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Processo nº 633/2016 Data: 20.10.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “auxílio”.
Erro notório na apreciação da prova.
Contradição insanável.
“Águas de Macau”.



SUMÁRIO

1. O Tribunal decide a matéria de facto em conformidade com o “princípio da livre apreciação da prova” – art. 114° do C.P.P.M. – e com respeito às regras sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regras de experiência e legis artis.

Não é por o Tribunal dar mais relevo a um determinado meio de prova, (v.g., um depoimento), em detrimento de outro, que incorre em “erro notório na apreciação da prova”.

2. Existe contradição insanável da fundamentação quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém posições antagónicas, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

3. Provado estando que o arguido, (agindo livre e voluntáriamente) conduziu um barco, transportando indivíduos – ilegalmente – para Macau, onde vieram a “desembarcar na margem”, evidente é que incorreu na prática do crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, da Lei n.° 6/2004, (não sendo sequer de se colocar a questão das “águas de Macau”).

O relator,

______________________


Processo nº 633/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a final, a ser condenado como autor da prática em concurso real de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, e 1 crime de “resistência e coacção”, p. e p. pelo art. 311° do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 7 anos de prisão; (cfr., fls. 128 a 133-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado, o arguido recorreu.

Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“1. Conforme os autos, quer o acordo entre o recorrente e o indivíduo desconhecido (se realmente existisse) quer o pagamento de dinheiro dos 3 residentes do Interior da China em causa, foram realizados em Zhu Hai entre residentes do Interior da China.
2. O Decreto do Conselho de Estado n.º 665 só definiu as tradicionais áreas marítimas sob jurisdição da RAEM em 20 de Dezembro de 2015, ou seja, no dia do caso (30 de Outubro de 2015), não foram definidas as tradicionais áreas marítimas sob a jurisdição de Macau.
3. Mesmo estando perto da cabeça-de-ponte da Ponte da Amizade de Macau, como não foram definidas as tradicionais áreas marítimas sob a jurisdição, não se podia confirmar que o recorrente entrou na área de Macau.
4. Conforme a interpretação a contrário dos art.ºs 4.º e 5.º do Código Penal, quer o local da prática dos factos quer o local onde estava o recorrente ficam fora do âmbito de aplicação da lei penal de Macau, pelo que a lei penal de Macau não é aplicável ao recorrente.
5. Por outro lado, embora os 4 agentes da Alfândega indiquem que o recorrente foi o motorista do barco em causa, cabe salientar que, na altura foram 10 horas da noite, embora estivesse perto da margem, os candeeiros só iluminavam as ruas, estava ainda escuro no mar.
6. No caso, é pequena e grosseira a lancha a motor que transportou os 3 imigrantes clandestinos, os assentos de condutor e passageiros não são separados, perante várias fotos do recorrente exibidas pelos agentes da Alfândega os dois imigrantes clandestinos B e C não podiam confirmar que o recorrente era o motorista do barco que auxiliou a imigração clandestina.
7. O Tribunal a quo ignorou nomeadamente o teor da declaração para memória futura prestada pelo imigrante clandestino D, este já esclareceu e confirmou que “o arguido A não foi o condutor da lancha em causa, aquele condutor era mais alto e mais branco que o arguido e tinha cabelo mais comprido que estava separado do meio.” (vide a fls. 39v. dos autos)
8. Com base nisso, o recorrente entende que há erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal a quo deu assente que o recorrente foi o motorista do barco em causa.
9. Por outro lado, o Tribunal a quo deu provado que “Agindo em conjugação de esforços e mediante a distribuição de tarefas, o suspeito “E” levou com veículo os imigrantes clandestinos do Interior da China ao terminal marítimo e cobrou dinheiro para imigração clandestina, por conseguinte, o arguido A conduziu barco para transportar os imigrantes clandestinos a Macau sem passar posto fronteiriço. Assim, o arguido e “E” obtiveram interesse patrimonial.”
10. Porém, no acórdão recorrido, o Tribunal a quo deu não provado que o arguido A e o suspeito “E” praticaram mediante acordo os factos acusados.
11. O imigrante D afirmou expressamente que a quantia foi dada a “E”. Conforme os depoimentos dos 3 imigrantes clandestinos referidos, só se pode confirmar que um indivíduo chamado de “E” recebeu a quantia para imigração clandestina, se o Tribunal a quo deu não provado que o arguido A e o suspeito “E” praticaram mediante acordo os factos acusados, como podia pugnar na fundamentação que o recorrente “obteve assim para si próprio interesse patrimonial como remuneração”?
12. Obviamente, há contradição irreparável na fundamentação de que “o recorrente obteve assim para si próprio interesse patrimonial como remuneração””; (cfr., fls. 152 a 159-v e 218 a 246).

*

Respondendo, diz o Ministério Público:

“1. Quanto a se o local da prática de conduta em causa não fica dentro do âmbito regulamentado pela Código Penal de Macau, o Decreto do Conselho de Estado de 20 de Dezembro de 1999 já definiu as tradicionais áreas marítimas sob a jurisdição da RAEM.
2. O novo Decreto do Conselho de Estado de 2015 esclarece as tradicionais áreas marítimas sob jurisdição com base no anterior Decreto, de forma a facilitar a execução das autoridades de Macau, mas não nega as tradicionais áreas marítimas definidas no passado; isto é, quando o recorrente praticou o caso, já foram definidas e estavam vigentes as tradicionais áreas marítimas sob jurisdição, apenas não foram delimitadas por escrito.
3. Como indicou o recurso penal n.º 10/2015 do TSI, conforme os 4º a 8º factos provados, pode-se dar assente que o recorrente chegou às águas ao lado da margem da Ponte da Amizade, os agentes da Alfândega também exerciam funções nesse local e fizeram interceptação, pelo que, conforme o referido entendimento do TSI, o recorrente já entrou nas tradicionais áreas marítimas de Macau. Portanto, o Código Penal de Macau é aplicável ao local da prática.
4. Quanto ao erro notório na apreciação da prova, embora de acordo com os depoimentos dos 3 imigrantes clandestinos não se possa dar assente que o arguido foi o delinquente e uma testemunha até declare que o recorrente não foi o motorista, conforme a experiência de investigação do respectivo crime, os imigrantes clandestinos e os delinquentes têm certa relação de interesse, pode-se inferir que os depoimentos dos 3 imigrantes clandestinos têm pouca credibilidade.
5. No entanto, são explícitos os depoimentos dos 4 agentes da Alfândega, eles descreveram que os 3 imigrantes clandestinos desembarcaram do barco conduzido pelo recorrente, só havia o único barco do recorrente no mar, os agentes seguiram o recorrente e nunca deixaram-no afastar-se da vista até que conseguiram o interceptar, e encontraram o arguido no barco.
6. Pelo que, o Ministério Público entende que são explícitos e confiáveis os depoimentos dos agentes da Alfândega, em conjugação das informações obtidas dos referidos depoimentos dos 3 imigrantes clandestinos, pode-se dar provados suficientemente os factos acusados e não há erro notório na apreciação da prova.
7. No tocante à contradição irreparável na fundamentação, após feita sintetizadamente uma análise sobre os factos acusados do Ministério Público e os factos provados e não provados no acórdão, o Ministério Público entende que há um lapso de escrita no 1º facto provado.
8. Dos factos não provados se pode ver que o Tribunal recorrido deu não provado que um indivíduo chamado de “E” praticou os factos acusados, excluiu expressa e sumariamente a verificação de envolvimento dum indivíduo chamado de “E”.
9. Analisadas as provas, podemos confirmar que mediante distribuição de tarefas e em conjugação de esforços, o indivíduo desconhecido cobrou o dinheiro para imigração clandestina e o recorrente conduziu o barco para Macau.
10. Pelo que, segundo os factos dados não provados pelo Tribunal recorrido, pode-se inferir que o Tribunal recorrido escreveu, por erro, nos factos provados a parte não provada sobre “E”, não sendo a alegada contradição irreparável na fundamentação”; (cfr., fls. 180 a 183 e 247 a 257).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Acusado da prática de um crime de auxílio à imigração ilegal e de um crime de resistência, previstos e puníveis pelos artigos 14.°, n.°s 1 e 2, da Lei n.° 6/2004, e 311.° do Código Penal, viria o arguido e ora recorrente A, após julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, a ser condenado, pela prática de tais crimes, nas penas de prisão de 6 anos e 6 meses e de 1 ano, respectivamente, cujo cúmulo jurídico redundou na pena única de 7 anos de prisão, tudo conforme acórdão de 26 de Julho de 2016, exarados nos autos CR2-16-0066-PCC.
Inconformado, vem recorrer da decisão condenatória, à qual imputa erro na aplicação da lei, erro notório na apreciação da prova, e ainda contradição insanável na fundamentação, pedindo para ser absolvido do crime de auxílio à imigração ilegal ou, então, punido sem a agravação resultante do n.° 2 do artigo 14.° da Lei 6/2004.
Quanto ao alegado erro de direito, traduzido na suposta inaplicabilidade da lei de Macau, bem como quanto ao invocado erro notório na apreciação da prova, acompanhamos, por judiciosas e pertinentes, as doutas considerações do Exm.° colega na sua resposta à motivação do recurso.
A aplicação da lei de Macau ao caso não coloca qualquer problema de violação do princípio da territorialidade consagrado no artigo 4.° do Código Penal, contrariamente ao que o recorrente intenta convencer.
Quando se fala de território, enquanto realidade que dá corpo ao referido princípio, não se está a visar apenas a terra firme, mas também as águas, nomeadamente o chamado mar territorial, o subsolo e o correspondente espaço aéreo. Pois bem, se é certo que a Região Administrativa Especial de Macau comporta a península de Macau e as ilhas da Taipa e Coloane, conforme Decisão da Assembleia Popular Nacional sobre o Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, adoptada em 31 de Março de 1993 pela primeira Sessão da Oitava Legislatura, não é menos exacto que, após a transferência de soberania, a Região Administrativa Especial de Macau manteve a jurisdição sobre as anteriores áreas marítimas de Macau, como se colhe do Decreto do Conselho de Estado da República Popular da China n.° 275, de 7 de Dezembro de 1999, que aprovou e promulgou o Mapa da Divisão Administrativa da Região Administrativa Especial de Macau. Ora, as anteriores áreas marítimas de Macau, de que fala o referido Decreto do Conselho de Estado, ou as tradicionais áreas marítimas da RAEM, de que fala o Regulamento Administrativo n.° 21/2001, cujo policiamento incumbe aos Serviços de Alfândega, coincidirão, grosso modo, com aquilo que a Lei n.° 6/86/M, de 26 de Julho, entretanto revogada, considerava domínio público hídrico, não se suscitando dúvidas de que o arguido navegava adentro de tais áreas marítimas, quando foi interceptado, como bem resulta do processo e o tribunal deu como provado.
É este, aliás, o entendimento que tem sido acolhido por este Tribunal de Segunda Instância, e que foi reafirmado em recente acórdão, de 25 de Fevereiro de 2016, nos autos de recurso penal n.° 46/2016.
De resto, sendo um dado adquirido que o arguido conseguiu aportar e fazer desembarcar em terra os três imigrantes que transportou, é óbvio que sempre o facto tinha que considerar-se praticado em Macau – onde, em última análise, se consumou a produção do resultado típico –, por força do comando do artigo 7.° do Código Penal, também por esta via se mostrando aplicável ao caso a lei de Macau.
E no que toca ao invocado erro notório na apreciação da prova, o recorrente labora em equívoco.
O que se passa é que, perante depoimentos não coincidentes, o tribunal teve que destrinçar entre o que era verosímil e aceitável e aquilo que não possuía consistência, jogando com a globalidade da prova, com as regras da lógica e da experiência, e optando por uma versão em detrimento de outra ou outras, o que, de resto, explicitou devidamente. Isto não constitui obviamente qualquer erro de apreciação da prova, traduzindo apenas e tão só a exercitação do princípio da livre apreciação da prova, que, como é sabido, rege o julgamento da matéria de facto. Não pode o recorrente pretender seleccionar e interpretar apenas uma parte da prova, aquela que serve os seus interesses, e esquecer a restante, pondo em confronto, por exemplo, depoimentos não coincidentes relativamente à fisionomia do recorrente, e esquecendo que apenas se encontrava no local o recorrente, dentro do seu barco, que tripulava, e que ambos, recorrente e barco, foram rapidamente cercados pelas autoridades marítimas, não havendo margem para confusões quanto à hipotética intervenção de outras pessoas.
Nenhum erro se detecta, pois, muito menos o notório erro exigido pela norma do artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código do Processo Penal.
Improcedem, assim, os suscitados erros na aplicação da lei e na apreciação da prova.
Já quanto à aventada contradição na fundamentação, estamos em crer que ela ocorre.
Na verdade, foi dado como provado que o recorrente e um tal E, actuando em conjunção de esforços e mediante distribuição de tarefas, realizaram os actos necessários para colocarem clandestinamente em Macau os três imigrantes referenciados, transportando-os o E em veículo, do interior da China até Zhuhai, e conduzindo-os depois o recorrente, de barco, até Macau, em contrapartida do que receberam CNY $10,500.00 – cf., nomeadamente, a matéria dos factos provados elencada sob os n.°s 1, 2, 3 e 12; e, em colisão com essa asseverada co-autoria, dar-se-ia por não provado que o arguido A e o suspeito E tenham praticado os factos mediante acordo – cf. factos não provados.
A tentativa de reconduzir esta contradição a um mero lapso de escrita, ensaiada pelo Ministério Público na sua resposta à motivação, não encontra suficiente respaldo no texto da decisão, sendo certo que, não obstante a explicação avançada pelo Ministério Público, esse aventado lapso de escrita também não foi objecto de qualquer correcção, pelo que, salvo melhor juízo, é de afastar tal hipótese.
A contradição afigura-se patente e, a nosso ver, o texto decisório não oferece elementos interpretativos para a ultrapassar, pelo que a reputamos de insanável, tanto mais que, no caso concreto, não tendo o recorrente recebido directamente qualquer contrapartida pelo transporte, a comparticipação criminosa de um terceiro, o tal E ou outro, se revela imprescindível para a conclusão a que o acórdão chegou em matéria de vantagem patrimonial, interferindo, pois, na integração da conduta do arguido recorrente na previsão normativa do n.° 2 do artigo 14.° da Lei 6/2004.
Procede, a nosso ver, o invocado vício de contradição insanável da fundamentação, o que obriga ao reenvio do processo para novo julgamento, restrito à questão da co-autoria ou comparticipação, já que doutro modo se torna inviável a decisão da causa, indo, pois, nesse sentido o meu parecer”; (cfr., fls. 259 a 261).

*

Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 129-v a 130-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido dos autos recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material e em concurso real de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, e outro de “resistência e coacção”, p. e p. pelo art. 311° do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão, fixando-lhe o Colectivo a pena única de 7 anos de prisão.

Em sede do seu recurso, e como resulta das conclusões produzidas a final da motivação, coloca as questões seguintes:
- “Águas de Macau”;
- “Erro notório na apreciação da prova”; e,
- “Contradição insanável da fundamentação”.

Sem demoras, apreciemos.

–– Quanto à primeira, vejamos.

Tratando da questão das “Águas de Macau” (em sede de um recurso de uma decisão que rejeitou uma acusação), consignou-se – no Ac. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.° 46/2016 – o que segue:

“O Exmo. Juiz a quo ponderou – em síntese – no facto de a R.A.E.M. não abranger “áreas marítimas”, apenas “terrestres”, e considerando que o arguido não chegou a “entrar em Macau”, deu por inverificado o crime de “violação da proibição de reentrada”, p. e p. pelo art. 21° da Lei n.° 6/2004, pelo qual estava acusado, afastando também o seu eventual cometimento na forma tentada em virtude do impedimento legal do art. 22°, n.° 1 do C.P.M..
Ora, sem prejuízo do muito respeito por entendimento(s) que possa(m) existir sobre a questão das “águas de Macau”, eis o que em resultado da reflexão que nos foi possível efectuar parece de consignar.
Pois bem, (e sem se querer aqui recuar muito no tempo), importa atentar que a “matéria das águas” era em Macau regulada pela Lei n.° 6/86/M, (que estabelecia o “regime do domínio público hídrico” de Macau), e que pela Lei n.° 1/1999, (“Lei da Reunificação”), não foi adoptada como Lei da R.A.E.M.; (cfr., Anexo II, n.° 1, da dita Lei n.° 1/1999).
E, perante o assim estatuído – e à ausência de Lei (especial) a regular a matéria – reconhece-se que alguma controvérsia possa, (ou melhor, podia) existir.
Note-se pois que, hoje, a questão está ultrapassada.
Com efeito, com o Decreto n.° 665, (datado de 16.12.2015), do Conselho de Estado da República Popular da China foi aprovado o (novo) Mapa da Divisão Administrativa da R.A.E.M., tendo sido feitos ajustamentos das delimitações terrestres e definidas as áreas marítimas sob a jurisdição da R.A.E.M. que são delimitadas a partir de terra a leste e a sul de Macau, com uma área de 85 Km2; (cfr., Aviso do Chefe do Executivo n.º 128/2015, B.O., n.° Extraordinário, de 20.12.2015).
Porém, considerando que os factos dos presentes autos ocorreram em Setembro de 2015, há que enfrentar a questão.
Antes de mais, cabe referir que mesmo antes e durante a vigência da aludida Lei n.° 6/86/M era a matéria das “águas de Macau” algo “complexa”, o que não deixou de levar o Prof. Antunes Varela de se referir à mesma utilizando a expressão: “enigmático domínio hídrico de Macau”; (cfr., Conferência proferida em Fevereiro de 1996 na sala de Audiência dos Tribunais de 1ª Instância, in “Revista Jurídica de Macau”, n.° especial, pág. 459 e segs.).
E, se assim já era em plena vigência de regulamentação expressa, razoável é que se considere que perante o (aparente) “vazio legal” que se criou com a Lei n.° 1/1999, pior ficou a situação, disto sendo exemplos claros estudos vários sobre o tema elaborados; (cfr., v.g., Yang Jing Hui e Lei Xiang Qin, in “Estudos Comparativos das Leis Básicas de Macau e Hong Kong”, Fundação Macau, 1996, que consideram que a área da R.A.E.M. era só composta pela península de Macau e ilhas da Taipa e Coloane, e já não pela “área marítima adjacente”; Pedro Ferreira, in “Os Limites de Macau no Contexto da R.A.E. da R.P.C. após 1999”, B.F.D.F.D.M., 2001, Ano V, n.° 12, pág. 109 e segs., que inversamente, considera que se devia incluir tal “área marítima”; e, mais recentemente, os estudos de Kouk Kin, in “O Regime do Domínio Público Hídrico de Macau”, de Ai Lin Zhi, in “Estudo Jurídico do Problema sobre as Águas de Macau” e Guo Jing, in “Explanação sobre o Regime do Domínio Público Hídrico de Macau”, apresentados na Conferência Internacional sobre “As Novas Tendências de Reforma da Lei das Terras” que decorreu na Universidade de Macau, em 2009).
Contudo, e em nossa modesta opinião, (e abreviando), a situação e sua solução não se mostra tão complexa como à primeira vista pode parecer.
Com efeito, importa ter presente que a Lei n.° 1/1999, (que não adoptou como “Lei da R.A.E.M.” a Lei n.° 6/86/M), não deixou de estatuir que: “enquanto não for elaborada nova legislação, pode a R.A.E.M. tratar as questões aí reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica tendo por referência práticas anteriores”.
E que, expressamente em relação à “área da R.A.E.M.”, por Aviso do Chefe do Executivo n.° 7/1999, (promulgado em 23.12.1999), foi publicado o Decreto do Conselho de Estado da República Popular da China n.° 275, com o qual se aprovou o “Mapa da Divisão Administrativa da R.A.E.M.” que, em anexo, inclui uma “Menção” da qual consta que a R.A.E.M. “mantém a jurisdição sobre as anteriores áreas marítimas de Macau”, não se podendo igualmente olvidar que nos termos do art. 20° da Lei Básica da R.A.E.M.: “A Região Administrativa Especial de Macau pode gozar de outros poderes que lhe sejam atribuídos pela Assembleia Popular Nacional, pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional ou pelo Governo Popular Central”.
Nesta conformidade, evidente parece de concluir que a R.A.E.M. manteve, (ou continuou a exercer), a jurisdição sobre “áreas marítimas” que – habitual, tradicional e – anteriormente, eram reconhecidas ao Território de Macau.
E, (há que referir também que), só assim se compreende que a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes tenham (ou continuem a ter) atribuições a nível de planeamento urbanístico nas “costas marítimas”, (cfr., D.L. n.° 29/97/M de 07.07), que os Serviços de Alfândega tenham jurisdição no “domínio público hídrico”, (cfr., Lei n.° 11/2001), que a (hoje) Direcção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água tenham competência sobre as “áreas costeiras, portuárias e cais, cabendo-lhe o licenciamento da ocupação a título precário do domínio público hídrico”, etc …, (cfr., R.A. n.° 14/2013), e que na Lei de Bases da Segurança Interna da R.A.E.M. se preceitue que integra o sistema de segurança interna a então Capitania dos Portos, (hoje D.S.A.M.A.), no exercício da “Autoridade Marítima”; (cfr., Lei n.° 9/2002).
Aliás, este o sentido do que vem entendendo este T.S.I., (sendo disto exemplo o decidido em situações análogas nos Acs. de 21.11.2013, Proc. n.° 62/2013 e de 05.02.2015, Proc. n.° 10/2015), motivos não havendo para não se considerar adequado.
Uma nota final.
Podia-se ainda dizer que não se conhecendo os “limites das áreas marítimas de Macau”, (pois que à situação dos autos aplicável não nos parece o estatuído no atrás mencionado Decreto n.° 665), (totalmente) solucionada não se apresenta a questão.
Pois bem, como entra pelos olhos dentro, muito se poderá argumentar; (atente-se tão só nos aspectos históricos e culturas que a questão envolve).
Porém, eis o que se nos parece de dizer.
Admite-se que (algo) complexa poderá ser a tarefa de traçar (com rigor) os ditos limites; (cremos até não ser este o local para tal dada a extensão da argumentação iria implicar).
De facto, até no art. 5° da referida Lei n.° 11/2001 – que instituiu os Serviços de Alfândega, regulando a sua organização e atribuições – se define “área de jurisdição marítima da R.A.E.M.” como “as tradicionais áreas marítimas da R.A.E.M.”, “as áreas portuárias e os estaleiros de construção naval” e “o domínio público hídrico”.
Constata-se assim a pertinência da questão.
Contudo, no caso dos autos, (temos a tarefa facilidade pois que) ela não se justifica.
É que da factualidade vertida na acusação deduzida consta (expressamente) que o arguido esteve com a sua sampana no “(fundo do) Terminal Marítimo de Passageiros do Porto Exterior de Macau”, e que foi interceptado nas “proximidades da bacia do mar Junto à Ponte de Amizade”.
Ora, atento também o atrás citado art. 5° da Lei n.° 11/2001, cremos que sem esforço e com razoável segurança se mostra de concluir que estas “zonas” integram – já integravam – a “área de jurisdição marítima da R.A.E.M.”.
Dest’arte, não se mostrando de considerar a acusação deduzida “manifestamente infundada”, (já que possível é o enquadramento jurídico penal dos factos aí narrados no imputado crime do art. 21° da Lei n.° 6/2004), inviável é a manutenção da decisão recorrida, com o que procede o recurso interposto”.

Ora, mostrando-se adequado e mantendo-se válido tudo o que se consignou no mencionado Acórdão de 25.02.2016, evidente é a resposta quanto a questão em apreciação.

De facto, provado estando que “a lancha a motor conduzida pelo arguido chegou à margem aproximada à cabeça-de-ponte ao lado de Macau da Ponte da Amizade” e que “o arguido mandou B, C e D desembarcar e conduziu o barco afastando-se da margem”, dúvidas não pode haver que o arguido (agindo livre, voluntária e deliberadamente), “transportou os três imigrantes para Macau”, (tendo mesmo chegado à “margem”), proporcionando-lhes que “desembarcassem em Macau”, (e assim, que se introduzissem ilegalmente em Macau como efectivamente sucedeu), subsumindo-se, desta forma, esta sua conduta ao ilícito previsto no art. 14° da Lei n.° 6/2004.

Clarificado este aspecto, continuemos.

–– Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, há pois que dizer que não basta afirmar a sua existência para que o mesmo se verifique efectivamente, pois que não é por o Tribunal a quo dar mais relevo a um determinado meio de prova em detrimento de outro que se incorre em tal vício.

O Tribunal a quo decide a matéria de facto em conformidade com o “princípio de livre apreciação da prova” – art. 114° do C.P.P.M. – e com respeito às regras sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regras de experiência e legis artis.

E, no caso, foi o que sucedeu, limitando-se o arguido a tentar impor a sua versão, afrontando o aludido princípio ínsito no art. 114° do C.P.P.M., o que, como é óbvio, não colhe.

–– Por fim, quanto à assacada “contradição insanável da fundamentação”.

Temos entendido que se incorre em contradição quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.04.2016, Proc. n.° 239/2016, de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016 e de 14.07.2016, Proc. n.° 418/2016).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém posições antagónicas, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E, no caso dos autos, cremos que não se verifica a assacada “contradição”.

É verdade que nos termos da acusação se podia admitir que a mesma indiciava que o arguido, ora recorrente, e um tal “E”, praticaram o crime de “auxílio” em “conjunção de esforços e distribuição de tarefas”; (cfr., art. 1° e 3° da acusação, a fls. 128 e 129-v, notando-se todavia que não estava acusado de ter agido em “co-autoria”).

Porém, e de uma atenta leitura ao Acórdão recorrido (na sua versão original em língua chinesa, cfr., fls. 128 a 130-v), verifica-se que o Colectivo a quo afastou claramente todas as referências da acusação quanto a uma (eventual) “comparticipação” entre o ora recorrente e o referido “E”, dando apenas como provado que o ora recorrente acordou com um “individuo desconhecido”, (e não com o E), inexistindo, assim, (também), a alegada contradição, por se ter (expressamente) dado como “não provado” o indiciado “acordo”.

Dest’arte, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 20 de Outubro de 2016

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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa

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Proc. 633/2016 Pág. 27