Processo n.º 598/2016 Data do acórdão: 2016-11-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de auxílio e sua consumação
– art.º 14.º da Lei n.º 6/2004
– anteriores áreas marítimas de Macau
– entrada efectiva na RAEM
S U M Á R I O
Da redacção da norma incriminadora do art.º 14.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na parte em que se diz que “Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º […]”, retira-se, sob a égide do n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, a solução do Legislador de punir penalmente quem dolosamente, e por qualquer forma (por exemplo, por “transportar”, ou por “promover o transporte”, ou por “fornecer auxílio material”), concorrer para a entrada clandestina de outrem na RAEM. Daí que a efectiva entrada na RAEM não é condição sine qua non para a consumação do crime de auxílio.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 598/2016
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 94 a 99v do Processo Comum Colectivo n.º CR4-15-0473-PCC do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de auxílio (simples), p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de um ano e seis meses de prisão efectiva.
Veio recorrer desse veredicto o Digno Procurador-Adjunto, para pedir a invalidação da decisão recorrida, com declaração da irresponsabilidade penal do arguido, ou, subsidiariamente falando, a alteração da qualificação do crime de tentado para consumado, com nova imposição da pena correspondente, tendo, para sustentar a procedência deste recurso, alegado, em síntese, que (cfr. o teor da motivação de fls. 112 a 118):
– desde há muito tempo até 20 de Dezembro de 2015 em que foi publicado o Decreto n.º 665 do Conselho de Estado da República Popular da China, não há fundamento legal para o gozo da jurisdição penal por parte de Macau sobre os delitos ocorridos nas suas “anteriores áreas marítimas”, pelo que esses delitos deveriam ser considerados ilícitos ocorridos no exterior de Macau;
– o que implica que tendo os factos dos presentes autos ocorrido nas “anteriores áreas marítimas” de Macau antes da emanação do referido Decreto do Conselho de Estado, aos mesmos não é aplicável, por força do art.º 5.º do Código Penal (CP), a norma incriminadora do art.º 14.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004;
– ao que acresce o facto de o Tribunal a quo ter considerado que o arguido “não conseguiu entrar efectivamente em Macau” equivale ao facto de o ilícito penal em questão ter ocorrido no exterior de Macau, pelo que mesmo nesta perspectiva, a lei penal de Macau, por obediência ao art.º 5.º do CP, não serve para a efectivação da responsabilidade penal do arguido;
– e mesmo que se entendesse que os factos dos autos tenham ocorrido “dentro de Macau”, a conduta provada do arguido deverá ser qualificada como a já consumação do crime de auxílio (à imigração clandestina”), havendo, pois, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), para além da contradição insanável “entre a qualificação do crime do arguido como crime tentado e os pressupostos de facto do exercício da jurisdição”.
Subido o recurso, emitiu o Digno Procurador-Adjunto junto deste TSI parecer (a fls. 167 a 168v), pugnando pela improcedência do recurso apenas na parte referente à convolação do crime tentado para consumado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, e vencido finalmente o M.mo Juiz Relator do presente processo recursório na solução do recurso, cumpre decidir do mesmo através deste acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos em observância do art.º 417.º, n.º 1, do CPP.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a suas fls. 94 a 99v, cujo teor integral, que inclui a fundamentação fáctica e jurídica do veredicto final condenatório aí feito, se dá por aqui intergralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Da questão principal posta no recurso: Salvo o devido respeito por toda a opinião diversa, a razão não está no lado do Digno Recorrente, porquanto a jurisdição penal de Macau sobre as “anteriores áreas marítimas de Macau” tem ficado sempre avalizada por força do conteúdo do Anexo do Decreto n.º 275 do Conselho de Estado da República Popular da China, publicado no Boletim Oficial da RAEM, I Série, N.º 2, de 27 de Dezembro de 1999, mesmo antes da publicação do Decreto n.º 665 do Conselho de Estado da República Popular da China (referido na motivação do recurso).
E agora no tangente à argumentação subsidiária do recurso:
Desde já se nota que foi impropriamente invocado pelo Digno Recorrente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.º 2 do art.º 400.º do CPP (e o mesmo se pode dizer também em relação à alegada “contradição insanável…”), dado que a tese defendida na motivação do recurso tem a ver materialmente com o julgamento de direito, i.e., com a questão de rectidão, ou não, da qualificação jurídico-penal dos factos provados como integrando um crime tentado de auxílio (simples) à imigração clandestina.
Portanto, no que ao cerne da questão de julgamento de direito diz respeito, procede o recurso na parte referente à convolação do crime tentado para consumado de auxílio à imigração clandestina, ainda que com seguinte fundamentação (mas materialmente diversa da sustentada na minuta do recurso), na esteira da igual tese jurídica já vertida no acórdão deste TSI, de 2 de Julho de 2015, no Processo n.º 571/2015: Da redacção da norma incriminadora do art.º 14.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na parte em que se diz que “Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º […]”, se retira, sob a égide do cânone de hermenêutica plasmado no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, a solução do Legislador de punir penalmente quem dolosamente, e por qualquer forma (por exemplo, por “transportar”, ou por “promover o transporte”, ou por “fornecer auxílio material”), concorrer para a entrada clandestina de outrem na RAEM. Daí que a efectiva entrada na RAEM não é condição sine qua non para a consumação do crime de auxílio em questão.
Dest’arte, a matéria de facto já provada e como tal descrita no texto do acórdão ora recorrido dá para sustentar sobejamente a já consumação, dentro das anteriores áreas marítimas de Macau (referidas no acima referencidado Anexo do Decreto n.º 275 do Conselho de Estado da República Popular da China), do crime de auxílio à imigração clandestina então concretamente imputado pelo Ministério Público ao arguido.
Cumpre, pois, proceder à nova medida da pena do arguido. Atentos, assim, todos os ingredientes fácticos já apurados judicialmente em primeira instância e descritos no texto do aresto impugando, é de aplicar, aos padrões da medida da pena plasmados mormente nos art.os 40.º e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, ao arguido a pena de três anos de prisão efectiva.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, passando a condenar o arguido como autor material de um crime de auxílio, p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de três anos de prisão efectiva.
Pagará o arguido metade das custas do recurso, duas UC de taxa de justiça e metade dos honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa, ora fixados em mil patacas (ficando a outra metade desses honorários, no valor de quinhentas patacas, a cargo do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância).
Macau, 10 de Novembro de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro juiz-adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Vencido, pois que, dando como integralmente reproduzido o teor do Ac. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.º 46/2016, entendo padecer o Acórdão recorrido de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, dado que o Tribunal a quo não especificou – como podia e devia – a concreta “localização” do barco conduzido pelo arguido quando visto – e posteriormente – interceptado pelos agentes dos Serviços de Alfândega).
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