Processo nº 630/2016 Data: 29.09.2016
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Crime de “consumo de estupefacientes”.
Crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”.
Erro notório.
Concurso efectivo.
Pena.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. Tendo o arguido “cedido” – sem fim lucrativo – a droga a terceiro, e sendo esta de reduzida quantidade, adequada se apresenta uma pena (mais) próxima do limite mínimo da moldura penal.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 630/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B), com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática em autoria, na forma consumada e em concurso real de, 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009, na pena de 7 anos de prisão, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e 1 crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 209 a 217 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, veio o arguido recorrer, imputando ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, e considerando também excessiva a pena aplicada para o crime de “tráfico”, pedindo a sua redução; (cfr., fls. 228 a 243).
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Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 245 a 248).
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Admitindo o recurso, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.229 a 243 dos autos, o recorrente assacou, ao douto Acórdão sob sindicância, o erro notório na apreciação de prova e a violação das disposições nos arts.40° e 65° do Código Penal de Macau, e ainda a ofensa do preceito no art.15° da Lei n.°17/2009.
Antes de mais, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre Colega na Resposta (cfl. fls.245 a 248 dos autos), no sentido do não provimento do recurso em apreço.
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Fundamentando a existência in casu do erro notório na apreciação de prova, o recorrente insistiu em nunca ter a intenção de vender drogas a outrem para ganhar dinheiro (cfr. art.35° da Motivação: 雖然如此,但上訴人從來沒有打算將購得的毒品用作出售,以獲取任何金錢利益,而讓毒品在市場上流通,對社會大眾造成深遠的禍害。)
No que respeite ao significado do «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, vide. Acórdãos do Venerando TUI nos Processos n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Na nossa óptica, continua a ser válida a brilhante jurisprudência que inculcou (Acórdão do TUI no Processo n.°12/2005): Para a integração da conduta do agente no tipo criminal previsto no art.8.°, n.°1 do Decreto-Lei n.°5/91/M, não é essencial a prova da detenção (ou outro acto previsto na mesma norma) de estupefaciente para venda, mas apenas a detenção (ou outro acto) que não seja para consumo pessoal ou próprio.
Com efeito, adverte prudentemente o Venerando TUI: «Qualquer oferta, cedência, transporte ou detenção de estupefaciente, ainda que gratuita, que não se destine, na totalidade, a consumo próprio, é considerado acto de tráfico de estupefacientes, punido, consoante os casos, pelos artigos 8.° ou 11.° da Lei n.°17/2009.» (Acórdão do TUI no Processo n.°68/2014)
E, «A guarda de estupefacientes para terceiro, ainda que sem intenção de obter proveitos económicos, em medida superior a 5 vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à Lei n.°17/2009, constitui o crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.°, n.°1, mesma Lei.» (Acórdão do TUI no Processo n.°70/2014)
Em esteira das orientações jurisprudenciais acima citadas, colhemos sossegadamente que não se verifica in casu o assacado erro notório na apreciação de prova.
Quanto à aparente desconformidade entre o 18° facto provado com os 4° e 5° factos provados – que vê arrogada pelo recorrente para abonar a arguição do erro notório na apreciação de prova, basta-nos subscrever a penetrante observação do ilustre colega: «然而,只要細閱所有已證事實,已能得知已證事實第18點中所指的20克並非指已證事實第4點及第9點總和 (4.355克+16.861克) 的毒品。故此,已證事實第18點與已證事實第4及第9點並無予盾之處。»
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No douto Acórdão em questão, o tribunal a quo deu como provado que o recorrente é primário de acordo com o seu registo criminal, estão a seu cargo 2 filhas e 1 filho, e para efeitos de graduação da pena refere que «嫌犯為初犯,承認被控告的基本犯罪事實,嫌犯個人狀況及經濟狀況普通。»
Todavia, não se descortinam circunstâncias de atenuação especial em favor do recorrente. Assim, e atendendo à moldura prevista no n.°1 do art.8° da Lei n.°17/2009 que consiste na pena de prisão de 3 a 15 anos, parece-nos que a pena de 7 anos de prisão, correspondente ao crime de tráfico de droga, não contende com o prescrito arts.40° e 65° do CPM.
Ressalvado o elevado respeito pela opinião diferente, afigura-se-nos que a invocação dos doutos acórdãos referidos nos arts.52° a 56° da Motivação como colação, só por si, não é suficiente para sustentar o pedido de atenuação da pena de 7 anos de prisão correspondente ao crime de tráfico de droga – reduzindo-a para uma pena não superior a cinco anos de prisão. Pois bem, como se sabe, cada caso é um caso.
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No aresto in questio, o douto Tribunal a quo deu por provado que o recorrente tinha sido consumidor de estupefacientes, e refere que «嫌犯聲稱其因婚姻破裂開始吸毒,已吸食了三年». No art.36° da Motivação, ele reconheceu ser consumidor de estupefacientes.
No mesmo douto acórdão, ainda se dá como provado «15. 另外,嫌犯在上述住所內所收藏的上述膠瓶及吸管的組合是經改裝專為吸食甲基苯丙胺而設計的吸毒工具。» De outro lado, mostra-nos exacta a seguinte observação do ilustre colega «警方於上訴人住所中所搜出的吸食工具並非單純獨立的“膠瓶”、“吸管”、“錫紙”,而是以“膠瓶”、“吸管”、“錫紙”等材料經刻意的人工改裝組合而製成的工具,其唯一的用途就是吸食毒品 (見卷宗第19頁的圖片)。»
Deste molde, entendemos que estão preenchidos in casu todos os requisitos constitutivos do crime de detenção indevida de utensílios ou equipamentos p.p. pelo art.15° da Lei n.°17/2009, pelo que não pode ser insubsistente o pedido de absolvição da condenação dele neste crime.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 263 a 264-v).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 211-v a 213-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Insurge-se o arguido contra o Acórdão do Colectivo do T.J.B. que a condenou nos termos atrás descritos.
Considera que o mesmo padece de “erro notório na apreciação da prova” e de “erro na aplicação do direito”, pugnando pela sua absolvição em relação ao crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento” e considerando também excessiva a pena aplicada para o crime de tráfico.
Vejamos.
De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 14.07.2016, Proc. n.° 340/2016).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.03.2016, Proc. n.° 101/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016).
No caso, lida a decisão da matéria de facto e a fundamentação pelo Tribunal a quo exposta, não se vislumbra qualquer “erro”, (muito menos, notório), pois que não violou o Colectivo do T.J.B. qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, o mesmo sucedendo com as regras de experiência ou legis artis.
Com a invocação do alegado erro, limita-se o recorrente a tentar impor a sua versão dos factos, afrontando o princípio da livre apreciação da prova, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), o que, como é óbvio, não colhe, mais não se mostrando de dizer sobre a questão.
Continuemos.
–– Importa agora, apurar se tem o recorrente razão quando afirma que “O consumo da droga em causa consome o crime p. e p. pelo citado art. 15.°, por só poder efectivar-se através dos instrumentos aprendidos”.
Pois bem, sobre a questão, e tanto quanto julgamos saber, várias são as soluções possíveis, e que (perante as circunstâncias da situação concreta) se tem vindo a adoptar.
De facto, com a nova Lei n.° 17/2009, entendimento existe que considera que os crimes em questão quando cometidos pelo mesmo agente estão numa relação de “concurso aparente”, certo sendo que também se tem defendido que (meros) “instrumentos ou utensílios sem durabilidade” não devem ser considerados para efeitos de integração do previsto no art. 15° que prevê o crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”.
No caso dos autos, considerando a “natureza dos objectos” em questão, que se apresentam com durabilidade, e adoptando a maioria deste Colectivo a quo a segunda das aludidas posições, há que confirmar a condenação do arguido pelo crime do art. 15° da Lei n.° 17/2009.
–– Vejamos da “pena” fixada para o crime de tráfico.
Ao dito crime cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão.
Ponderando na factualidade dada como provada, sendo de salientar a quantidade de estupefaciente em questão – pouco mais de 3 gramas – e que a mesma foi “cedida”, sem intenção lucrativa, tendo presente os critérios do art. 40° e 65° do C.P.M., e atentas as fortes necessidade de prevenção, cremos que (algo) excessiva se apresenta a pena de 7 anos de prisão fixada para este crime de “tráfico”, mais adequada se nos afigurando a de 5 anos e 6 meses de prisão.
Aqui chegados, (motivos não havendo para se alterar as penas parcelares fixadas para os crimes dos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009), e atentos os critérios do art. 71° do C.P.M., fixa-se ao recorrente a pena única de 5 anos e 8 meses de prisão.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando o arguido condenado na pena única de 5 anos e 8 meses de prisão.
Pelo seu decaimento pagará o arguido 4 UCs de taxa de justiça.
Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.800,00.
Macau, aos 29 de Setembro de 2016
(Relator)
José Maria Dias Azedo [Dando como reproduzido o teor da minha declaração de voto anexa ao Ac. de 31.03.2011, Proc. n.° 81/2011].
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta) Tam Hio Wa
Proc. 630/2016 Pág. 16
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