Processo nº 487/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 10/Novembro/2016
Assuntos: Inventário
Lei aplicável à sucessão
Herdeiros e legatários
Testamento
SUMÁRIO
1. Ao abrigo dos artigos 59º e 30º, nº 1 do Código Civil, a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, sendo a lei pessoal a da residência habitual do indivíduo.
2. Num processo de inventário, tendo o cabeça-de-casal afirmado perante o Tribunal que o inventariado tinha a sua última residência na China, essas declarações fazem fé em juízo, e não tendo sido impugnadas pelos interessados na partilha, deixaria de ter relevância a presunção aludida no nº 3 do artigo 30º do Código Civil, considerando que aquela última residência significa, no fundo, a residência habitual do inventariado, ou seja, o lugar onde o indivíduo, neste caso o inventariado, tinha o centro efectivo e estável da sua vida pessoal.
3. Prevê-se no nº 1 e 2 do artigo 1870º do Código Civil que “os sucessores são herdeiros ou legatários; diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.”
4. Tendo o de cujus deixado por testamento a totalidade da sua herança ao seu filho e aos quatro irmãos, isso significa que os sucessores não são chamados a suceder em bens determinados, mas os seus direitos estendem-se a uma quota-parte da herança, pelo que eles não são legatários.
5. Diz-se testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (artigo 2016º, nº 1 do Código Civil).
6. Tendo o de cujus deixado testamento, importa saber qual era a intenção do testador aquando da feitura do mesmo, conforme o contexto do testamento.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 487/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 10/Novembro/2016
Recorrente:
- A (menor, representado pela sua mãe B)
Recorridos:
- C(cabeça-de-casal), D, E e F
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Correm no Tribunal Judicial de Base uns autos de processo especial de inventário obrigatório por óbito de G, em que são interessados o cabeça-de-casal C, A(ora recorrente, menor, representado neste acto pela sua mãe B), D, E e F.
Prosseguindo os autos os seus regulares termos, foi proferida, a final, sentença que homologou a partilha conforme o mapa de partilha elaborado pela secretaria.
Inconformado com a decisão, dela interpôs o interessado A, representado neste acto pela sua mãe B, recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a sentença homologatória da partilha constante do mapa de fls. 283 e 284, com a qual a recorrente não se conforme, por entender que decorre de erro na apreciação dos factos constantes nos autos.
2. O autor da herança, G faleceu em 24/11/2010, no Interior da China, no estado de divorciado, deixando um filho menor - A, representado pela ora recorrente.
3. Deixou testamento feito em 11/11/2004, instituindo como seus herdeiros o referido filho e os seus 4 irmãos.
4. À data do falecimento, o autor da sucessão, G era residente em Macau e titular do BIR n.º XXX, todavia, considerando que possuía também residência no interior da China, coloca-se a questão sobre qual o ordenamento jurídico aplicável à sucessão, a determinar pelas normas de conflito de direito internacional privado.
5. O tribunal a quo decidiu aplicar ao caso em apreço a lei da China, por entender que o falecido residia no Interior da China, e não em Macau, o que, no entender da recorrente, não ter respaldo na matéria factual assente nos autos, visto que esta não permite concluir que o autor da sucessão tivesse efectivamente residência na China.
6. A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento (art. 59º do CC), sendo essa determinada pela sua residência habitual, a qual se presume ser Macau, para os indivíduos que tenham direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau (art. 30º, n.º 3 CC).
7. Como já acima se viu, o falecido era residente em Macau e portador do BIR n.º XXX, pelo que não restam dúvidas que a residência habitual do autor da sucessão se presume ser em Macau.
8. Tratando-se de uma presunção ilidível mediante prova do contrário (artigo 343º, n.º 2 CC), pode ser ilidida através prova de que o falecido tinha a sua residência habitual, i.e., o seu centro da vida pessoal e familiar, na China.
9. A mera alegação da cabeça-de-casal que o falecido, G morava na China não é suficiente concluir que era aí onde mantinha o seu centro da vida pessoal e familiar e, consequentemente, para ilidir aquela presunção legal, visto que não foram alegados ou sequer provados factos que permitam sustentar que o falecido não possuía o seu centro da vida pessoal e familiar na RAEM, e que era a partir daqui que se deslocava ao interior da China apenas por motivos relacionados com trabalho ou outros.
10. Ou seja, porque uma coisa não afasta a outra, para ilidir a presunção legal a que alude o art. 30º, n.º 3 do CC não basta alegar que o falecido residia no interior da China; é necessário, sim, provar que este não tinha o seu centro da vida pessoal e familiar em Macau – e isto não ficou demonstrado nos autos.
11. Portanto, não poderia o tribunal a quo considerar ilidida a presunção legal, devendo antes ter aplicado à presente sucessão a lei de Macau, e não a lei da China.
12. Tendo o de cujus deixado um descendente sobrevivo, tem este direito a um terço da totalidade da herança, por conta da legítima (arts. 1994º e 1997º, n.º 2, ambos do CC).
13. O menor A terá direito a um terço da herança, designadamente dos bens móveis deixados pelo seu pai, e não apenas a um quinto, conforme o constante do mapa de partilha.
14. Por outro lado, o autor da sucessão deixou testamento através do qual dispôs da quota disponível, deixando-a ao seu filho A e aos seus quatro irmãos (art. 2016º, n.º 1 do CC).
15. O menor A não é legatário, visto que o testador não deixou bens ou valores determinados - cfr. art. 1870º do CC -, donde que não tem aplicação nestes autos o disposto no art. 2002º do CC.
16. Efectivamente, não havendo qualquer intenção do testador em deixar legado ao menor A, terá este direito, para além da legítima, ao acervo da herança na proporção de 7/15, deixada por testamento.
Conclui, pedindo a revogação da decisão recorrida, e em consequência, a aplicação do ordenamento jurídico de Macau e determinando ao menor A o direito a um terço da herança, bem como ao acervo da herança na proporção de 7/15, deixada por testamento.
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Devidamente notificados, responderam ao recurso o cabeça-de-casal C e os interessados D, E e F, ora recorridos, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
1. 首先,上訴人認為被繼承人G於2010年11月24日在中國內地死亡,由於其持有編號為XXX的澳門居民身份證,按照《民法典》第30條第3款之規定,應推定被繼承人G的常居地為澳門。故此,按照《民法典》第59條之規定,就本案的遺產該應用澳門的法律而非中國的法律。
2. 基於上述之事實,認為其有權利獲得所有遺產的三份之一,尤其是被繼承人G所遺下動產的三份之一,而按照財產分割表所載的五份之一。
3. 另一方面,上訴人亦認為被繼承人G是透過遺囑把其可支配的份額給予A及被繼承人的四兄弟姐妹,因此A有權獲得不只是特留份,而應該是遺囑內留下的所有財產的七份之十五。
4. 然而,對於不同見解給予應有的尊重外,被上訴人(原告)是不同意的。
5. 綜觀上訴人理由陳述的內容,其主要是陳述被上訴判決中,被繼承人的最後常居地是在中國還是在澳門這一事實的認定方面存在錯誤。
6. 按照《民事訴訟法典》第980條第1款的規定,直接利害關係人需於被傳喚後三十日內提起反對及爭執。而同一法典第978條第2款a)項規定“待分割財產管理人之聲明包括被繼承人之最後常居地。”
7. 但上訴人被傳喚時沒有對待分割財產管理人所作的聲明(被繼承人的最後居所為中國)作出反對及爭執。
8. 上訴人不單聲稱對本財產清冊程序沒有異議,並且放棄《民事訴訟法典》第980條所述之期限,所以《民事訴訟法典》第980條第款賦予上訴人的權利經已消滅。
9. 由於相關權利經已消滅,上訴人並沒有權利在本財產清冊程序的隨後階段再對“被繼承人的最後常居地”提起反對或爭執,更不能透過本上訴質疑此一事實。
10. 另一方面,原審法庭的被上訴判決及卷宗第281頁至282頁所持的立場是正確的,按照《民法典》第30條第1至3款的規定,屬人法是以個人之常居地而確立的,而個人常居地則是按照該個人實際且固定之生活中心而為之。
11. 《民法典》第30條第3款作出了一個法律推定:有權領取澳門居民身份證之人為澳門地區之常居民。然而,結合《民法典》第343條第2款之規定,上訴推定僅具有iuris tantum 的性質,亦即為可推翻的。
12. 亦即是說,儘管被繼承人G在過身時持有澳門身份證,被法律推定其常居地為澳門,這只不過是一個(可被推翻的)推定,其常居地亦應該按照《民法典》第30條第2款的規定,把其個人實際且固定之生活中心之所在地視為個人之常居地。
13. 根據卷宗第4頁(為著相關的法律效力,其內容在此視為完全轉錄),廣東省江門巿江門公證處經已證實了被繼承人生前住址為廣東省江門巿蓬江區胜利路XXX。
14. 而儘管被繼承人G在過身時持有澳門身份證,被法律推定其常居地為澳門,但透過上述卷宗第4頁、“范羅崗社區居委會”及“江門巿XX廣告有限公司”的書面確認(見文件1及2),可以知道被繼承人G在過身前一直在江門巿生活及工作,顯然被繼承人G是以江門巿作為其常居地。
15. 那麼,按照《民法典》第58條以及第30條第1至3款的規定,對被繼承人G而言,其屬人法應為中國法律而非澳門法律。
16. 根據《中華人民共和國繼承法》第16條“公民可以依照本法規定立遺囑處分個人財產,並可以指定遺囑執行人,公民可以立遺囑將個人財產指定由法定繼承人的一人或者數人繼承。公民可以立遺囑將個人財產贈給國家、集體或者法定繼承人以外的人。”
17. 同時根據同法的36條:“中國公民繼承在中華人民共和國境外的遺產或者繼承在中華人民共和國境內的外國人的遺產動產適用被繼承人住所地法律,不動產適用不動產所在地法律。”
18. 因此,被繼承人G所遺下財產的動產部分,應當適用《中華人民共和國繼承法》及其於2004年11月11日在江門巿公證處所立的遺囑而分割,即由A、C、D、E及F平分。
19. 而被繼承人G所遺下財產的不動產部分則適用澳門的法律。基於這批不動產具有其專屬性(exclusividade)以及其範圍是確定的(determinação),那麼這批不動產應具有遺贈的性質。
20. 根據《民法典》第1991條第2款的規定,A是有權獲得這批不動產的三份之一。
21. 根據《民法典》第2002條第2款的規定,“接受代替特留份之遺贈即導致喪失對特留份之權利,而接受特留份亦導致喪失對該遺贈之權利”。
22. 換言之,按上述規定,A要麼按特留份的份額取得相關不動產的三份之一,要麼就要按被繼承人G所立遺囑的規定,與C、D、E及F平分。
23. 綜上所述,被上訴判決沒沾有可被推翻之瑕疵,故應裁定上訴人之上訴理由不成立並駁回上訴人之請求。
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Provada está a seguinte factualidade relevante para a decisão do recurso:
Corre termos no Tribunal Judicial de Base a acção especial de inventário obrigatório por óbito de G, registada sob o nº CV3-12-0045-CIV, em que são interessados o cabeça-de-casal C, A(ora recorrente, menor, representado neste acto pela sua mãe B), D, E e F.
O inventariado faleceu em Jiangmen da República Popular da China, no dia 24 de Novembro de 2010, no estado de divorciado, e com sua última residência na China.
AA(ora recorrente, menor, representado neste acto pela sua mãe B) é filho único do inventariado.
O inventariado deixou testamento, perante notário da República Popular da China, tendo declarado dispor de todos os seus bens após a sua morte ao seu único filho e quatro irmãos C, D, E e F, em cinco partes iguais.
À data do óbito do inventariado, este tinha nacionalidade chinesa, era residente da China e era titular do Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente da RAEM.
A relação de bens consta de fls. 168 e 169 dos autos.
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São duas as questões suscitadas no presente recurso.
A primeira é saber qual a lei aplicável aberta por óbito do inventariado, isto é, a lei da RPC ou a lei da RAEM?
Em segundo lugar, urge saber se o filho único do de cujus, para além do direito à legítima, correspondente a um terço da totalidade da herança, terá ainda mais algum direito por força do testamento.
Vejamos por partes.
De acordo com a factualidade assente, o inventariado faleceu na China, onde tinha a sua última residência, tinha a nacionalidade chinesa, era titular do Bilhete de Residente Não Permanente da RAEM, e deixou bens imóveis e móveis na RAEM.
Uma vez que se trata de uma relação jurídica plurilocalizada, é necessário determinar qual a lei aplicável para a sucessão, recorrendo para o efeito as normas de conflito.
Diz o artigo 59º do Código Civil que “a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança e do executor testamentário.”
No que respeita à lei pessoal, preceitua o artigo 30º do mesmo Código o seguinte:
“1. A lei pessoal é a da residência habitual do indivíduo.
2. Considera-se residência habitual o lugar onde o individuo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal.
3. Para efeitos dos números anteriores, a residência habitual em Macau não depende de qualquer formalidade administrativa, mas presume-se residente habitual no território de Macau aquele que tenha direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau.
4. Na hipótese de o indivíduo ter mais de uma residência habitual, sendo uma delas em Macau, a lei pessoal é a do território de Macau.
5.
6.
7…”
O Tribunal a quo entende que não obstante o de cujus ser titular do Bilhete de Residente Não Permanente da RAEM, mas como tinha o centro efectivo e estável da sua vida pessoal na China, por força do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 30º do Código Civil, a lei pessoal é a lei da residência habitual do inventariado, que é a lei chinesa.
Insurge-se o recorrente contra essa decisão.
A nosso ver, face aos elementos constantes dos autos, os quais foram prestados pelo cabeça-de-casal nos presentes autos de inventário, assente está que o inventariado faleceu na China, onde tinha a sua última residência, tinha a nacionalidade chinesa e era titular do Bilhete de Residente Não Permanente da RAEM.
Na determinação da lei pessoal reguladora das sucessões, estatui-se no nº 1 do artigo 30º, conjugado com o disposto no artigo 59º, ambos do Código Civil, que a lei pessoal é a da lei da residência habitual do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste.
Entende-se por residência habitual o lugar onde o individuo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal (nº 2 do artigo 30º do Código Civil).
Para o recorrente, entende ele que não há factos concretos que permitam sustentar que o falecido não possuía o seu centro da vida pessoal e familiar na RAEM, referindo que para ilidir a presunção legal a que se alude no nº 3 do artigo 30º do Código Civil, não basta alegar que o falecido residia no interior da China à data da sua morte, antes é necessário provar que este não tinha o seu centro da vida pessoal e familiar em Macau.
Ora nos autos, conforme as declarações prestadas pelo cabeça-de-casal, foi dito que o de cujus faleceu na China, onde também tinha a sua última residência.
Decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.1.2007, in dgsi, citado para efeito de direito comparado, que “As declarações do cabeça de casal não beneficiam de qualquer presunção de fidedignidade, apenas fazendo fé em juízo até serem impugnadas. Uma vez impugnadas compete ao cabeça de casal fazer a prova do que afirmou, sendo que, relativamente a factos sujeitos a prova documental ou específica, as declarações não têm valor sem a apresentação dos respectivos documentos ou títulos.”
No caso vertente, podemos verificar que as declarações do cabeça-de-casal nunca foram impugnadas pelos interessados, isso significa que, na falta de impugnação, os factos que resultam dessas declarações devem dar como provados.
Melhor dizendo, tendo o cabeça-de-casal afirmado perante o Tribunal que o inventariado tinha a sua última residência na China, essas declarações fazem fé em juízo, e não tendo sido impugnadas pelos interessados na partilha, deixaria de ter relevância a presunção aludida no nº 3 do artigo 30º do Código Civil, considerando que aquela última residência significa, no fundo, a residência habitual do inventariado, ou seja, o lugar onde o indivíduo, neste caso o inventariado, tinha o centro efectivo e estável da sua vida pessoal.
Isso significa que, em princípio, a sucessão deve ser regulada pela lei chinesa.
Por outro lado, segundo a lei de conflitos da República Popular da China, à sucessão é aplicável, quanto a bens imóveis, a lei da localização dos bens, e, quanto aos restantes bens, a lei de residência habitual que o falecido tiver por ocasião da morte – artigo 31º, capítulo IV, da Lei de Aplicação do Direito nas Relações Civis Relacionadas com o Estrangeiro, adoptada em 28 de Outubro de 2010 pela 17ª Sessão do Comité Permanente da 11ª Assembleia Nacional do Povo.
Daí a conclusão de que, não obstante a norma de conflitos de Macau determinar a aplicação da lei chinesa, a lei aplicável continuaria a ser a lei da RAEM, no que respeita aos bens imóveis, por força do disposto no nº 2 do artigo 16º do Código Civil, em que se prevê o mecanismo de reenvio para o direito interno da RAEM.
Nestes termos, bem andou a sentença recorrida ao ter decidido que no tocante aos bens imóveis, a lei aplicável é a lei sucessória da RAEM; enquanto aos bens móveis, é a lei chinesa, por ser essa a lei da residência habitual do de cujus à data de morte.
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A outra questão colocada pelo recorrente é saber se o recorrente, como sendo filho único do inventariado, terá mais algum direito para além do direito à legítima.
Entende a sentença recorrida que, por força do disposto no nº 2 do artigo 2002º do Código Civil, uma vez que a aceitação da legítima envolve a perda do direito do legado, o filho único, ora recorrente, deixaria de ter direito a receber o legado deixado pelo testador ou de cujus.
Sustenta o recorrente que a referida norma não é aplicável por não estar em causa um legado.
Parece que tem razão o recorrente.
Ora bem, prevê-se no nº 1 e 2 do artigo 1870º do Código Civil que “os sucessores são herdeiros ou legatários; diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.”
Como observa Pereira Coelho, “o critério legal de distinção entre o herdeiro e o legatário vem assim a assentar – pode dizer-se – na determinação ou indeterminação dos bens deixados: o instituído será herdeiro quando recebe bens indeterminados e legatário quando recebe bens determinados.” 1
Refere ainda aquele distinto Professor que «“quota” é palavra que a lei usa no sentido de parte alíquota, ou melhor, de qualquer fracção aritmética (ainda que não seja parte alíquota – v.g. 3/5, 4/7, etc.), no sentido, portanto, de uma quota ideal ou abstracta de todo.»2
No vertente caso, verifica-se que o de cujus deixou por testamento a totalidade da sua herança ao seu filho e aos quatro irmãos, isso significa que os sucessores não são chamados a suceder em bens determinados, mas os seus direitos estendem-se a uma quota-parte da herança, pelo que eles não são legatários.
Com efeito, não sendo o filho do de cujus legatário, inaplicável seria o disposto no nº 2 do artigo 2002º do Código Civil.
Não obstante, considerando que o de cujus deixou testamento, importa já agora saber se o recorrente, filho único do inventariado, terá direito a receber mais alguma parte da herança para além da legítima.
Para resolver a questão, temos que saber qual era a intenção do testador aquando da feitura do testamento.
Diz-se testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (artigo 2016º, nº 1 do Código Civil).
Mais precisamente, é um negócio unilateral, pessoal e não receptício, nele devendo exprimir a própria vontade do seu autor.
Segundo o nº 1 do artigo 2024º do Código Civil, “na interpretação das disposições testamentárias deve observar-se o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.”
Ora bem, consta do testamento, outorgado perante notário da República Popular da China, o seguinte: “我去世後,我生前個人所有的合法財產由兒子A、長兄C、二姐D、三姐E、四哥F五人平分”, em português, significa que o de cujus declarou dispor de todos os seus bens legais ao seu filho e restantes quatro irmãos, em cinco partes iguais.
Face ao teor desse testamento, é fora de dúvida que o de cujus apenas pretendia deixar a cada uma dessas cinco pessoas 1/5 da sua herança, isto é, igualar todos os herdeiros.
De facto, como na China não existe o regime da sucessória legitimária, somos a entender que o testador nunca teria contado com essa situação, no sentido de que parte da herança ficaria fora da sua livre disposição, daí resulta claramente que a intenção do de cujus seria dispor de todos os seus bens, e na sua perspectiva, cada um dos herdeiros não receberia mais de 1/5.
Entretanto, por que o recorrente é herdeiro legitimário, tem direito a suceder, por força da lei sucessória da RAEM, 1/3 da herança, cujo valor já ultrapassou 1/5 do valor da herança, tal como estipulado no testamento, pelo que, se o remanescente 2/3 da herança for dividido em cinco partes iguais, incluindo a parte do recorrente, este vai receber muito mais do que os restantes herdeiros.
Nestes termos, em relação aos bens imóveis, entendemos que bem andou o Tribunal a quo ao dividir os restantes 2/3 ou 20/30 da herança apenas em quatro partes iguais (com exclusão do recorrente), cabendo a cada um dos herdeiros testamentários 5/30, o que parece mais ajustado com a vontade do testador.
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Já no tocante aos bens móveis, conforme dito acima, a lei aplicável é a lei chinesa, por ser a lei da residência habitual do inventariado ao tempo do falecimento (artigos 30º, nº 1 e 59º do Código Civil). Por sua vez, a lei interna chinesa considera igualmente aplicável, em relação aos bens móveis, a sua própria lei sucessória, que é a lei da residência habitual do falecido à data de morte (artigo 31º da Lei de Aplicação do Direito nas Relações Civis Relacionadas com o Estrangeiro, adoptada em 28 de Outubro de 2010, bem como o parágrafo 1º do artigo 36º da Lei Sucessória da República Popular da China).
Uma vez apurado que a lei pessoal do de cujus é a lei chinesa, bem andou o Tribunal a quo ao ter aplicado a lei sucessória da China, no que respeitam aos bens móveis, segundo a qual não está consagrado o regime da sucessão legitimária.
Aqui chegados, no que respeitam aos bens móveis, dúvidas de maior não restam de que tanto o recorrente como os restantes 4 herdeiros, apenas têm direito a receber 1/5 da herança, por serem cinco os herdeiros testamentários, ao abrigo do disposto no artigo 16º da Lei Sucessória da R.P.C..
Tudo ponderado, há-de julgar improcedentes as razões aduzidas pelo recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
***
RAEM, 10 de Novembro de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 F. M. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pág. 63
2 Obra citada, pág. 64
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