamento ou alterando a decisão recorrida no sentido de manter a decisão da pena de multa e fixou arbitrariamente a quantia de $54,000.00 (cinquenta e quatro mil patacas) correspondente a 67.5 dias de vencimento ao trabalhador B pelos danos causados, por entender ser justo o valor indicado no mapa de apuramento que acompanha o auto e reunir elementos suficientes para o Tribunal a quo efectuar o cálculo de indemnização […]>> (cfr. o teor literal de fls. 88v a 90 dos presentes autos correspondentes).
Tramitado o recurso e subido este para este TSI, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer (a fl. 154), pugnando pelo provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
1. O arguido transgressor A, como proprietário da Engenharia X, confessou, na audiência de julgamento então realizada em primeira instância, que falta pagar ao trabalhador dos autos o salário de 14 dias, num total de onze mil e duzentas patacas (cfr. o teor da acta dessa audiência, concretamente a fl. 78v dos autos).
2. O trabalhador ofendido B, ouvido nessa audiência como 1.ª testemunha da acusação, declarou ao Tribunal a quo que foi contratado pelo parceiro da entidade transgressora chamado C para fazer a armação de ferro, e que tinha relação familiar com esse Sr. C (cfr. o teor da mesma acta da audiência, concretamente a fl. 79 dos autos).
3. A sentença ora recorrida tem o seguinte teor literal:
– <
I - RELATÓRIO
----- O Ministério Público, em processo de contravenção laboral, acusou, por conversão do auto de notícia, para julgamento em Tribunal de estrutura singular: -----
*
----- A - Proprietário de ENGENHARIA X. (X工程有限公司之所有人A), adiante designado por entidade patronal, titular do BIRM n.º […], residente em Macau […] -------------------------------------------------------------
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----- Pela prática de uma contravenção laboral, tudo conforme consta do auto de notícia cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos. ----
***
----- A transgressora não contestou. -----------------------------------------------------------
----- O trabalhador manifestou o propósito de ser indemnizado, conforme requerimento junto aos autos a fls. 72. -------------------------------------------------------
----- Procedeu-se a julgamento, com integral cumprimento do formalismo legal. ------ ----- A instância mantém-se válida e regular, tal como decidido no despacho de recebimento da acusação, nada obstando ao conhecimento do mérito. ------------------
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
A)- Matéria de facto provada.
----- Com relevância para a boa decisão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto: -------------------------------------------------------------------------------------------
1. B, titular do B.I.R.M. nº […], residente em Macau, foi contratado pela entidade patronal acima referida durante o período de Junho a Outubro de 2012, exercendo as funções como armador de ferro, com a jorna de MOP$800,00. --------------------------------------------------------------------------------
2. O trabalhador não recebeu o salário entre Junho e Outubro de 2012. ----------------
3. A transgressora não procedeu ao pagamento de 14 dias de trabalho dos referidos em 2. -------------------------------------------------------------------------------------------
4. A transgressora agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta violava as normas reguladoras das relações de trabalho. --------------------
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B)- Matéria de facto não provada.
----- A transgressora não procedeu ao pagamento da totalidade dos dias de trabalho referidos em 2 dos factos provados. ----------------------------------------------------------
***
C)- Motivação da decisão de facto.
----- O decidido assentou nas declarações do representante legal da empresa, admitindo não ter pago ao trabalhador cerca de catorze dias de trabalho, confessando assim a prática da contravenção que lhe era imputada, apenas pondo em causa ser responsável pela globalidade dos dias devidos ao trabalhador, na medida em que havia dado o dinheiro ao seu parceiro de negócio para que procedesse ao pagamento devido a todos os trabalhadores, o que aconteceu com todos, com excepção do trabalhador queixoso; mais explicou o representante da transgressora que de acordo com a parceria feita cabia ao seu parceiro de negócio a contratação de trabalhadores e o seu pagamento, negando, instado, que ele fosse seu capataz ou gerente, mas que actuava autonomamente, repartindo assim consigo os lucros; adiantou assim que entregou ao seu parceiro, de modo a que ele desenvolvesse a actividade acordada, um milhão e duzentas mil patacas; estas declarações foram corroboradas, no que diz respeito ao enquadramento da relação entre a sociedade transgressora e o seu parceiro de negócio, pelo depoimento da senhora inspectora da DSAL, bem como pelo trabalhador queixoso, resultado do depoimento destes que o chamado “parceiro” não era de facto capataz ou gerente da transgressora, agindo como um efectivo parceiro de negócio, cuja quota-parte do negócio, conforme acordo entre as partes, estava destinado à contratação dos trabalhadores e seu pagamento; ficou assim claro que acção contravencional devia ter igualmente abrangido tal parceiro, não sendo minimamente de aceitar a justificação dada pela Senhora Inspectora, que explicou que isso não aconteceu, por tal parceiro não ser uma sociedade, mas apenas uma pessoa singular (sendo certo que não se conhece no ordenamento jurídico de Macau qualquer inibição no tráfico jurídico comercial por parte das pessoas individuais, nem este é exclusividade das pessoas colectivas. ----------------------------
----- Dado que não foi produzida qualquer outra prova minimamente objectiva, na medida em que a DSAL não tratou de averiguar qual a natureza efectiva da relação negocial entre a transgressora e o seu parceiro de negócio (relação esta a que faz referência expressa no auto de notícia) ficou assim o tribunal apenas com a certeza que decorre da confissão do representante da transgressora, razão assim da factualidade provada e não provada. ----------------------------------------------------------
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D)- Aspecto jurídico da causa.
----- Dispõe o artº62º nº3 da Lei 7/2008 que “a remuneração de base é paga no prazo de nove dias úteis contados da data de vencimento da obrigação.” A inobservância deste preceito determina a prática de contravenção prevista no art. 85 nº1 al. 6 da citada Lei. ----------------------------------------------------------------------------------------
----- Dispõe o artº 85ºnº1 do mesmo diploma que a inobservância do supra referido é punível com a multa de MOP$20.000,00 a MOP$50.000,00. -----------------------------
----- Isto posto, face à matéria de facto provada, é inquestionável a prática da referida contravenção por parte da transgressora, confirmando-se, assim, a decisão administrativa e julgando-se ajustado o montante mínimo fixado. -----------------------
----- Atenta a factualidade provada, vai ainda condenada a transgressora a pagar a quantia equivalente aos catorze dias apurados, no montante de MOP 11.200,00, sendo que no mais deverá o trabalhador, querendo, propor a adequada acção comum laboral, com intervenção de todas as partes que compõem a relação material controvertida, nomeadamente, de modo a apurar devida responsabilidade da transgressora e do seu parceiro de negócio, o que não é minimamente possível fazer com rigor nos presentes autos. -----------------------------------------------------------------
*
III. DECISÃO
----- Em face do exposto, julgo a acusação procedente por provada, e, em consequência, confirmo integralmente a decisão documentada pela D.S.A.L. relativamente a transgressora A - Proprietário de ENGENHARIA X. (X工程有限公司之所有人A). ------------------------
----- Condena-se a transgressora pela contravenção supra referida, na pena de multa de MOP$20,000.00 (vinte mil patacas). ----------------------------------------------------------------
----- Condena-se ainda a transgressora a pagar ao trabalhador supra identificado a quantia de MOP$11,200.00 (Onze Mil, Duzentas patacas). --------------------------------------------------
----- Custas pelo transgressor com taxa de justiça fixada em uma unidade de conta (1UC).--
[…]>> (cfr. fls. 79 a 81 dos autos, com supressão só aqui, através de “[…]”, de alguns dados identificativos das pessoas envolvidas).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
É de notar, de antemão, que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A Digna Delegada do Procurador ora recorrente entende, antes do mais, haver contradição insanável na fundamentação da sentença da Primeira Instância.
Após visto o texto da sentença recorrida, realiza o presente Tribunal ad quem que é patente, ao padrão das regras da experiência, a contradição entre a seguinte factualidade aí materialmente dada por provada:
– por um lado, foi considerado provado que a testemunha da acusação B foi contratada pelo proprietário da Engenharia X Sr. A como entidade patronal, durante o período de Junho a Outubro de 2012, e que esse Sr. B não recebeu o salário entre Junho e Outubro de 2012 (cfr. os factos provados 1 e 2, em conjugação com a identificação da entidade ora arguida como transgressora, escrita no intróito da sentença);
– mas, por outra banda, foi simultaneamente tido como provado que a entidade ora arguida como transgressora não procedeu ao pagamento de 14 dias de trabalho dos referidos naquele período de tempo (cfr. o facto provado 3).
Perante isto, a gente fica sem saber o motivo pelo qual o Sr. B não recebeu os outros dias de salário referente ao dito período de contratação.
É claro que o Tribunal a quo explicou esse motivo, na fundamentação jurídica da sentença recorrida. Entretanto, o acervo dos factos provados não dá para reflectir esse motivo.
Com efeito, ante o modo de descrição da factualidade provada, e vistas as coisas aos olhos de um homem médio colocado na situação concreta dos autos, se foi a entidade ora arguida transgressora quem contratou o Sr. B para exercer as funções como armador de ferro durante o período de Junho a Outubro de 2012, e se este não recebeu o salário entre Junho e Outubro de 2012, é porque a mesma entidade ora arguida transgressora faltou ao pagamento do salário entre Junho e Outubro de 2012, e não apenas faltou ao pagamento de 14 dias de trabalho dos referidos nesse período de tempo.
Assim sendo, e por ser irredutível a contradição fáctica acima referida, para além de não ser possível decidir directamente da causa na presente instância recursória, é de reenviar todo o objecto do processo para novo julgamento em primeira instância (cfr. o art.º 418.º, n.o 1, do Código de Processo Penal), com o que fica prejudicado o conhecimento da segunda parte da fundamentação do recurso do Ministério Público, respeitante à problemática do arbitramento oficioso da indemnização.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando todo o objecto do subjacente processo contravencional para novo julgamento em primeira instância.
Sem custas.
Macau, 22 de Setembro de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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