Proc. nº 573/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 10 de Novembro de 2016
Descritores:
-Imposto de Selo
-Recurso hierárquico facultativo
-Irrecorribilidade
-Absolvição da instância
SUMÁRIO:
I. Nos termos do art. 92º do Regulamento do Imposto de Selo, se a reclamação se funda na discordância com o valor atribuído à transmissão, ela é dirigida à Comissão de Revisão, caso em que ela tem efeito suspensivo, tal como promana do art. 96º do diploma, sendo certo que da deliberação da Comissão “caberá recurso contencioso imediato nos termos gerais” (art. 92º, nº3). Assim, estas disposições estão perfeitamente em linha com o preceituado no art. 150º do CPA, segundo o qual “a reclamação de acto de que não caiba recurso contencioso tem efeito suspensivo…”.
II. Mas, a contrário, se a reclamação tiver qualquer outro fundamento, então ela deixa de ser obrigatoriamente dirigida à Comissão de Revisão e perde o efeito suspensivo. O mesmo é dizer, a reclamação é facultativa e a decisão que vier a ser tomada não é impugnável contenciosamente, porque o acto definitivo é, precisamente, o acto de liquidação oficiosa administrativamente impugnado.
III. A lei nº 12/2013 tem um objecto plasmado na sua epígrafe: “Altera o Regulamento do Imposto Profissional e o Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos”. Esse é o seu objectivo específico! Não pretende intrometer-se em mais nenhuma área, nem introduzir modificações no regime concernente a outros impostos, nomeadamente o de selo e o da contribuição industrial.
IV. Quando o nº1 do artigo 2º da Lei nº 12/2013 faz uma referência às competências atribuídas pelas leis e regulamentos ao Chefe do Departamento de Auditoria, Inspecção e Justiça Tributária e ao Chefe da Repartição das Finanças, não se está a referir a todas as leis e a todos os regulamentos respeitantes aos mais diversos impostos, mas sim e somente aos diplomas (leis e regulamentos) atinentes aos impostos a que o diploma se refere expressamente no seu título, ou seja, o Profissional (Lei nº 2/78/M) e o Complementar de Rendimentos (Lei nº 21/78/M).
V. A “reclamação graciosa” prevista no art. 51º, nº1 do RCI, “ex vi” art. 92º do RIS é meramente facultativa; só tem efeito suspensivo aquela que é dirigida à Comissão de Revisão e quando fundamentada em discordância com o valor atribuído à transmissão, tal como emerge do nº1 deste art. 92º. Sendo facultativa e com efeito meramente devolutivo, a decisão que vier a ser praticada não é acto definitivo de que possa ser interposto recurso contencioso, assim como não é definitivo o despacho praticado pelo Secretário da Economia e Finanças em sede de recurso hierárquico (que assim não terá natureza necessária) interposto da decisão da reclamação.
VI. Definitivo e recorrível contenciosamente, por ser lesivo, é desde logo o acto que procede à liquidação do imposto de selo.
Proc. nº 573/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, S.A., sociedade comercial com sede em Macau, na Estrada da XX, The B Hotel, Executive Offices - L2, Taipa, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis com o nº XXX45 (S0), interpôs no Tribunal Administrativo (Proc. nº 1212/15-CF) recurso contencioso do acto de liquidação do imposto do selo, da autoria do Senhor Subdirector dos Serviços de Finanças, datado de 19 de Junho de 2015, que calculou o imposto do selo respeitante a 243 contratos de cedência de uso de loja em centro comercial no valor de MOP18.021.392,00.
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Foi suscitada pelo digno contestante a irrecorribilidade do acto impugnado, no que viria a ser secundado pelo digno Magistrado do MP.
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Por despacho de 9/05/2016 viria a tese de irrecorribilidade a ser acolhida e, em consequência, a entidade recorrida absolvida da instância.
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Dessa decisão recorreu jurisdicionalmente a “AA”, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«a) A sentença recorrida rejeitou o recurso contencioso de anulação por entender que o acto não é contenciosamente recorrível;
b) O que fez assentando no entendimento de que tem de preceder impugnação graciosa, imposta pelo artigo 2.º da Lei n.º 12/2003;
c) A Lei n.º 12/2003 não se aplica ao Imposto do Selo mas tão-só ao Imposto Profissional e ao Imposto Complementar de Rendimentos;
d) O artigo 91.º da Lei n.º 17/88/M reconhece ao contribuinte o direito de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra a liquidação do imposto, as multas aplicadas e demais actos definitivos e executórios;
e) Este preceito não foi revogado pelo artigo 2.º da Lei n.º 12/2003 nem por qualquer outro diploma subsequente, encontrando-se plenamente em vigor;
f) A sentença recorrida violou, assim, o disposto no artigo 91.º da lei n.º 17/88/M.
Termos nos quais requer que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e baixando o processo ao Tribunal Administrativo para que conheça do mérito da causa.».
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A entidade recorrida respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
« Iª - Pese embora a entidade recorrida citada seja o “Subdirector dos Serviços de Finanças” que praticou o acto sub judice, certo é que, supervenientemente, com a nomeação do Dr. C, como Director dos Serviços de Finanças, operada pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 104/2015, publicado no BO n.º 26, de 1/7/2015, passou a ser este dirigente o único da DSF com competência para a prática de actos de natureza fiscal, sendo que o mesmo anteriormente era o subdirector com competência delegada para a área fiscal, e como tal o autor do acto recorrido. Motivo pelo qual deve o mesmo ser considerado parte legitima para representar a entidade recorrida, até porque presentemente não qualquer subdirector com competência para a prática de actos de natureza fiscal.
IIª - O presente recurso Jurisdicional vem interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz A QUO, de fls.114.
IIIª - Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 12/2003, que “lamentos fiscais, se encontrem atribuídas ao (...) Chefe da Repartição de Finanças competências para lançamento, liquidação, fixação (...) que, nas leis ou regunças de Macau, seja directamente seja por, em virtude das leis orgânicas da Direcção dos Serviços de Finanças, lhes terem sido atribuídas implicitamente, são atribuídas ao director dos Serviços de Finanças.”
IVª - Conforme o n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 12/2003, “da decisão do Director dos Serviços de Finanças em reclamação graciosa cabe recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo”,
Vª - A recorrente já foi notificada da decisão que recaiu sobre a reclamação tendo, com a apresentação do presente recurso, recorrido contenciosamente de um acto sujeito a impugnação administrativa necessária,
VIª -pelo que o recorrente impugna contenciosamente um acto sujeito a impugnação administrativa necessária, devendo como tal o presente recurso jurisdicional ser julgado improcedente e mantida a decisão do Meritíssimo Juiz A QUO que decidiu pela procedência da excepção da irrecorribilidade do acto recorrido e, rejeitar o recurso, tendo absolvido a entidade recorrida da instância, nos termos do artigo 230º, n.º 1, aliena e) do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPAC.
Termos em que se requer a V.Exa, que seja o presente recurso declarado improcedente e, consequentemente, mantida a douta sentença recorrida.».
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Nesta instância, o digno Magistrado do MP opinou o seguinte:
“A, S.A.” impugnou contenciosamente, perante o Tribunal Administrativo, o acto de 19 de Junho de 2015, da autoria do Subdirector dos Serviços de Finanças, de liquidação do imposto de selo relativo a 243 contratos de utilização de loja em centro comercial.
Tendo sido suscitada a excepção de irrecorribilidade do acto, veio a ser proferida decisão sobre essa questão em 9 de Maio de 2016, nos termos da qual foi julgada procedente a excepção e rejeitado o recurso contencioso.
É dessa decisão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, pugnando a recorrente, “A, S.A.” pela recorribilidade do acto, para o que, em suma, se apoia no artigo 91.º da Lei n.º 17/88/M, que diz estar em vigor e ter sido violado pela sentença recorrida, no que é contraditada pela entidade recorrida, que, na sua minuta de contra-alegação, defende a manutenção do julgado.
Vejamos.
Durante considerável lapso de tempo, as dúvidas que se suscitaram sobre a matéria agora em análise foram objecto de jurisprudência uniforme deste Tribunal de Segunda Instância, no sentido propugnado pela recorrente, ou seja, seguindo o entendimento de que, por regra, o acto de liquidação do imposto de selo era susceptível de recurso contencioso imediato. Considerava-se, então, que o artigo 2.º da Lei 12/2003, por visar situações diversas, circunscritas aos impostos profissional e complementar de rendimentos, não se mostrava aplicável ao imposto de selo.
Porém, mediante acórdãos de 23 de Julho de 2014, tirados nos processos n.ºs 31/2014 e 32/2014, o Tribunal de Última Instância teve oportunidade de se debruçar sobre o assunto, acabando por adoptar jurisprudência que aponta no sentido de que as normas do artigo 2.º da Lei 12/2003 são aplicáveis a todos os impostos e implicaram a revogação do artigo 5.º da Lei n.º 15/96/M e a derrogação de preceitos de leis e regulamentos fiscais que previam o recurso contencioso directo dos actos do director dos Serviços de Finanças.
Veio, assim, o Tribunal de Última Instância contrariar, unanimemente nos dois casos, com argumentos que se têm por ponderosos e que nos dispensamos de aqui reproduzir, o entendimento redutor que sobre o assunto até então vingara no Tribunal de Segunda Instância.
Temos por bem perfilhar esta doutrina do Tribunal de Última Instância, que, apesar de não constituir jurisprudência obrigatória, provém da instância à qual cabe harmonizar a aplicação do direito e o sentido da jurisprudência.
De acordo com tal doutrina, estando em causa, como está, um acto que respeita à liquidação de um imposto e que cai na alçada do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 12/2003, deveria ter sido objecto de reclamação para o director dos Serviços de Finanças, seguida de recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo, por força do n.º 3 do mesmo artigo, passo imprescindível para abertura da via contenciosa. Tendo a recorrente optado por dirigir o recurso directamente contra o acto de liquidação, da autoria do Subdirector dos Serviços de Finanças, impugnou uma decisão que não é contenciosamente recorrível - cf. artigo 28.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso - como bem observou a sentença recorrida.
Improcedem os argumentos em que se louva o recurso jurisdicional, pelo que deve ser-lhe negado provimento, confirmando-se a sentença recorrida. »
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A decisão em crise deu por provados os seguintes factos:
«1.º - Pelos requerimentos datados de 13/02/2014, 07/03/2014, 18/03/2014, 02/04/2014, 02/05/2014, 21/05/2014, 09/06/2014, 11/06/2014, 19/06/2014, 01/07/2014, 09/07/2014, 21/07/2014, 05/08/2014, 12/08/2014, 29/08/2014, 10/09/2014, 26/09/2014, 10/10/2014, 17/10/2014, 24/10/2014, 06/11/2014, 11/11/2014, 19/11/2014, 25/11/2014, 09/12/2014 e 30/12/2014, respectivamente, a recorrente apresentou junto da Direcção dos Serviços de Finanças (D.S.F.) os impressos Modelo 4 referentes a 243 contratos de cedência de uso das indicadas lojas situadas no AA Macau, Lotes I, II e III (cfr. fls. 78, 107 a 108, 139 a 140, 151 a 152, 175 e 184 do Volume I, e fls. 239, 256, 267, 288, 303, 350, 357, 384, 395, 426, 437, 452, 467, 488, 509, 526, 531, 554, 579 e 590 do Volume II).
2.º - Pelo despacho de “concordo” lançado sobre a proposta n.º 959/NIS/DOI/RFM/2015, datado de 19/06/2015, a entidade recorrida autorizou a liquidação do imposto do selo devido sobre os referidos contratos apresentados pela recorrente (cfr. fls. 71 a 77 do Volume I).
3.º - Através do ofício n.º 1837/NIS/DOI/RFM/2015 datado de 26/06/2015, foi a recorrente notificada da decisão de liquidação e do pagamento dos impostos do selo liquidados, com a advertência que a decisão cabe reclamação para a Directora dos Serviços de Finanças no prazo de 15 dias (cfr. fls. 22 a 29 do Volume I).
4.º - Em 13/07/2015, a recorrente apresentou reclamação contra a decisão de liquidação junto do Senhor Director da D.S.F. (cfr. fls. 11 a 21 do Volume I).
5.º - Pelo despacho de “indeferir conforme proposta” lançado sobre a proposta n.º 1377/NIS/DOI/RFM/2015, datado de 03/08/2015, o Senhor Director da D.S.F. decidiu manter o acto da liquidação do imposto do selo referente aos contratos em causa e indeferir a reclamação deduzida pela recorrente (cfr. fls. 6 a 10 do Volume I).
6.º - Em 29/07/2015, a recorrente enviou para este Tribunal o petitório dos presentes autos do recurso contencioso por via de telecópia, cujo original foi apresentado no dia 30/07/2015 (cfr. fls. 2 dos autos).
7.º - Através do ofício n.º 2345/NIS/DOI/RFM/2015 datado de 11/08/2015, foi a recorrente notificada da decisão de indeferimento da reclamação, com a informação que o mencionado acto administrativo cabe recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças, no prazo de 30 dias (cfr. fls. 5 e verso do Volume I).
8.º - Ao pedido da própria requerente, foi a recorrente notificada, através do ofício n.º 2577/NIS/DOI/RFM/2015 datado de 21/08/2015, do texto integral da decisão de indeferimento da reclamação, com a informação que o mencionado acto administrativo cabe recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças, no prazo de 30 dias (cfr. fls. 1 a 3 do Volume I).»
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III – O Direito
1 – Está em causa nos autos a recorribilidade contenciosa do acto de liquidação de imposto de selo relativo a 243 contratos de cedência de uso de loja em centro comercial no valor de MOP$ 18.021.392,00.
O Tribunal Administrativo entendeu que o acto sob impugnação, da autoria do Senhor Subdirector dos Serviços de Finanças, estava sujeito a recurso hierárquico necessário e, por isso, não podia ser objecto de recurso contencioso imediato.
Contra tal decisão insurge-se a recorrente AA, reiterando no presente recurso jurisdicional a posição que, por antecipação ou presságio do que pudesse vir processualmente a acontecer, logo na petição inicial do recurso contencioso espraiou, de uma forma imaculada, a tese da recorribilidade contenciosa imediata.
Vejamos, então.
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2 – Não ignoramos, obviamente, a posição que o TUI nesta matéria já manifestou nos processos nºs 31/2014 e 32/2014, ambos de 23/07/2014, mas que nós, sem quebra do devido respeito, que é muito, não podemos subscrever.
A tese que ainda continuamos a seguir, por ser a que melhor responde ao contexto legal, é aquela que, por exemplo, está vertida no Ac. deste TSI, de 16/01/2014 (Proc. nº 20/2013), e que a seguir transcrevemos:
«4.3.2. - Da recorribilidade
O problema equacionado consiste em saber se o acto impugnado nos presentes autos é recorrível contenciosamente. Parece-nos que não, pelo que se dirá.
Atente-se, em primeiro lugar, no que prescreve o diploma atinente especificamente ao imposto que aqui está em discussão, o imposto de selo. O art. 91º da Lei nº 17/88/M, de 27 de Junho, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 4/2009 e 4/2001, que aprova o Regulamento do Imposto do Selo, diz textualmente que:
«1. É garantido ao contribuinte recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra a liquidação do imposto, as multas aplicadas e demais actos definitivos e executórios.
2. Em todas as matérias relativas ao recurso contencioso observa-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Regulamento da Contribuição Industrial, aprovado pela Lei n.º 15/77/M, de 31 de Dezembro».
Pois bem. Não obstante não ser este dispositivo legal um arquétipo de perfeição normativa, dá-nos ele, porém, logo nota no nº1 que todos os actos que liquidem imposto profissional são sujeitos a recurso contencioso imediato, por serem “definitivos” e “executórios”.
Claro, poderá dizer-se que esse nº1 não é bem ajustado à hipótese sub judice, já que se não trata da “liquidação do imposto profissional”, mas de liquidação oficiosa. Pois bem. Admitindo em abstracto que a intenção do legislador possa ter sido diferente consoante as ditas hipóteses, vejamos se o quadro legal modifica a estatuição.
Olhemos, então, para o art. 92º do mesmo diploma (Regulamento do Imposto de Selo ou RIS):
Artigo 92.º
1. A reclamação de actos de liquidação oficiosa ou adicional de imposto do selo sobre transmissões de bens imóveis, nos termos do capítulo XVII, quando fundamentada em discordância com o valor atribuído à transmissão, é obrigatoriamente dirigida à Comissão de Revisão.
2. A reclamação referida no número anterior deve ser apresentada na Repartição de Finanças de Macau no prazo de 15 dias contados da notificação da liquidação.
3. Das deliberações da Comissão de Revisão cabe recurso contencioso imediato nos termos gerais.
Ora, este artigo trata da reclamação de actos de liquidação adicional ou oficiosa, para afirmar duas coisas:
a) Se a reclamação se funda na discordância com o valor atribuído à transmissão, ela é dirigida à Comissão de Revisão. Nesse caso, a reclamação tem efeito suspensivo, tal como promana do art. 96º do diploma, sendo certo que da deliberação da Comissão “caberá recurso contencioso imediato nos termos gerais” (art. 92º, nº3). É bom de ver que estas disposições estão perfeitamente em linha com o preceituado no art. 150º do CPA, segundo o qual “a reclamação de acto de que não caiba recurso contencioso tem efeito suspensivo…”.
b) A contrario, se a reclamação tiver qualquer outro fundamento, então ela deixa de ser obrigatoriamente dirigida à Comissão de Revisão e perde o efeito suspensivo. O mesmo é dizer, a reclamação é facultativa e a decisão que vier a ser tomada não é impugnável contenciosamente, porque o acto definitivo é, precisamente, o acto de liquidação oficiosa administrativamente impugnado.
Temos assim que, no caso vertente, o Regulamento do Imposto de Selo dá a solução para a “vexata quaestio”, uma vez que a reclamação se não deveu à discordância do valor atribuído à transmissão, nem foi dirigida à Comissão de Revisão.
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Para quem entenda que isto não basta, importa recuar ao citado artigo 91º do RIS, desta vez ao nº2, segundo o qual “Em todas as matérias relativas ao recurso contencioso observa-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Regulamento da Contribuição Industrial, aprovado pela Lei n.º 15/77/M, de 31 de Dezembro”.
Dá para sentir a “mens legis”, o espírito do legislador! Ele quis que, tirando o caso excepcional previsto no art. 92º, a matéria do recurso contencioso observasse aquilo que está previsto no Regulamento da Contribuição Industrial (RCI). Ora, este diploma, no capítulo V, é muito claro ao afirmar o princípio da reclamação “graciosa” facultativa (art. 49º), de cuja decisão se permite o recurso hierárquico (art. 50º), sendo que nem uma, nem outro têm efeito suspensivo, mas apenas devolutivo (art. 51º). Portanto, e em sintonia com o CPA (arts. 150º e 157º), a decisão definitiva e recorrível é aquela que logo lesou o contribuinte com a liquidação oficiosa (art. 52º do RCI), porque não sujeita a impugnação administrativa necessária (art. 28º, nº1, do CPAC).
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Trata-se de uma solução, de resto, perfeitamente harmonizável com os princípios expostos na Lei nº 15/96/M de 12 de Agosto (“clarificação de alguns aspectos em matéria fiscal”), diploma que, para além da impugnabilidade contenciosa fundada em actos lesivos (art. 1º), recorda e exprime aquilo que já promana do CPA: “Salvo menção expressa em contrário, são facultativos os recursos hierárquicos interpostos…”. Por conseguinte, sendo facultativos, obviamente a decisão tomada no seu seio não é recorrível contenciosamente.
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E será que o art. 2º da Lei nº 12/2003, de 11/08 retira alguma força ao que acabou de se expor?
Vejamos o que ele dispõe.
Artigo 2.º
Competências em matéria fiscal
1. As competências para lançamento, liquidação, fixação, notificação e aplicação de penalidades que, nas leis ou regulamentos fiscais, se encontram atribuídas ao chefe do Departamento de Auditoria, Inspecção e Justiça Tributária e ao chefe da Repartição de Finanças de Macau, seja directamente seja por, em virtude das leis orgânicas da Direcção dos Serviços de Finanças, lhes terem sido atribuídas implicitamente, são atribuídas ao director dos Serviços de Finanças.
2. O director dos Serviços de Finanças é a entidade competente para apreciar das reclamações de actos administrativos praticados no âmbito das competências referidas no número anterior, com excepção das que se refiram à impugnação da fixação da matéria colectável quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão, caso em que a competência se mantém nessas Comissões.
3. Da decisão do director dos Serviços de Finanças em reclamação graciosa cabe recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo.
Em nossa opinião, a resposta à questão só pode ser negativa.
Antes de mais nada, este é um diploma que tem um objecto plasmado na sua epígrafe: “Altera o Regulamento do Imposto Profissional e o Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos”. Esse é o seu objectivo específico! Não pretende intrometer-se em mais nenhuma área, nem introduzir modificações no regime concernente a outros impostos, nomeadamente o de selo e o da contribuição industrial.
Reconhecemos o embaraço que pode provocar no intérprete quando o nº1 do artigo faz uma referência às competências atribuídas pelas leis e regulamentos ao Chefe do Departamento de Auditoria, Inspecção e Justiça Tributária e ao Chefe da Repartição das Finanças. Cremos, todavia, que mesmo aí o legislador não se está a referir a todas as leis e a todos os regulamentos respeitantes aos mais diversos impostos, mas sim e somente aos diplomas (leis e regulamentos) atinentes aos impostos a que o diploma se refere expressamente no seu título, ou seja, o Profissional (Lei nº 2/78/M) e o Complementar de Rendimentos (Lei nº 21/78/M).
Assim é que, sempre que tais diplomas específicos cometerem competências ao Chefe da Repartição de Finanças (v.g., art. 18º, nº1, al. c, do RIP), ou ao Chefe de Repartição de Contribuições e Impostos (v.g. art. 36º, do RICR) ou ao Chefe do Departamento de Auditorias, Inspecção e Justiça Tributária (v.g., art. 18º, nº1, al. a), do RIP), elas devem agora ser entendidas para o Director do Serviço de Finanças. É isso o que o nº1, do art. 2º citado diz!
O nº2 do art. 2º e o nº3 do mesmo artigo, por outro lado, sem excluírem a competência das Comissões de Revisão no âmbito desses mesmos impostos Profissional e Complementar de Rendimentos (v.g., arts. 79º, nº9, do RIP ou 45º do RICR), prescrevem que as decisões tomadas pelo Director dos Serviços de Finanças em sede de reclamação estão sujeitas a recurso hierárquico necessário. Mas só essas!
Não vale a pena procurar encontrar razões para o legislador conferir ao Director nestes dois impostos (excepcionado, repita-se, o caso das decisões praticadas pelas respectivas Comissões de Revisão) uma competência para a prática de actos não definitivos, enquanto para outros o legislador manteve para o mesmo Director uma competência para a prática de actos definitivos e imediatamente recorríveis contenciosamente. É assim que a lei se encontra escrita; nada há a fazer. Se existe quebra de uniformidade do sistema, é porque o legislador, ou não se apercebeu dela, ou quis efectivamente estabelecer diferenças assentes em desigualdades que entreviu na natureza diversa dos impostos. E para quem se preocupa com estas questões de uniformização do sistema fiscal, mais do que bradar contra o quadro “de constituto”, o que deve fazer é canalizar a energia para uma nova ordem “de constituendo”, um novo quadro legal unitário e de boa ordem sistemática.
Portanto, o regime da impugnabilidade das decisões referentes a estes dois impostos (Profissional e Complementar de Rendimentos) foi modificado pelo artigo 2º da referida Lei nº 12/2003, sem dúvida, de forma a conferir ao Director do Serviço de Finanças uma competência que pertencia a outras entidades até então e a interferir no regime da reclamação “graciosa” e no recurso hierárquico que vinha dos diplomas respectivos (Lei nº 2/78/M e Lei nº 21/78/M). Não se estranhe, porém, esta alteração, cujos fundamentos assentam na autonomia e soberania do legislador.
É por isso que não vemos nesta atitude do legislador nenhum intuito de revogar o regime de impugnabilidade das decisões respeitantes aos restantes impostos.
Se o legislador da referida Lei nº 12/2003 tivesse querido abolir o regime de todos os restantes impostos nesse capítulo, nem haveria de dar o nome que deu ao diploma, nem se teria esquecido de revogar as normas que entendesse adequadas para conformar o regime da impugnabilidade de todos os outros impostos ao ali “ex novo” explanado. Contudo, como se pode ver do seu art. 5º, a revogação a que procedeu limitou-se a algumas normas dos diplomas que foram objecto da sua atenção: o imposto profissional e o imposto complementar de rendimentos. Ao fazer uma revogação expressa sobre uma determinada matéria, não se aceita que não tivesse feito o mesmo em relação a outras se essa fosse a sua intenção.
É certo que a revogação também pode ser implícita, mas nesse caso fala-se de revogação de uma lei por outra com o mesmo enquadramento ou contexto, sendo isso particularmente aceite entre leis que se sucedem com o mesmo objecto de regulação (art. 6º, nº2, do Código Civil). Por exemplo, uma lei de inquilinato pode ser revogada por outra lei do inquilinato; o regime constante das expropriações pode ser revogado por uma lei nova com outra regulação outra lei que verse sobre o mesmo assunto específico. Portanto, se uma lei tem um enquadramento mais vasto e geral, dificilmente se pode dizer que revogue implicitamente o regime exposto em várias outras leis, a não ser que tal resulte inequivocamente do seu texto, através, por exemplo, de expressões do tipo “São revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais”1.
Ora, no caso, estamos perante uma lei (12/2003) que, versando sobre as alterações do Regulamento do Imposto Profissional e do Imposto Complementar de Rendimentos, por isso especial, dificilmente poderia apagar o regime da impugnação de decisões concernentes a outros impostos, sem que isso resultasse inequivocamente do seu texto.
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Tudo isto para concluir que o acto da Entidade recorrida, que foi eleito como objecto do presente recurso contencioso, não era sindicável, na medida em que recorrível, porque definitivo, era o do Director do Serviço de Finanças, tal como de resto foi decidido no Ac. deste TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 272/2013 acima citado. (…)».
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Por outro lado, o facto de ter sido interposta uma reclamação “graciosa” não altera a natureza definitiva ou não do acto de liquidação. É que, como sabemos, esta reclamação não tem carácter obrigatório (ver ainda art. 150º do CPA), nem foi interposta de acto de que cabia recurso hierárquico necessário, caso em que suspenderia o prazo de recurso hierárquico (cfr. art. 151º do CPA).
A reclamação em causa, pelo que acima se viu, «é meramente facultativa, face ao art. 51º, nº1 do RCI, “ex vi” art. 92º do RIS (só tem efeito suspensivo aquela que é dirigida à Comissão de Revisão e quando fundamentada em discordância com o valor atribuído à transmissão, tal como emerge do nº1 deste art. 92º. E esse não é o caso!
Ou seja, se a reclamação é facultativa, se o seu efeito é devolutivo e se a decisão que no seu âmbito vier a ser tomada não é acto definitivo - porque esse carácter definitivo e executório apenas o tem o acto reclamado - então dela não pode ser interposto recurso hierárquico necessário, sob pena de aberrante contradição. O que queremos dizer é que a natureza facultativa da reclamação vai estender os seus efeitos devolutivos até à própria decisão de eventual recurso hierárquico, que como se compreenderá, apenas poderá ter também natureza facultativa e não necessária.
Então, e o nº3, do art. 2º da Lei nº 12/2003, não terá qualquer préstimo? Terá, mas não para este processo. Sublinhe-se isto: se o nº3 do art. 2º da referida Lei nº 12/2003 confere natureza necessária ao recurso hierárquico interposto da decisão da reclamação “graciosa”, a sua estatuição deverá ser decifrada no âmbito objectivo da própria Lei. Isto é, apenas se deverá interpretar como reportado ao caso de reclamação concernente a uma decisão do Director dos Serviços de Finanças em matéria fiscal referente aos impostos profissional e complementar de rendimentos. Ora, o que está em causa é, diferentemente, um imposto de selo! Significa que o nº3, do art. 2º da Lei em apreço não serve para proteger a posição dos recorrentes, manifestada a fls. 236, e do MP expendida a fls. 336.» (cit. Ac. TSI, de 16/01/2014, Proc. nº 20/2013).
No sentido de que o artigo 2º da Lei n.º 12/2003 apenas se aplica ao Imposto Profissional e Complementar de Rendimentos, bem como no de que quando a lei atribui uma competência a um órgão subalterno da Administração Pública para a prática de um determinado acto administrativo, desse acto não cabe recurso hierárquico necessário, salvo quando especialmente previsto na lei, ver ainda os seguintes arestos deste mesmo TSI:
- 24/01/2013, Proc. nº 870/2012;
- 28/11/2013, Proc. nº 272/2013;
- 27/03/2014, Proc. nº 902/2012;
- 27/03/2014, Proc. nº 594/2011;
-12/03/2015, Proc. nº 51/2013.
Sendo a posição que melhor corresponde à letra e ao espírito da Lei nº 12/2013, se e enquanto não for alterada, somos a entender que o recurso merece provimento.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos no TA, a não ser que a tal outra qualquer causa obste.
Sem custas.
TSI, 10 de Novembro de 2016
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José Cândido de Pinho Mai Man Ieng
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
1 Menezes Cordeiro, Da Aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias, em «Cadernos de Ciência da Legislação», INA, nº7, 1993, pág. 17 e sgs., citado por Abílio Neto, em Código Civil anotado, 17ª ed., pág. 18.
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573/2016 22