Processo n.º 176/2016
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 20/Outubro/2016
ASSUNTOS:
- Embargos; prova pericial sobre autenticidade da assinatura no título executivo
SUMÁRIO :
Se se comprova que o documento que consubstancia o título executivo, mediante prova pericial, com muita probabilidade foi assinado pela executada, numa percentagem entre 70% e 85%;
Se constam desse documento dados pessoais e identificativos que, em princípio, só ao próprio pertencem;
Se não se comprova um alegado desconhecimento pela executada sobre a pessoa da exequente;
Não sendo normal, nem crível que alguém demande outrem sem o conhecer, invocando um falso empréstimo e mais padronizada sendo a postura do devedor que se tenta furtar dos seus compromissos, negando a dívida,
Será de relevar a assinatura aposta no documento e conferir-lhe força executiva, mais devendo o embargante ser condenado como litigante de má fé por deduzir oposição cuja falta de fundamentos não devia ignorar.
O Relator,
Processo n.º 176/2016
(Recurso Civil)
Data : 20/Outubro/2016
Recorrente : A
Recorrida : B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A, inconformado com a sentença que julgou improcedentes os embargos que deduziu à execução que lhe moveu B, vem recorrer, alegando, em síntese:
A - A Recorrida apresentou uma versão dos factos, mas nenhum meio de prova para os comprovar;
B - A Recorrente, invocando a falsidade do título executivo, mormente da assinatura nele aposta, apresentou uma testemunha - seu próprio marido - que referiu que a Recorrente nunca conheceu a Recorrida, nem com ela teve qualquer relação;
C - A Recorrente pediu ainda que fosse realizado exame pericial à sua assinatura, tendo o mesmo tido o resultado de um grau de certeza objectivo de entre 70% a 85% de probabilidade de ter sido a mesma a ter assinado tal contrato;
D - Salvo o devido respeito, não nos parece que tal grau de certeza seja suficiente para decidir que terá sido a Recorrente a outorgar o contrato de mútuo que serve de título executivo à execução embargada;
E - O tribunal a quo não teve ainda em conta a situação pessoal, social e económica da Recorrente, que exigiria uma decisão mais cuidada quanto a tal facto, mais tendo em conta a função social que a mesma deve ter também;
F - A situação pessoal e financeira da Recorrente não lhe permitiria, em consciência, actuar da forma como lhe é imputada, assinando um contrato de mútuo de tão elevado valor, pois bem saberia que não lhe seria possível pagar nas condições e termos exigidos em tal contrato;
G - Na resposta à Base Instrutória, devidamente reclamada pela Recorrente, o tribunal a quo serviu-se de alguns factos alegados pela Recorrida, sem que a mesma tivesse apresentado qualquer prova sobre os mesmos. No entanto, não teve em conta os documentos que atestam bem a referida situação da Recorrente, para firmar o raciocínio que levou à sua decisão;
H - Se tal prova não sustenta um grau de certeza que possamos considerar razoável, quanto à autoria da assinatura aposta no contrato em causa, por parte da Recorrente, menos ainda nos parece que possa sustentar uma condenação como litigante de má- fé da mesma;
I - A condenação como litigante de má-fé é uma situação muito grave no processo, destinada a penalizar aqueles que, comprovadamente, usam o processo com fins dilatórios ou tentam falsificar a verdade material dos factos;
J - Para que haja tal condenação e penalização, deve haver um grau muito elevado de certeza quanto ao comportamento processual ilícito, o que, atento o que acima se expôs, não é o caso;
L - Pelo exposto, terá o Exmo. tribunal a quo errado no seu julgamento, bem como condenado injustamente a Recorrente como litigante de má- fé.
Termo em que,
com os fundamentos acima exposto, deverão V. Exas revogar a douta decisão recorrida, fazendo, assim, a devida
JUSTIÇA!
2. B, com os demais sinais dos autos à margem acima referenciados, vem responder, dizendo, a final:
1) A recorrida apresentou, nos termos do artigo 335.º n.º 1 do Código Civil de Macau, ao tribunal o recibo de empréstimo assinado pela recorrente para servir de título de execução, cumprindo, assim, o ónus da prova que lhe cabe.
2) A recorrente alegou nos embargos que a assinatura aposta no referido recibo de empréstimo é falsificada, pelo que, o ónus da prova deve caber à recorrente.
3) Dado que à recorrente cabe o ónus da prova, não é necessário que a recorrida apresenta qualquer prova para comprovar que tal assinatura foi aposta pela recorrente.
4) O relatório pericial referiu que a probabilidade é entre 70% e 85%, isto quer dizer que “é muito provável” que foi assinado pela recorrente.
5) Nos termos do artigo 383.º do Código Civil de Macau, “A força probatória da perícia é fixada livremente pelo tribunal”.
6) Tendo em conta a credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento e conjugando com a conclusão do relatório pericial, o Venerando Tribunal Colectivo deu como provado que a assinatura foi feita pela recorrente.
7) Dado que o douto acórdão não violou qualquer lei, a recorrida entende que o acórdão é completamente correcto.
Nestes termos, solicita aos MM.ºs Juízes do Tribunal de Segunda Instância que julguem improcedente o recurso, devendo, em consequência, manter-se a decisão do acórdão, rejeitando o recurso interposto pela recorrente e fazendo-se a habitual Justiça!
3. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
Da Matéria de Facto Assente:
- O título executivo da execução apensa consiste na declaração de dívida com data de emissão a 26 de Novembro de 2010 e com o valor de HKD$240.000,00, equivalente a MOP$247.200,00, constante do documento n.º 2 junto com a petição inicial da execução apensa, a fls. 6 dos respectivos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido (alinea A) dos factos assentes).
Da Base Instrutória:
- A declaração de dívida referida em A) dos factos assentes foi assinada pela embargante (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
III – FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por revisitar o julgamento de facto efectuado, considerando que a embargante, ora recorrente impugna a matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1ª instância, ao considerar que o documento que serviu de título executivo foi efectivamente assinado pela executada, consubstanciando um empréstimo que lhe fora feito pela exequente B.
2. O argumento principal em que se estriba a recorrente baseia-se no facto de, em sua opinião, o único elemento de prova em que o tribunal “a quo” se terá louvado assentaria na prova pericial à assinatura do documento de reconhecimento da dívida de HKD$240.000,00 que concluiu no sentido de que havia a probabilidade de a assinatura ali aposta ser da executada, ora recorrida, era de 70 a 85%, num grau de “muito provável”.
A questão afigura-se simples, na medida em que passa por tomar uma posição entre duas, importando justificar a razão da solução adoptada.
Das duas, uma: ou a executada assinou o documento que titula a referida quantia mutuada ou não. A executada nega a assinatura como sendo sua e nega até que conhecesse a exequente, que nunca a tivesse visto e que não soubesse quem ela seja.
É isto verosímil? O que é mais credível? Uma pessoa pôr uma execução contra alguém que não conhece e vir a juízo com um documento, dizendo que foi assinado por ela, sem o ser ou o real devedor furtar-se ao pagamento de uma dívida, dizendo que não há dívida, que nunca assinou o documento?
Temos para nós que entre as duas versões aquela que se afigura como a mais consentânea com a natureza humana e com os normais procedimentos é a segunda alternativa. Não é crível, expectável, normal, que uma pessoa vá demandar alguém, que não conhece, ao acaso, sem motivo, reclamando uma dívida inexistente. Isto, à partida, não se enquadra na racionalidade humana.
Mas não nos ficamos apenas por uma proclamação de fé, pois há, no, caso, algo mais, para além deste protesto de não se acreditar que tal comportamento seja possível.
A tese que vingou no Colectivo e no julgamento dos três Senhores Juízes que analisaram o caso estribou-se ainda em elementos objectivos que fazem inclinar a balança para o lado da exequente. Desde logo, o exame pericial que vai no sentido de a assinatura, com muita probabilidade, numa percentagem entre 70% e 85% pertencer à executada embargante; depois, o facto de no documento constarem os dados pessoais e de identificação da executada – como é que os obteve? Seguramente que não foi ao acaso; ainda o facto de a embargante ter conhecimento da fracção da executada – não se escolhe uma pessoa ao acaso, atribuindo-se-lhe uma dívida inexistente e vai-se depois ver se tem bens susceptíveis de serem executados; ainda, o facto de não ter logrado provar o desconhecimento da executada que dizia não saber quem fosse; para já não falar numa situação de dívidas confessadas a terceiros o que revela uma situação de necessidade de recurso a empréstimos para o seu trato de vida, facto lateral que resulta do depoimento da testemunha da própria embargante.
Não se trata, assim, apenas de uma questão de fé numa prova pericial que não se apresenta como absolutamente decisiva.
Nada, aliás, que não tenha sido evidenciado no douto acórdão do Colectivo, na sua motivação do julgamento da matéria de facto:
“A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos de execução, nos demais dados constantes dos autos e no exame pericial de fls. 89 a 99 e no depoimento da testemunha ouvida em audiência, que depôs sobre os quesitos da base instrutória, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permitiu formar uma síntese quanto aos apontados factos.
Na ponderação da prova produzida, o tribunal teve em conta que do documento junto a fls. 6 dos autos de execução que serve de título executivo, além de outros dados pessoais da Embargante, consta o número do Bilhete de Identidade da Ré e a sua morada (cfr. certidão e requerimento de fls. 18 a 20 dos presentes autos).
A testemunha que depôs sobre os quesitos da base instrutória fez as suas declarações com base no que esta lhe transmitira confirmando a versão dos factos alegada pela Embargante de que esta não conhecia a Embargada. No entanto, a mesma testemunha chegou a referir que a Embargante tinha uma fracção autónoma no edifício XX que fora, entretanto, vendida por causa de uma dívida perante terceiros o que confirma a alegação feita pela Embargada de que a Embargante tinha este imóvel e tinha uma dívida perante terceiros.
Apesar de a Embargada não ter apresentado nenhuma prova acerca da razão por que alegadamente fez o empréstimo à Embargante, o facto de constar do documento junto a fls. 6 dos autos de execução os citados dados pessoais da Embargante e o de o marido desta ter confirmado que a mesma devia dinheiro perante terceiros e tinha uma fracção autónoma no edifício XX, toma pouco verossímil a alegação da Embargante de que não conhecia a Embargada. É que, não conhecendo a Embargante, não se consegue perceber como é que a Embargada sabia da existência da fracção autónoma no edifício XX e teve dados pessoais para fazê-lo constar do documento junto a fls. 6 dos autos de execução.
Nem a alegação feita pela Embargante de que pediu um empréstimo a um terceiro para o qual assinou um documento toma verossímil a possibilidade de a Embargada se ter apropriado deste documento e nele ter preenchido os citados dados pessoais da Embargante. É que, a Embargante alega que esse documento era em formato AS, que dele constava o nome do mutuante, um indivíduo de sexo masculino, e o montante mutuado de HK$50.000,00.
A isso acresce que o exame pericial é no sentido de a probabilidade de a assinatura constante do documento junto a fls. 6 dos autos de execução ser de 70 a 85%.
Articulando esse resultado do exame pericial com o expendido mais acima, o tribunal considera que a prova demonstra que o documento foi assinado pela Embargante.”
3. Quanto à condenação como litigante de má-fé, nada a apontar à condenação sobrevinda.
A comprovação da dívida, negada pela embargante, configura um acto pessoal e próprio praticado por ela, que, obviamente, não podia deixar de conhecer e, ao negá-lo, a sua actuação processual não deixa de ser torpe, visando dificultar a realização da justiça, colocando um ónus pesado sobre a contraparte e sobre o tribunal no sentido do apuramento de factos, tarefa mais difícil em face da mentira da parte.
Nos tribunais não pode valer tudo. As partes para se defenderem não podem usar de deslealdade e mentira. O devedor, se pode dizer que não deve, porque pagou ou por outra causa de extinção da sua obrigação, já não pode negar o empréstimo se este foi efectuado pelo credor.
Esta conduta reprovável integra-se na previsão do art. 385º/2/a do CPC, na exacta medida em que a embargante deduziu uma oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar.
Em suma:
Se se comprova que o documento que consubstancia o título executivo, mediante prova pericial, com muita probabilidade foi assinado pela executada, numa percentagem entre 70% e 85%;
Se constam desse documento dados pessoais e identificativos que, em princípio, só ao próprio pertencem;
Se não se comprova um alegado desconhecimento pela executada sobre a pessoa da exequente;
Não sendo normal, nem crível que alguém demande outrem sem o conhecer, invocando um falso empréstimo e mais padronizada sendo a postura do devedor que se tenta furtar dos seus compromissos, negando a dívida,
Será de relevar a assinatura aposta no documento e conferir-lhe força executiva, mais devendo o embargante ser condenado como litigante de má fé por deduzir oposição cuja falta de fundamentos não devia ignorar.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 20 de Outubro de 2016,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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