Processo nº 626/2015
Data do Acórdão: 06OUT2016
Assuntos:
Autorização de residência temporária
Ónus de prova
Situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência
Poder discricionário
SUMÁRIO
1. Perante a factualidade que lhe era tão desfavorável, se o particular pretendesse invocar justa causa para excluir a sua culpa na omissão de comunicar e na instrução do requerimento para a renovação com uma declaração falsa, é a ela incumbe não só o ónus de alegar os factos integráveis nas causas de exclusão da culpa, como também ónus de os provar.
2. Se a autorização de residência temporária tiver sido concedida, nos termos autorizados pelo artº 5º do Regulamento Administrativo nº 3/2005, em benefício do cônjuge do requerente principal, o seu estado civil de casado com o beneficiário não pode deixar de ser tida como situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência, a que se refere o artº 18º do mesmo regulamento.
3. No exercício do poder discricionário em que a Administração goza na sua actuação necessariamente uma certa margem de liberdade, ao Tribunal cabe verificar se existe uma correspondência entre os pressupostos de factos legalmente previstos e os factos verificados no caso concreto e a adequação do acto administrativo ao fim legal para que lhe é conferido o poder discricionário, assim como o controlo do respeito pelos princípios gerais da actividade administrativa.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 626/2015
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificada nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que lhe cancelou a autorização de residência temporária, concluindo e pedindo:
a) Recorre-se do Despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, datado de 7 de Maio de 2015;
b) Estão reunidos os pressupostos processuais;
c) O despacho recorrido enferma do vício de forma, porquanto foi omitida a instrução do processo, de onde resultaria que inexiste o menor indício de que a recorrente agiu com "a intenção de enganar a Administração";
d) Deverão, por isso, ser anulados todos os actos posteriores à audiência prévia da recorrente, então, na qualidade de interessada;
Quando assim se não entenda o que se admite sem conceder,
e) Deverá ser anulado o despacho recorrido, por errada interpretação da lei ou por uma "total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários".
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso como se peticiona, com todas as consequências legais.
Assim se fazendo JUSTIÇA.
Citado, o Senhor Secretário para a Economia e Finanças contestou pugnando pelo não provimento do recurso.
Não havendo lugar à produção de provas, foram a recorrente e a entidade recorrida notificadas para apresentar alegações facultativas.
Veio apenas a recorrente apresentá-las reiterando grosso modo os mesmos fundamentos já deduzidos na petição do recurso.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público, no seu douto parecer, pugnando pelo provimento parcial do recurso.
É tida por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* A recorrente é titular do passaporte da RPC;
* A recorrente requereu em 09JUN2008, mediante aquisição de imóveis, a fixação da residência temporária, tendo feito beneficiar a pretendida autorização ao seu cônjuge B e à sua filha menor C;
* No momento do requerimento inicial, a recorrente era casada com B;
* Por despacho do Chefe do Executivo de 20JUL2009, foi concedida à ora recorrente, ao seu cônjuge B e à sua filha C autorização de residência temporária;
* A recorrente divorciou-se do seu marido B em 22SET2009;
* Mediante o requerimento datado de 14FEV2012, a recorrente pediu, para ela própria e em benefício ao seu agregado familiar, a renovação da autorização de residência temporária;
* Para o efeito a recorrente instruiu o requerimento datado de 14FEV2012 com a declaração, assinada por ela, de que ela própria mantinha a relação conjugal com B (cf. fls. 73 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
* Por despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 18JUN2012, foi renovada a autorização de residência temporária à recorrente, a B e à filha de ambos;
* Em 15AGO2014, a recorrente comunicou ao IPIM o facto de ela se ter divorciado de B; e
* Por despacho datado de 07MAIO2015 do Secretário para a Economia e Finanças, foi determinado o cancelamento da autorização de residência temporária concedida à ora recorrente e a B e declarada a caducidade da autorização de residência temporária concedida à filha da recorrente por ter entretanto expirado o prazo de validade.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexiste nulidades.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Inexistem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões tecidas na petição do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da omissão de instrução;
2. Do erro dos pressupostos de direito; e
3. Da total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Então vejamos.
1. Da omissão de instrução
A recorrente entende que a entidade recorrida não procurou averiguar todos os factos por ela alegados no procedimento administrativo, que na sua óptica, apontam no sentido de que ela não agiu com dolo nem com a intenção de enganar a Administração ao instruir o requerimento para a renovação da autorização de residência temporária com a declaração de que, no momento, ela mantinha os laços matrimoniais com o seu ex-cônjuge B.
Os tais factos alegados pela recorrente são o facto de ela própria se ter limitado a assinar “em branco” o impresso/requerimento para a renovação da autorização de residência e o de o impresso ter sido totalmente preenchido por quem a representava para o efeito.
Na esteira desse raciocínio, a recorrente defende que, não tendo procurado investigar a veracidade dos tais factos, a Administração violou, por omissão de instrução, o disposto no artº 86º/1 do CPA, à luz do qual “o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito.”.
Não tem razão a recorrente.
Ora, o fundamento em que se apoiou a Administração para o cancelamento da autorização de residência é o facto de a recorrente não cumpriu o seu dever de comunicação a que se refere o artº 18º/3 do Regulamento Administrativo nº 3/2005, que reza:
1. O interessado deve manter, durante todo o período de residência temporária autorizada, a situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão dessa autorização.
2. A autorização de residência temporária deve ser cancelada caso se verifique extinção ou alteração dos fundamentos referidos no número anterior, excepto quando o interessado se constituir em nova situação jurídica atendível no prazo que lhe for fixado pelo Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau ou a alteração for aceite pelo órgão competente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, o interessado deve comunicar ao Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau a extinção ou alteração dos referidos fundamentos no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração.
4. O não cumprimento sem justa causa da obrigação de comunicação prevista no número anterior, dentro do respectivo prazo, poderá implicar o cancelamento da autorização de residência temporária.
A lei impõe ao interessado na fixação de residência em Macau o ónus de comunicar ao IPIM as eventuais alterações das situações juridicamente relevantes à concessão da autorização, sob pena de cancelamento da autorização.
Conforme se vê na matéria de facto assente, ficou provado que:
* No momento do requerimento inicial, a recorrente era casada com B;
* A recorrente divorciou-se do seu marido B em 22SET2009;
* Mediante o requerimento datado de 14FEV2012, a recorrente pediu, para ela própria e em benefício ao seu agregado familiar, a renovação da autorização de residência temporária;
* Para o efeito a recorrente instruiu o requerimento datado de 14FEV2012 com a declaração, assinada por ela, de que ela própria mantinha a relação conjugal com B (cf. fls. 73 do processo administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
Perante esta factualidade, para nós bem demostrativa não só da não comunicação atempada ao IPIM do divórcio ocorrido em 2009, como também da reafirmação solene da manutenção dos laços matrimoniais com B em 2012, cremos que a Administração não era obrigada a investigar os factos simplesmente alegados pela recorrente para tentar afastar a sua culpa na não comunicação atempada e na reafirmação solene de um facto que não corresponde à verdade.
Pois, face ao disposto do acima citado artº 68º/1 do CPA, a Administração já investigou toda a factualidade que a habilita a tomar uma decisão no sentido de cancelar a autorização.
Perante a factualidade que lhe era tão desfavorável, se a recorrente pretendesse invocar justa causa para excluir a sua culpa na omissão de comunicar e na instrução do requerimento para a renovação com uma declaração falsa, é a ela incumbe não só o ónus de alegar os factos integráveis nas causas de exclusão da culpa, como também o ónus de os provar.
Na verdade, face ao disposto no artº 87º/1 do CPA, cremos que, numa situação idêntica à dos autos, o interessado particular não fica dispensado de cumprir o ónus de prova dos factos, por ela alegados para tentar afastar as eventuais consequências jurídicas resultante da ilicitude da sua acção ou da sua omissão, pois de outro modo, poderia conduzir a uma situação algo absurda, isto é, a Administração, antes de extrair da comprovada actuação do particular, contrária à lei, teria de procurar afastar a verificação de todas e qualquer das causas hipotéticas de exclusão de ilicitude ou de exculpação!
Portanto, in casu, tendo a Administração já investigado todos os factos relevantes à decisão do cancelamento, o acto recorrido não padece do alegado vício da omissão de instrução.
2. Do erro dos pressupostos de direito
Para a recorrente, o seu estado de casada com B não é uma situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência. Portanto, ao cancelar a autorização de residência temporária com fundamento na não comunicação atempada do divórcio, a Administração cometeu erro de direito.
Interesse saber se o estado civil de casada com B deve ser ou não tido como situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência.
Nos termos do disposto no artº 5º do Regulamento Administrativo nº 3/2005, podem habilitar-se à autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau os membros do agregado familiar do requerente, nomeadamente o cônjuge.
In casu, a recorrente, enquanto requerente principal, pediu, no seu requerimento inicial que a autorização de residência temporária fosse estendida ao seu agregado familiar, isto é, ao seu marido e à sua filha menor.
E ao seu marido B veio efectivamente a ser concedida a autorização de residência temporária.
De acordo com os elementos existentes nos autos do procedimento administrativo, a autorização de residência temporária concedida a B deve-se exclusivamente ao facto de ele ser cônjuge da requerente principal, ora recorrente.
Assim sendo, o estado civil da requerente com B não pode deixar de ser uma juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência.
Improcede assim esta parte do recurso.
3. Da total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários
A recorrente defende que como o artº 18º do Regulamento Administrativo nº 3/2005 reza que só o não cumprimento da comunicação “sem justa causa” é que “poderá implicar” aquele cancelamento, esta consequência não é automática, e conclui que o despacho recorrido é de total desrazoabilidade, perante a situação em concreto.
É verdade, ao empregar a expressão “poderá implicar o cancelamento”, o artº 18º/4 do Regulamento Administrativo nº 3/2005 está conferir à Administração poder discricionário para decidir se vai cancelar ou não, consoante as circunstâncias concretas.
Como se sabe, no exercício do poder discricionário em que a Administração goza na sua actuação necessariamente uma certa margem de liberdade, ao Tribunal cabe apenas verificar se existe uma correspondência entre os pressupostos de factos legalmente previstos e os factos verificados no caso concreto e a adequação do acto administrativo ao fim legal para que lhe é conferido o poder discricionário, assim como o controlo do respeito pelos princípios gerais da actividade administrativa.
In casu, foi com base na falta de comunicação atempada da cessação da situação jurídica determinante da autorização de residência temporária que a Administração decidiu cancelar a autorização de residência temporária.
E a falta de comunicação atempada é justamente o pressuposto de facto susceptível de gerar o cancelamento da autorização de residência temporária, face ao disposto no artº 18º do Regulamento Adminstrativo nº 3/2005, que reza:
1. O interessado deve manter, durante todo o período de residência temporária autorizada, a situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão dessa autorização.
2. A autorização de residência temporária deve ser cancelada caso se verifique extinção ou alteração dos fundamentos referidos no número anterior, excepto quando o interessado se constituir em nova situação jurídica atendível no prazo que lhe for fixado pelo Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau ou a alteração for aceite pelo órgão competente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, o interessado deve comunicar ao Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau a extinção ou alteração dos referidos fundamentos no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração.
4. O não cumprimento sem justa causa da obrigação de comunicação prevista no número anterior, dentro do respectivo prazo, poderá implicar o cancelamento da autorização de residência temporária.
Há obviamente a total correspondência entre o previsto na lei e o verificado no caso em apreço.
Quanto ao fim legal para que é conferido o poder discricionário, compreende-se perfeitamente porque é que a lei impõe a comunicação obrigatória das alterações da situação determinante da concessão da autorização e a possível consequência do cancelamento da autorização.
Pois a norma em causa visa assegurar o controlo por parte da Administração do cumprimento da lei reguladora de residência temporária, à luz da qual só justifica a residência temporária de quem esteja a manter efectivamente a qualidade do membro do agregado familiar do requerente principal durante todo o período de validade da autorização.
A recorrente limitou-se alegar conclusivamente que o acto recorrido é anulável por uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, não tendo todavia concretizado em que consiste a alegada total desrazoabilidade, nomeadamente, em que termos se verifica erro grosseiro ou manifesto na opção pelo cancelamento, ou de que forma foram infringidos os princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça, da proporcionalidade e da boa-fé.
Antes pelo contrário, para nós, a decisão tomada pela Administração é justamente o acto que a lei a autoriza a praticar e o acto que se adequa à prossecução do fim da lei, que como vimos, é assegurar o controlo da efectividade da situação determinante do deferimento da autorização de residência temporária e intimidar os beneficiários para não defraudar a lei.
Também improcede esta parte do recurso.
Em conclusão:
4. Perante a factualidade que lhe era tão desfavorável, se o particular pretendesse invocar justa causa para excluir a sua culpa na omissão de comunicar e na instrução do requerimento para a renovação com uma declaração falsa, é a ela incumbe não só o ónus de alegar os factos integráveis nas causas de exclusão da culpa, como também ónus de os provar.
5. Se a autorização de residência temporária tiver sido concedida, nos termos autorizados pelo artº 5º do Regulamento Administrativo nº 3/2005, em benefício do cônjuge do requerente principal, o seu estado civil de casado com o beneficiário não pode deixar de ser tida como situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência, a que se refere o artº 18º do mesmo regulamento.
6. No exercício do poder discricionário em que a Administração goza na sua actuação necessariamente uma certa margem de liberdade, ao Tribunal cabe verificar se existe uma correspondência entre os pressupostos de factos legalmente previstos e os factos verificados no caso concreto e a adequação do acto administrativo ao fim legal para que lhe é conferido o poder discricionário, assim como o controlo do respeito pelos princípios gerais da actividade administrativa.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente o recurso interposto pela recorrente A.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 6UC.
Registe e notifique.
RAEM, 06OUT2016
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Lai Kin Hong Joaquim Teixeira de Sousa
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng