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Processo nº 77/2016
(Autos de recurso contencioso)

Data: 27/Outubro/2016

Assuntos: Interdição de entrada na RAEM
  Princípio da presunção de inocência
  Falta de fundamentação
  Princípio da proporcionalidade

SUMÁRIO
1. A recusa de entrada na RAEM de não-residentes não está ligada à questão de saber se lhe deve ser aplicada alguma pena ou medida de segurança, enquanto reacção pública ao crime, caso em que terá sempre que ter em linha de conta o princípio da presunção de inocência, mas sim está inserida no âmbito do exercício da actividade administrativa, em que a Administração terá o dever e o cuidado de tomar decisões destinadas a satisfazer interesses públicos, nomeadamente, aplicando medidas de natureza meramente preventivas.
2. O acto recorrido não padece do vício de falta de fundamentação se qualquer destinatário comum (por referência à diligência normal do homem médio que tal deve ser aferido) fica a saber as razões de facto e de direito que levaram à aplicação da medida de interdição de entrada ao recorrente.
3. Face aos elementos carreados ao processo administrativo, indicia suficientemente a prática pelo recorrente de um crime de abuso de confiança.
4. Sendo assim, é razoável que a Administração tome medidas adequadas com vista a prevenir a criminalidade e salvaguardar a segurança pública, boa ordem e estabilidade sociais, nomeadamente proibindo o recorrente de entrar em Macau durante determinado período de tempo, neste caso por um período de três anos, não se vendo que essa medida seja manifestamente desproporcional ao objectivo que se pretende atingir com a prática do acto impugnado.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 77/2016
(Autos de recurso contencioso)

Data: 27/Outubro/2016

Recorrente:
- A

Entidade recorrida:
- Secretário para a Segurança

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, do sexo feminino, portadora do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong, melhor identificada nos autos, inconformada com o despacho do Exm.º Secretário para a Segurança de 4 de Novembro de 2015, que determinou a interdição de entrada na RAEM da recorrente pelo período de 3 anos, interpôs o presente recurso contencioso de anulação de acto administrativo, formulando as seguintes conclusões:
“1. O despacho recorrido é aquele do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 04/11/2015 que decretou a “interdição de entrada na RAEM, pelo período de 3 anos”, a A, ora recorrente.
2. O recurso é tempestivo.
3. A recorrente tem interesse legítimo no provimento do recurso.
4. O Despacho recorrido é anulável por violação de lei.
5. Mostram-se violadas as disposições consagradas nos artigos 29º, n.º 2º e 43º da Lei Básica da RAEM; e no artigo 14º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
6. A Recorrente tem de presumir-se inocente até ao trânsito em julgado de uma sentença que eventualmente a condene pelos factos invocados no Despacho recorrido, de onde é lícito concluir que não poderá ter (como teve) quaisquer efeitos na esfera jurídica da recorrente.
7. Não está igualmente fundamentado o Despacho recorrido quando, só agora – volvidos mais de 3 anos sem que tenha sido deduzida contra a recorrente qualquer acusação em processo-crime – é que se verifica o invocado risco para a “ordem e segurança públicas da RAEM”.
Finalmente,
8. O Despacho recorrido é claramente violador do “princípio da igualdade e proporcionalidade” ínsito no artigo 5º do CPA.”
Conclui, pedindo a procedência do recurso contencioso, e a consequente anulação do despacho recorrido.
*
Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 31 a 34 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, pugnando pela improcedência do recurso.
*
No uso da faculdade concedida pelo artigo 68º do Código de Processo Administrativo Contencioso, a recorrente apresentou alegações facultativas, nelas formulando as seguintes conclusões:
“1. O Despacho recorrido é aquele do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 04/11/2015 que decretou a “interdição de entrada na RAEM, pelo período de 3 anos”, a A, ora recorrente.
2. O recurso é tempestivo.
3. A recorrente tem interesse legítimo no provimento do recurso.
4. O despacho recorrido é anulável por violação de lei.
5. Mostram-se violadas as disposições consagradas nos artigos 29º, n.º 2 e 43º da Lei Básica da RAEM; e no artigo 14º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
6. A Recorrente tem de presumir-se inocente até ao trânsito em julgado de uma sentença que eventualmente a condene pelos factos invocados no despacho recorrido, de onde é lícito concluir que não poderá ter (como teve) quaisquer efeitos na esfera jurídica da recorrente.
7. Não está igualmente fundamentado o despacho recorrido quando, só agora – volvidos mais de 3 anos sem que tenha sido deduzida contra a recorrente qualquer acusação em processo-crime – é que se verifica o invocado risco para a “ordem e segurança públicas da RAEM”.
8. O despacho recorrido é claramente violador do “princípio da igualdade e proporcionalidade” ínsito no artigo 5º do CPA.
Finalmente,
9. O despacho recorrido é também anulável por “erro nos pressupostos de facto” porquanto à recorrente não são imputáveis “fortes indícios” da prática de qualquer crime.”
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Findo o prazo para alegações, o Ilustre Magistrado do Ministério Público deu o seguinte douto parecer:
“Devido ao requerimento de fls. 52 e ao douto despacho de fls. 55 dos autos, o presente recurso contencioso passa a ter por objecto o despacho do Exmo. Senhor Secretário para Segurança de 29/02/2016 (vide. fls. 66 a 67 do P.A.), despacho este que entretanto reformou e substitui o seu despacho datado de 04/11/2016 (vide. fls. 59 do P.A.).
Nas alegações de fls. 61 a 64 dos autos, a recorrente assacou ao acto recorrido a ofensa das disposições no n.º 2 do art. 29º e no art. 43º da Lei Básica, e no n.º 2 do art. 14º do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, a não fundamentação do período de 3 anos da interdição de entrada, a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, e o erro nos pressupostos de facto por inexistência de fortes indícios.
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Ora, proclama por unanimidade o Venerando TSI (Acórdãos nos Processos n.º 759/2007 e n.º 647/2012): A interdição da entrada na RAEM, sendo uma medida policial destinada a assegurar a paz e a tranquilidade social desta comunidade, não confronta com o princípio da presunção da inocência, previsto nos arts. 29º e 43º da Lei Básica.
Por sua vez, o Venerando TUI assevera peremptoriamente (Acórdão no Processo n.º 28/2014):
1. No caso de haver fortes indícios quanto à prática ou à preparação para a prática de crimes, a Administração pode decretar a interdição de entrada com fundamento na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM - art.º 12.º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 6/2004 e art.º 4.º, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003.
2. Com a previsão, como pressuposto da interdição de entrada, de existência de “fortes indícios” da prática do crime, não se pode falar na aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, já que a exigência legal, tão só, de fortes indícios se opõe logicamente à ideia de comprovação de prática do facto ilícito.
3. Não se aplica, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
No vertente caso, acontece que em 24/03/2014, a MMª JIC aplicou à recorrente e simultaneamente a outros 2 arguidos as medidas de coacção de TIR, da prestação de caução na quantia de MOP$100.000,00 e a apresentação periódica quinzenal, sendo esta última medida declarada extinta a requerimento do M.º P.º, por decurso do prazo legal. (vide. fls. 50 a 51 dos autos)
Sendo assim e em harmonia com as sensatas jurisprudências supra citadas, temos a firme convicção de que o despacho em escrutínio não ofende, de todo em todo lado, o princípio da presunção da inocência, nem do in dubio pro reo, sem infringir as disposições acima mencionadas – o n.º 2 do art. 29º e o art. 43º da Lei Básica, e ainda n.º 2 do art. 14º do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos.
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Do art. 115º do CPA podem-se extrair os cumulativos requisitos da fundamentação, a saber: 1º- a explicitude que se traduz na declaração expressa; 2º- a contextualidade no sentido de, em regra, constar da mesma forma em que se exterioriza a decisão tomada; 3º- a clareza; 4º- a congruência e, 5º- a suficiência. (Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho: Código do Procedimento Administrativo de Macau – Anotado e Comentado, pp. 637 a 642).
A jurisprudência mais autorizada ensina (Acórdão do STA de 10/03/1999, no processo n.º 44302): A fundamentação é um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente.
Procedendo à leitura atenciosa do texto integral do despacho em exame, temos toda a certeza de que o mesmo se encontra perfeitamente fundamentado, permitindo a recorrente a compreender as razões determinantes de fixação do período de três anos à interdição de entrada.
Deste molde, entendemos tranquilamente que não pode deixar de cair irremediavelmente em vão a arguição do vício de forma por falta de fundamentação.
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Tanto na petição como nas alegações facultativas, a recorrente não forneceu nenhuma colação. Daí flui que é flagrantemente insubsistente e impertinente a arguição da violação do princípio da igualdade.
No que diz respeito à interdição de entrada de indivíduos não residentes, as jurisprudências dos venerandos TSI e TUI têm sustentado, de forma constante de uniforme, que a fixação do período de interdição se insira na margem de discricionariedade da Administração, e o respeito pelo princípio da proporcionalidade na fixação do período de reentrada em Macau só em casos de erro grosseiro pode ser sindicado. (cfr. a título exemplificativo, os doutos acórdãos do TUI nos processos n.º 34/2007, n.º 83/2012 e n.º 34/2007, do TSI nos n.º 209/2007, n.º 654/2011, n.º 656/2012 e n.º 823/2012)
Aferindo, à luz da jurisprudência consolidada, o período de 3 anos fixado no despacho in questio, entendemos com sossego que o qual não contende com o princípio da proporcionalidade, nem padece de injustiça intolerável ou do erro grosseiro,
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Afigura-se-nos proficiente e acreditável a conclusão formulada no despacho recorrido, que reza «根據司法警察局的調查,特別是透過涉事公司會計提供資料、證人證言、單據影印本(非支付有關公司的費用),以及公司帳目資料等,顯示利害關係人及一名股東在管理涉事公司期間,將公司款項轉移到兩人登記開設的禮品店及為利害關係人支付與公司無關的工程費用,涉及款項達澳門幣一百三十多萬元。因此具有強烈跡象顯示其觸犯《刑法典》規定及處罰的信任之濫用罪,對於公共秩序及公共安全構成危害,現決定禁止其進入澳門為期三年。»
Por cautela, depositamos a confiança na prudência da MMª JIC e do ilustre colega titular do Inquérito n.º 11735/2013 no qual foram aplicadas as medidas de cocção, pelo que colhemos que existem fortes indícios no sentido de a recorrente ter cometido crime de abuso de confiança.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.”
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O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
Por despacho do Senhor Comandante da PSP, de 27.7.2015, foi aplicada à recorrente a medida de interdição de entrada na RAEM pelo período de cinco anos. (fls. 37 do processo administrativo)
Inconformada, interpôs recurso hierárquico junto do Exm.º Secretário para a Segurança. (fls. 52 e seguintes do processo administrativo)
A 4.11.2015, o Exm.º Secretário para a Segurança deu o seguinte despacho: (fls. 59 do processo administrativo)
“利害關係人針對治安警察局局長禁止其入境的決定提起本訴願,訴願內容在此予以完全轉載。
經分析司法警察局2014年3月24日第05676/S/2014號及2015年9月23日第PJ GD15007350號公函內容,確實存在強烈跡象顯示利害關係人觸犯《刑法典》規定及處罰的信任之濫用罪,但卻未見有強烈跡象顯示其作出詐騙罪。
基於此,現根據《行政程序法典》第161條第1款之規定,決定以下列內容替換被訴願行為:
“根據司法警察局的調查,特別是透過涉事公司會計提供資料、證人證言、單據影印本(非支付有關公司的費用),以及公司帳目資料等,顯示利害關係人及一名股東在管理涉事公司期間,將公司款項轉移到兩人登記開設的禮品店及為利害關係人支付與公司無關的工程費用,涉及款項達澳門幣一百三十多萬元。因此具有強烈跡象顯示其觸犯《刑法典》規定及處罰的信任之濫用罪,對於公共秩序及公共安全構成危害,現決定禁止其進入澳門為期三年”。”
Desse despacho recorreu a recorrente contenciosamente para este TSI em 21.1.2016.
No dia 29.2.2016, a entidade recorrida procedeu à rectificação do seu despacho de 4.11.2015, nos seguintes termos: (fls. 67 do processo administrativo)
“本人於2015年11月4日作出批示,維持治安警察局局長禁止利害關係人入境的決定。
儘管上述決定屬適當作出,但留意到有關行為在理由說明部分遺漏了法律依據,因此,根據《行政程序法典》第126及130條規定,決定對被上訴的行為作出糾正,以如下內容予以替換:
“利害關係人針對治安警察局局長禁止其入境的決定提起本訴願,訴願內容在此予以完全轉載。
經分析司法警察局2014年3月24日第05676/S/2014號及2015年9月23日第PJGD15007350號公函內容,確實存在強烈跡象顯示利害關係人觸犯《刑法典》規定及處罰的信任之濫用罪,但卻未見有強烈跡象顯示其作出詐騙罪。
基於此,現根據《行政程序法典》第161條第1款之規定,決定以下列內容替換被訴願行為:
‘根據司法警察局的調查,特別是透過涉事公司會計提供資料、證人證言、單據影印本(非支付有關公司的費用),以及公司帳目資料等,顯示利害關係人及一名股東在管理涉事公司期間,將公司款項轉移到兩人登記開設的禮品店及為利害關係人支付與公司無關的工程費用,涉及款項達澳門幣一百三十多萬元。因此,具有強烈跡象顯示其觸犯《刑法典》規定及處罰的信任之濫用罪,對於公共秩序及公共安全構成危害,現根據第6/2004號法律第12條2款1項及4/2003號法律第4條2款3項規定,決定禁止其進入澳門為期三年’。””
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Analisemos agora os fundamentos do recurso.
Questão prévia
Nas alegações facultativas apresentadas pela recorrente, a mesmo aditou o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, referindo não haver fortes indícios da prática de qualquer crime.
Ora bem, de acordo com o disposto no artigo 68º, nº 3 do CPAC, a recorrente só pode alegar novos fundamentos do seu pedido cujo conhecimento tenha sido superveniente, melhor dizendo, a alegação de novos fundamentos de recurso nessa peça alegatória só é possível se eles tiverem vindo ao seu conhecimento supervenientemente, mas não foi o caso.
De facto, é de verificar que o novo vício invocado pela recorrente não resulta do contacto com o procedimento administrativo junto aos autos pela entidade recorrida com a contestação, nem assenta em novo conhecimento de factos e circunstâncias decorrentes de eventual produção de prova feita no processo, ou seja, é um vício que já poderia ter sido invocado na petição inicial, pelo que, preenchido não está o requisito previsto no nº 3 do artigo 68º do CPAC, não procederemos ao seu conhecimento.
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Da violação do princípio da presunção de inocência
Alega a recorrente que o acto recorrido está ferido de ilegalidade por violação da Lei Básica e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, mais precisamente no respeitante ao princípio da presunção de inocência.
Entende a recorrente que tem de presumir-se inocente até que seja proferida sentença transitada em julgado, devendo esta presunção estender-se a todos os níveis, nomeadamente não pode produzir quaisquer efeitos na esfera jurídica da recorrente.
Vejamos.
Embora seja a presunção de inocência princípio fundamental em processo penal e que está previsto na Lei Básica, mas a verdade é que não estamos aqui em causa a apreciação da responsabilidade penal da recorrente.
No fundo, não precisamos saber se deve ser aplicada à recorrente alguma pena ou medida de segurança, enquanto reacção pública ao crime, caso em que terá sempre que ter em linha de conta o referido princípio fundamental, mas sim estamos no âmbito do exercício da actividade administrativa, em que a Administração terá o dever e o cuidado de tomar decisões destinadas a satisfazer interesses públicos, nomeadamente, aplicando medidas de natureza meramente preventivas.
Em suma, por que a questão da recusa de entrada na RAEM de não-residentes está ligada a assuntos inseridos no âmbito da actividade administrativa, não se deve falar aqui de violação do princípio da presunção de inocência.
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão de 25.11.2010 deste TSI, no Processo nº 759/2007, onde se refere que “a recusa da entrada na RAEM, sendo uma medida policial com a finalidade de assegurar a paz e a tranquilidade social desta comunidade, não confronta com o princípio da presunção da inocência”.
O mesmo entendimento foi perfilhado pelo Acórdão do Venerando TUI, de 19.11.2014, proferido no âmbito do Processo nº 28/2014:
“1. No caso de haver fortes indícios quanto à prática ou à preparação para a prática de crimes, a Administração pode decretar a interdição de entrada com fundamento na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM - art.º n.s 2 e 3 da Lei nº 6/2004 e art.º 4.º n.º 2, al. 3) da Lei nº 4/2003.
2. Com a previsão, como pressuposto da interdição de entrada, de existência de “fortes indícios” da prática do crime, não se pode falar na aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, já que a exigência legal, tão só, de fortes indícios se opõe logicamente à ideia de comprovação de prática do facto ilícito.
3. Não se aplica, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.”
E não se diga que houve violação do disposto no artigo 43º da Lei Básica, pois no tocante à questão de residência e permanência, o direito de residência só é garantido aos residentes permanentes da RAEM (artigo 24º da Lei Básica), enquanto os visitantes só têm direito a entrar e permanecer na Região conforme a legislação em vigor, a qual não lhes garante o direito a permanecer na Região.
Aqui chegados, improcede o vício invocado.
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Da falta de fundamentação do acto administrativo
A recorrente vem assacar ao despacho recorrido vício de forma por falta de fundamentação, alegando que o despacho recorrido não está fundamentado quando, só agora, volvidos mais de 3 anos sem que tenha sido deduzida contra a recorrente qualquer acusação em processo-crime, é que se verifica o invocado risco para a ordem e segurança públicas da RAEM.
Estatui-se no artigo 114º do Código do Procedimento Administrativo que os actos administrativos que neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções, devem ser fundamentados.
Preceitua-se ainda no nº 1 do artigo 115º do mesmo Código que a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações, propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
A fundamentação visa assegurar a melhoria da qualidade e a legalidade dos actos administrativos, facilitar o recurso contencioso pelos eventuais lesados pelo acto administrativo, de modo a garantir o exercício efectivo do seu direito ao recurso contra actos lesivos, e tem ainda uma função persuasória e consensual, contribuindo para a uma maior transparência da actividade administrativa.1
In casu, salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos não se verificar o vício invocado.
Tal como referiu o Acórdão deste TSI, de 11.10.2012, no Processo nº 229/2012, relativamente a um caso semelhante:
“Ora, ainda que as expressões “perigo para a sociedade” e “facto de perigosidade” façam parte da fundamentação do acto sem grande desenvolvimento, pensamos que o contexto discursivo é bastante ou suficiente para que qualquer homem de meridiana capacidade de entendimento possa colher o verdadeiro sentido delas. Na verdade, não são afirmações soltas, isoladas ou desligadas do todo justificativo. São antes, digamos, ideias de reforço, que se suportam nos factos objectivos(…). Neste sentido, a sua existência no seio da fundamentação contextual mostra-se explicada e bem entendível, e assim mesmo a terão entendido os recorrentes, já que o recurso foi desenvolvido sem hiatos ou falhas que pudessem ser imputadas àquela alegada insuficiência.”
No caso em apreço, resulta do despacho recorrido que os elementos contabilísticos da respectiva sociedade comercial, prova testemunhal e cópia dos recibos indiciam fortemente que a recorrente, em conjugação de esforços com um outro sócio, tenha transferido os fundos da sociedade para uma outra constituída por esses mesmos dois indivíduos, bem como efectuado pagamentos de despesas relacionadas com obras que nada tinham a ver com a sociedade, numa quantia aproximada de um milhão e trezentas patacas.
Perante esta constatação, a entidade recorrida entendeu que havia indícios da prática pela recorrente de um crime de abuso de confiança previsto e punível pelo artigo 199º do Código Penal, daí que não se vislumbra o alegado vício de falta de fundamentação que atente contra o disposto nos artigos 114º e 115º do CPA, uma vez que qualquer destinatário comum (por referência à diligência normal do homem médio que tal deve ser aferido) fica a saber as razões de facto e de direito que levaram à aplicação daquela medida de interdição de entrada.
Improcede, assim, o vício invocado.
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Da alegada violação do princípio da igualdade
Alega a recorrente que a sua posição processual, mais precisamente os indícios factuais no processo-crime são os mesmos do seu pai, entretanto este último, em apreciação no recurso hierárquico oportunamente interposto, viu revogada a medida de interdição aplicada, entendendo que a entidade recorrida incorreu em violação do princípio da igualdade.
Em termos gerais, tal princípio só faz sentido perante situações exactamente iguais; a diversidade de situações – mesmo que com fortes pontos de contacto – não pode gerar a violação do princípio.2
De facto, não logrou a recorrente provar que os factos com base nos quais lhe foi aplicada a medida de interdição são exactamente iguais aos factos e circunstâncias envolvidos pelo seu pai, pelo que não se descortina manifestamente a alegada violação do princípio da igualdade.
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Da alegada violação do princípio da proporcionalidade
Dispõe o artigo 5º, nº 2 do Código do Procedimento Administrativo que “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar” – sublinhado nosso.
Em boa verdade, no que respeita à determinação do período da interdição de entrada na RAEM, dúvidas não restam de que está em causa poderes discricionários da Administração.
E a propósito da questão da intervenção dos tribunais na fiscalização da Administração em virtude da eventual violação do princípio da proporcionalidade, foi já objecto de várias decisões deste TSI e do TUI, designadamente nos doutos Acórdãos deste último nos Processos nº 9/2000, 21/2004, 14/2005, transcrevendo-se, a seguir, parte de um desses arestos (Processo nº 9/2000):
“Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
David Duarte, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, “que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção”.
Nas mesmas águas navega Maria da Glória F. P. Dias Garcia, defendendo que “em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem.”
De facto, prevê-se na alínea d) do nº 1 do artigo 21º do Código de Processo Administrativo Contencioso que “o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários” constitui um dos fundamentos de recurso contencioso.
Segundo o Acórdão deste TSI, de 19 de Maio de 2011, no Processo 363/2009, “A desrazoabilidade a que alude o artigo 21º, 1, d) do CPAC, aliás, adjectivada de total, deve ser entendida de forma a deixar um espaço livre à Administração, salvaguardados os limites próprios do poder discricionário, nomeadamente os limites internos decorrentes dos princípios da imparcialidade, igualdade, justiça, proporcionalidade ou outros vertidos no Código do Procedimento Administrativo, assim se pondo cobro a eventuais abusos.”
Também um outro Acórdão deste TSI, de 7.12.2011, no Processo 647/2010, segue o mesmo entendimento: “total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários pode comportar-se o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. E a decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir, um acto absurdo ou por vezes irracional”.
No caso vertente, a Administração chegou à conclusão de que a recorrente, em conjugação de esforços com um outro sócio, teria transferido os fundos da sociedade para uma outra constituída por esses mesmos dois indivíduos, bem como efectuado pagamentos de despesas relacionadas com obras que nada tinham a ver com a respectiva sociedade, factos esses que indiciavam fortemente a prática pela recorrente de um crime de abuso de confiança previsto e punível pelo artigo 199º do Código Penal.
Em nossa opinião, embora a interdição de entrada da recorrente na RAEM possa causar-lhe alguma inconveniência, mas não é menos verdade que a entidade recorrida pretende com o acto recorrido prosseguir interesse público.
Provado que um não residente sobre quem dispõem fortes indícios de que teria cometido determinado crime, é razoável que a Administração tome medidas adequadas com vista a prevenir a criminalidade e salvaguardar a segurança pública, boa ordem e estabilidade sociais, nomeadamente proibindo a recorrente de entrar em Macau durante determinado período de tempo, e não se vendo que o sacrifício a ela imposto (interdição de entrada por um período de 3 anos) seja manifestamente desproporcionado ao interesse que se pretendia atingir com a prática do acto recorrido.
Em suma, não se constatando que o princípio da proporcionalidade foi intoleravelmente violado, improcede, pois, o recurso nesta parte.
Tudo ponderado, por não padecer dos vícios invocados, há-de manter o despacho recorrido.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso e, em consequência, mantendo o acto recorrido impugnado.
Custas pela recorrente, com 8 U.C. de taxa de justiça.
Registe e notifique.
***
RAEM, 27 de Outubro de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira

Fui presente
Mai Man Ieng
1 Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, FM e SAFP, pág. 623 e 624
2 v.g., Acórdão do TUI, de 12/05/2010, Proc. nº 5/2010, nele se citou, como exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional Português de 11/02/1998, Proc. nº ACTC8167, segundo o qual: “O princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - desde logo, diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são os indicados exemplificadamente, no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental -, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio”.
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Recurso Contencioso 77/2016 Página 24