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Processo nº 465/2016 Data: 29.09.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”.
“Erro notório”.
Reenvio.



SUMÁRIO

  Havendo “erro notório”, e se para se sanar o mesmo necessário se torna a realização de um “novo julgamento” com a produção e apreciação de todos os elementos probatórios, adequado se apresenta o reenvio do processo nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

O relator,

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Processo nº 465/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B. vindo a ser condenado pela prática de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200° do C.P.M., na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses e a pagar ao ofendido a indemnização de MOP$7.900,00 e juros; (cfr., fls. 93 a 97-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu.
Em síntese, é de opinião que a decisão recorrida padece de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua revogação; (cfr., fls. 120 a 145).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso merece provimento; (cfr., fls. 148 a 151).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também ter havido “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 199 a 199-v).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria de facto:

“Aos 7 de Novembro de 2014, pelas 8h18 da manhã, a vítima B usou a máquina de caixa (ATM) n.º 50 do Banco C na Avenida XXXXX, Taipa. A vítima usou o cartão de levantamento de dinheiro n.º 62243610521XXXXXXXX e levantou MOP$ 7900. A vítima só levou o aviso para o cliente e o cartão de levantamento de dinheiro, mas esqueceu-se de levar o numerário no valor de MOP$ 7900, que a máquina de caixa tinha mandado fora, e foi-se embora.
O arguido A, que ficava atrás da vítima descobriu a verba, e estendeu a mão e levou o dinheiro. Em seguida, o arguido usou o seu próprio cartão de débito n.º 6224361052XXXXXXXX para levantar dinheiro. Depois do levantamento, o arguido foi-se embora.
Estando livre, voluntário, e consciente, o arguido tomou os bens pertencentes a e deixados por outrem, do qual ele sabia com clareza, e apropriou-se ilegitimamente dos bens de forma dolosa.
O arguido sabia perfeitamente que os seus actos eram proibidos pela lei e seriam punidos legalmente.
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Segundo o certificado de registo criminal, o arguido não tem registo criminal.
O arguido afirmou ter a escolaridade de conclusão de educação vocacional de nível secundário. Exercendo a profissão de técnico de instalação de ar condicionado. Aufere mensalmente cerca de MOP $ 21000. Precisa de alimentar 2 filhos/filhas”; (cfr., fls. 93-v a 94).

Do direito

3. Vem o arguido dos presentes autos recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que o condenou como autor da prática de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200° do C.P.M., na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses, e a pagar ao ofendido a indemnização de MOP$7.900,00 e juros.

É de opinião que a decisão recorrida padece de “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos.

De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 14.07.2016, Proc. n.° 340/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma
convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.03.2016, Proc. n.° 101/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016).

Perante o que se deixou consignado, quid iuris?

Vejamos.

A tese do arguido é – em síntese, e no que releva – que o ofendido faz duas vezes uso da máquina ATM identificada na matéria de facto dada como provada.

Na primeira, para fazer um levantamento da quantia de MOP$7.900,00 que acaba por não retirar da máquina, e, na segunda, vários minutos depois, para conferir o saldo da sua conta.

E, afirma o arguido que só fez uso da máquina após o ofendido a utilizar pela segunda vez, evidente sendo assim não ser ele a “pessoa que se apropriou do dinheiro do ofendido” e que surge na gravação visionada em audiência de julgamento como o utente que acedeu à máquina logo após a primeira utilização desta pelo ofendido e que – visívelmente – se apoderou das MOP$7.900,00.

Alega ainda que como apenas utilizou a máquina após o ofendido a utilizar pela segunda vez, (após vários minutos), nunca poderia ser o autor do crime dos autos porque as máquinas ATM estão equipadas com um sistema de segurança que recolhem o dinheiro se o mesmo não for retirado após alguns segundos.

Em essência, diz que foi condenado por um crime que não cometeu, que o Tribunal a quo não ponderou, como devia, (toda) a prova existente nos autos, tendo incorrido em “erro notório na apreciação da prova”.

Cremos que – em parte – tem razão.

Como se vê, o Tribunal a quo deu como provado que o arguido se apoderou da quantia de MOP$7.900,00 que o ofendido, numa operação de levantamento de numerário numa máquina ATM, lá deixou.

Justifica tal decisão com as declarações do arguido, do ofendido e de uma testemunha, (agente policial), consignando ainda que para a mesma contribuiu também o visionamento do vídeo que registou (gravou) o “momento” assim como os documentos fornecidos pelo Banco e juntos aos autos; (cfr., fls. 94 a 94-v).

Ora, como se disse, afigura-se-nos que incorreu efectivamente em “erro”.

Como se nos apresenta ser do conhecimento geral, (dado que hoje todos somos utilizadores destes sistemas automáticos de levantamento de quantias monetárias), as máquinas ATM tem um sistema de segurança, (quiçá, para evitar situações como a dos autos), que recolhe o dinheiro que disponibiliza ao utilizador que pretende fazer uma operação de levantamento se ele não for retirado dentro de pouco tempo, e que, por regra, não excede 1 minuto.

No caso dos autos, deu-se como provado que o ofendido usou a máquina A.T.M. identificada nos autos pelas 8:18 da manhã do dia 07.11.2014, onde efectuou um levantamento de MOP$7.900,00, mas que acabou por não retirar o dinheiro da caixa que veio a ser apropriado pelo arguido que utilizou a máquina de seguida.

Porém, tal “matéria”, em especial, em relação à “hora” assinalada – “8:18” – apresenta-se desconforme com o documento de fls. 11 que indica como hora de utilização da máquina pelo ofendido as “8:15”.

E, desta forma, afigura-se-nos pois que se incorreu em “erro notório”, pois que em se conformidade com este elemento probatório o ofendido utilizou a máquina para fazer o levantamento às “8:15”, correcto não se apresenta o facto dado como provado no sentido que tal apenas ocorreu às “8:18”, e que, o arguido se apropriou do dinheiro do levantamento lá deixado, até porque, neste momento, o dinheiro nem devia lá estar, já que, em situações normais, teria sido recolhido pela própria máquina.

Para além disto, outro elemento se nos apresenta relevante para a solução que, no caso dos autos, se nos afigura como a correcta e que se deixou adiantada.

É que dos autos constam “fotografias” extraídas da gravação fornecida pelo estabelecimento bancário que disponibiliza a ATM em questão, e, demonstrando o ocorrido, apresentam também um registo que não coincide com o mencionado “documento de fls. 11”, (notando-se igualmente que pelo Tribunal a quo não foram adequadamente explicitadas as razões da decisão que proferiu).

Ora, não se nega que em causa estão – podem estar – apenas uns (poucos) minutos.

Porém, atenta a matéria em questão, a mesma apresenta-se decisiva para a boa decisão da causa.

Nesta conformidade, constatado o assacado “erro notório”, e não sendo caso de “renovação da prova”, já que, em nossa opinião, o esclarecimento em questão implica – necessáriamente – uma reprodução de toda a prova produzida, melhor dizendo, um “novo julgamento”, (e não uma mera “renovação da prova”), há pois que se determinar o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso, ordenando-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Sem custas.

Macau, aos 29 de Setembro de 2016
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa

Chan Kuong Seng (vencido na votação da decisão do recurso, porque entendo que deve ser mantida a decisão condenatória recorrida, porque a fundamentação probatória exposta pelo Tribunal “a quo” é coerente e lógica e não ofende quaisquer normas da prova legal, “leges artis” ou regras da experiência).

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