Processo n.º 193/2016
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 17/Novembro/2016
ASSUNTOS:
- Reconvenção; caso julgado formal
- Adequação processual a uma tramitação decorrente de diferentes formas de processo
SUMÁRIO :
1. Considerando um caso em que os AA. se arrogam a propriedade de uma fracção onde vivem, porquanto dizem que encarregaram a 1.ª Ré de a comprar a si, perante a a venda por parte desta a terceiros, vêm pedir a nulidade da venda, invocando um negócio simulado e mais pedem a transferência da propriedade para si;
2. Se, perante este pedido, os RR se defendem, dizendo que a propriedade não pertence aos AA, antes a 1.ª ré lhes arrendou a casa e que estes deixaram de pagar as rendas, razão por que pedem a resolução do contrato de arrendamento e entrega do locado,
3. Pedido reconvencional este que foi aceite pelo juiz, despacho esse não impugnado,
4. Passando os AA. a discutir nos autos a relação arrendatícia e passando a defender que a falta de pagamento de rendas se ficou a dever a culpa dos RR,
5. Não podem agora, em sede de recurso, a final, vir invocar a inadmissibilidade do pedido reconvencional, por falta dos respectivos pressupostos e por incompatibilidade das formas de processo aplicáveis aos diferentes pedidos, configurando-se ter sido possível adequar e compatibilizar os procedimentos processuais específicos.
O Relator,
Processo n.º 193/2016
(Recurso Civil)
Data : 17/Novembro/2016
Recorrentes : - A
- B
Recorridos : - C
- D
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. A e B, Autores nos autos supra referenciados, inconformados com a douta sentença proferida nos autos e que julgou improcedente a acção – onde se pedia se julgasse nula e de nenhum efeito, por ser simulado, a transmissão do imóvel celebrado entre os ora Réus; se mandasse cancelar na competente Conservatória do Registo Predial o registo da transmissão; se transmitisse a fracção em causa ou não sendo possível indemnizar os Autores pagando o valor actual da mesma, a ser fixado pelo douto Tribunal - e procedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus C e D – onde se pedia fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no não pagamento de rendas e, em consequência, os Autores condenados a entregar a fracção livre e devoluta de pessoas e bens aos 2º e 3ª Réus; os Autores condenados a pagar indemnização aos 2º e 3ª Réus correspondente ao valor das rendas devidas em dobro, desde Maio de 2012 até à declaração de resolução do contrato, valor que, naquela data, já perfazia o montante de MOP$37.116,00, acrescido de juros de mora à taxa lega, a que acresceriam as rendas que se vencessem até efectiva entrega da fracção aos 2º e 3ª Réus, em valor também correspondente ao dobro da renda devida, acrescido de juros de mora à taxa legal; fossem os Autores condenados a pagar aos 2º e 3ª Réus o valor de MOP$50.000,000 a título de despesas com honorários, acrescido das quantias suportadas a título de custas judiciais, bem como das quantias que se apurassem em sede de execução de sentença -, vêm interpor recurso, concluindo da seguinte forma:
a) Vem o presente Recurso interposto da douta Sentença que decidiu pela admissibilidade e procedência do pedido reconvencional deduzido pelos Réus C e D, ora Recorridos, sem que o pedido aí formulado, no entendimentos dos Autores e ora Recorrentes, emergisse de facto jurídico que serve de fundamento à acção principal, e, bem assim, pela razão de que ao pedido reconvencional corresponde forma de processo especial, nomeadamente Acção de Despejo (cfr. os artigos 929.º e ss do cpct portanto diferente da que corresponde ao pedido dos Autores, e consequente procedência da resolução do contrato de arrendamento, restituição do imóvel, indemnização das rendas e pagamento de juros moratórios sobre o valor de cada renda vencida e não paga;
b) Mesmo que assim não se entenda e sem se conceder, ma vez admitido o pedido reconvencional, ou autorizado o pedido reconvencional, deveria o Tribunal a quo ter respeitado, em termos adaptáveis, o disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 65.º do CPC, ou seja, adaptado a tramitação processual ao pedido reconvencional autorizado (cfr. o n.º 4 do artigo 65.º do CPC);
c) Inconformados com o decidido nestas partes, vêm interpor recurso, que é de direito, por considerarem terem sido violadas as disposições constantes do n.º 1 e n.º 2 do artigo 412.º, do artigo 414.º, do n.º 3 do artigo 218.º, dos artigos 929.º a 945.º (Acção Especial de Despejo) e dos n.º 3 e n.º 4 do artigo 65.º, todos do CPC, culminando com pedido de declaração de nulidade do decidido quanto à admissibilidade do pedido reconvencional e, subsidiariamente, com pedido de nulidade da decisão relativa à instância reconvencional, por ausência da legalmente imposta adaptação da tramitação processual, mais considerando que o Tribunal a quo não especificou os fundamentos de direito que sustentaram a decisão de admissibilidade do pedido reconvencional e não se pronunciou sobre a legalmente imposta obrigação de adaptação da tramitação processual acção [cfr. as alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC ];
d) No caso dos presentes autos, o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção [cfr. a alínea a) do n.º 2 do artigo 218.º do CPC];
e) Para defesa deste entendimento, dentro de vasta jurisprudência no mesmo sentido, remetemo-nos e socorremo-nos meramente da jurisprudência deste douto Tribunal, mormente no decidido no Acórdão proferido no Processo n.º 80/2006, em 16 de Março de 2006, num processo em tudo muito semelhante ao dos presentes autos, no sentido de que, transcrevendo-se: "Admitindo-se a vantagem de tal "acção cruzada" em prol do princípio da economia processual, e não se ignorando que o referido pedido reconvencional causa também inconvenientes de ordem processual, entendeu-se necessário condicionar a sua admissão à verificação de certos requisitos legais como os previstos no já referido arte 218º do C.P.C.M., sendo pois o que, pelo que já se deixou exposto, se irá proceder em relação ao ínsito na alínea a) do seu nº 2.":
f) À sombra da jurisprudência deste douto Tribunal recursório, não se afigura qualquer relação entre a alegada simulada venda, ou venda da fracção, e a falta de pagamento de rendas, ou suposta violação de um contrato de natureza locatícia, por muito distintas que são as causas de pedir atinentes aos dois pedidos em causa, para além de assentes em momentos cronológicos bastante distintos, pelo que, obrigatoriamente, se deverá concluir pela inadmissibilidade da reconvenção nesta concessão da lei adjectiva;
g) Ora, a falta de apreciação da inadmissibilidade da reconvenção - excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso - importa a nulidade da decisão que a admite, porquanto o Juiz deveria tê-Ia apreciado e conhecido oficiosamente, por lhe ser lícito fazê-lo durante o desenvolvimento de toda a instância, inclusivamente na sentença, nos termos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 571.º e n.º 2 e n.º 3 do artigo 569.º, todos do CPC, pelo que a sentença é nula no tocante à admissibilidade da reconvenção, cuja declaração se requer;
Assim não se entendendo,
h) Em princípio e por regra, nunca poderia a reconvenção ser admitida, porquanto a acção de despejo está sujeita a forma de processo especial, a qual é muito distinta da tramitação processual que sustentou os presentes autos;
i) O rigorismo deste princípio da compatibilidade processual poderá ser contornado pela consideração daqueloutro princípio da adequação formal, abrindo-se porta à autorização da reconvenção pelo Juiz quando, correspondendo-lhe embora uma forma de processo diversa, as tramitações de ambas as formas não sejam manifestamente incompatíveis e seja indispensável ou conveniente a apreciação conjunta;
j) Contudo, tal como entende a jurisprudência e doutrina, tal autorização constitui uma decisão-surpresa, pelo que o Juiz, neste caso, ao abrigo do disposto nos artigos 7.º e 4.º, ambos do CPC, deveria ter determinado a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem, e nunca simplesmente declarar a admissão liminar da reconvenção no saneador, ou, já em sede de sentença, a admissão expressa dos pedidos reconvencionais e sem qualquer adaptação dos trâmites processuais, porquanto os que correspondem ao pedido dos Autores e os que correspondem ao pedido reconvencional são manifestamente incompatíveis, admitindo-se e decidindo-se, desta forma atípica, sobre a admissão e sobre o mérito do pedido reconvencional (cfr. fls. 297 dos autos) que deveria ter respeitado outros trâmites processuais, como seria da expectativa dos Autores;
k) Os Autores não se socorreram do Tribunal para discutir um contrato de natureza locatícia, mas sim um negócio simulado, tendo organizado toda a sua alegação e pedido na base desta última causa de pedir;
l) Pelo exposto, também por esta via, entendem os Recorrentes que a decisão sobre a admissibilidade da reconvenção, assim como toda a sua posterior tramitação até à sentença final, é nula, por violar o disposto no n.º 3 do artigo 218.º e nos artigos 929.º a 945.º, todos do CPC;
m) Reiterando-se, a falta de apreciação da inadmissibilidade da reconvenção - excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso - importa a nulidade da decisão que a admite, porquanto o Juiz deveria tê-Ia apreciado e conhecido oficiosamente, por lhe ser lícito fazê-lo durante o desenvolvimento de toda a instância, inclusivamente na sentença, nos termos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 571.º e n.º 2 e n.º 3 do artigo 569.º, todos do CPC, pelo que a sentença é nula no tocante à admissibilidade da reconvenção;
Também assim não se entendendo,
n) Uma vez autorizada a reconvenção pelo juiz - note-se que sem se saber com que fundamento, porquanto tanto o despacho-saneador assim como a sentença são vazios quanto à fundamentação da admissibilidade da reconvenção - estipula a lei processual civil que, quando ao pedido do réu corresponde uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, deverá ser respeitado, em termos adaptáveis, o disposto nos n.º 3 e n.º 4 do artigo 65.º do CPC;
o) Ou seja, a reconvenção não deverá ser admitida em caso de tramitação manifestamente incompatível, o que também é o caso dos presentes autos, sem que tenha o Tribunal a quo adaptado a tramitação processual ao pedido autorizado pedido reconvencional (cfr. o n.º 4 do artigo 65.º do CPC);
p) Note-se que a acção de despejo, assim se entendendo, acabou por seguir os trâmites da acção comum ordinária, retirando aos Autores todos os meios de defesa que advém do processo especial de despejo, precisamente porque as tramitações processuais são manifestamente incompatíveis e não foram adaptados pelo Tribunal a quo, facto que impede, nos termos do CPC, a admissibilidade da reconvenção in casu, ferindo de nulidade a decisão respeitante à instância reconvencional;
q) Nos presentes autos, acabou por suceder precisamente o que a lei processual pretende evitar quando proíbe a instância reconvencional em situações de tramitações processuais distintas, ou seja, ficaram os Autores precludidos do exercício de direitos de defesa que advém do processo especial de despejo, e tudo porque o tribunal a quo não atendeu ao disposto no n.º 3 do artigo 218.º e n.º 4 do artigo 65.º, todos do CPC;
r) Pelo exposto, está ferida de nulidade a decisão relativa à instância reconvencional, sendo de todo injusta a decisão-surpresa que lhes ordena a restituição do locado e pagamento de juros moratórias, sem que tenham tido a possibilidade de lançar mão dos mecanismos que o processo especial de despejo lhes confere, por falta de adaptação dos trâmites processuais que se impunha nos presentes autos, tendo o Tribunal a quo deixado de se pronunciar sobre a legalmente imposta obrigação de adaptação da tramitação processual [cfr. as alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC].
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida quanto à instância reconvencional.
2. C e D, 2.° e 3.° Réus nos autos à margem identificados, em que são Autores A e B, notificados das alegações de recurso apresentadas pelos Autores, ora recorrentes, nos termos do art. 613.°, n.º 2 do Código de Processo Civil (C.P.C), vêm apresentar contra-alegações, dizendo, em suma:
A - Quanto aos fundamentos do recurso ora interposto - e que se situam a montante, cingindo-se aos pressupostos de admissibilidade da reconvenção -, entendem os Recorridos que não assiste qualquer razão aos Recorrentes e que bem andou o Tribunal a quo ao ter analisado e, a final, decretado procedente o pedido reconvencional.
B - Quer a admissibilidade, quer a procedência do recurso ora interposto esbarram com o impedimento do caso julgado formal.
C - O pedido reconvencional foi oportunamente deduzido pelos Réus ora Recorridos, tendo os Autores, nesse seguimento, apresentado o articulado réplica, no âmbito do qual não deduziram qualquer tipo de oposição à reconvenção.
D - Em acto subsequente, em sede de despacho saneador, o Tribunal a quo admitiu liminarmente o pedido reconvencional (dr. despacho de fls. 156), sendo que de tal despacho não foi interposto recurso, donde, quanto ao mesmo, há caso julgado formal, nos termos previstos pelo art. 575.º do Código de Processo Civil.
E - Ou seja, quer em sede de réplica, quer mediante a interposição de recurso do despacho saneador, aos Autores foram dadas duas oportunidades para se oporem ao pedido reconvencional, apresentando, nomeadamente, as razões com só agora vêm invocadas para efeitos de motivar o presente recurso.
F - Tendo os Autores optado por nada dizer ou fazer, os fundamentos agora apresentados em sede de recurso são extemporâneos e, como tal, não podem ser conhecidos, na medida em que o despacho que admitiu a reconvenção transitou em julgado, encontrando-se o Tribunal a que vinculado a tal decisão.
G - Pelo exposto, deve o recurso ora interposto ser declarado sumariamente improcedente, por violação do caso julgado formal.
H - Mesmo que assim não se entendesse - hipótese que por mero dever de patrocínio se pondera, sem conceder - contrariamente à pretensão dos Autores manifestada no recurso, no caso também não se verifica qualquer impossibilidade ou incompatibilidade de conhecimento do pedido reconvencional deduzido pelos Réus, ora Recorridos, nos presentes autos.
I - Quanto à alegada incompatibilidade do pedido deduzido na acção com o pedido reconvencional, entendem os ora Recorridos que os Recorrentes não analisaram o art. 218.° do C.P.C., ou tão pouco o art. 218.°, n.º 2, a), na sua totalidade e, salvo o devido respeito, apenas tecem considerações abstractas sobre tal alegada incompatibilidade, não fazendo qualquer análise no que diz respeito ao caso concreto e ora em apreço.
J - No caso em apreço, para além de se verificar como elemento de conexão a identidade dos respectivos sujeitos, também o facto jurídico de onde emerge a acção e a defesa diz respeito precisamente ao mesmo imóvel, sendo este o objecto do litígio que opõe Autores e Réus.
K - Emergindo claramente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus da defesa apresentada pelos mesmos, porquanto enquanto os Autores se pretendiam arrogar proprietários do imóvel objecto dos presentes autos, os Réus, em sua defesa, contrapuseram que o título de ocupação dos Autores era antes um contrato de arrendamento (que, aliás, fora junto pelos próprios Autores como doc. 21 da petição inicial), contrato esse incumprido pelos mesmos.
L - Pelo que, em reconvenção, limitaram-se os Réus a tirar as devidas consequências da defesa apresentada, pedindo a devolução do imóvel e que os Autores procedessem ao pagamento das rendas em falta.
M - Assim, dúvidas não existem de que o pedido reconvencional deduzido pelos Réus tem pleno cabimento no art. 218.° do C.P.C, emergindo claramente "do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa",
N - Depois, quanto ao segundo argumento utilizado pelos Recorrentes o de ao pedido reconvencional corresponder uma forma de processo diferente - no entender dos ora Recorridos, no caso concreto, tal argumento só na aparência consubstancia o obstáculo previsto no art. 218.°, n.º 3 do C.P.C, desde logo porque entre o pedido principal deduzido na acção e o pedido deduzido em sede de reconvenção não se verifica qualquer tramitação incompatível, nos termos a que se refere o art. 65.°, n.ºs 3 e 4 do C.P.C.
O - Porquanto é próprio artigo 930.° do C.P.C que diz que: "A acção de despejo, na sua fase declarativa, segue os termos do processo ordínário …”.
P - Talvez por isso mesmo, no âmbito do direito processual em vigor em Portugal - a fonte do Código Civil e de Processo Civil de Macau - em termos gerais, a acção de despejo deixou de ser configurada como acção especial, sendo que as acções para declaração de resolução ou caducidade dos contratos de arrendamento seguem a forma do processo declarativo ordinário, à semelhança das acções de reivindicação ou das acções de anulação (por simulação ou outros vícios).
Q - Ou seja, no entender dos Recorridos, os pedidos em apreciação numa acção de despejo e numa acção de anulação (por simulação), apesar das diferentes formas de processo previstas no âmbito do direito processual de Macau, seguem uma tramitação processual manifestamente compatível.
R - Tratando-se de pedidos que dependem essencialmente da apreciação dos mesmos factos, como se viu no caso em apreço.
S - Pelas razões expostas, quer em obediência ao princípio do caso julgado formal, quer por não se verificar nenhum impedimento ao conhecimento do pedido reconvencional, nos termos previstos no art. 218.° do C.P.C. , entendem os Recorridos que bem andou o Tribunal a quo ao ter aceite e, a final, declarado procedente a reconvenção oportunamente apresentada nos autos.
T - Decisão essa que igualmente se impõe por respeito aos princípios da economia e celeridade processuais, que em geral motivam a faculdade que a lei confere às partes de deduzirem pedido reconvencional.
U - A sentença recorrida não encerra, portanto, a violação de qualquer norma jurídica, devendo, assim, ser integralmente mantida.
Termos em que deverá o recurso ora interposto ser declarado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 22 de Setembro de 2000, a ora 1ª Ré assinou escritura pública adquirindo a fracção autónoma designada por “X” do XX.º andar, para habitação, do prédio sito em Macau, na Estrada dos XX, n.º s XX, Istmo de XX, n.º s XX e Praça das XX, n.ºs XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.º 2XXX2, fls. XXV, do Livro B-XX, inscrita na matriz sob n.º 07XXX9. (alínea a) dos factos assentes)
- Por escritura de compra e venda, datada de 14 de Outubro de 2011, a 1ª Ré vendeu a fracção autónoma identificada em a) a C e D, ora 2º e 3ª Réus, pelo valor de MOP$833.490,00. (alínea b) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- Todas as despesas com impostos, as taxas de advogado, as taxas de escritura e de registo relacionados com a aquisição da fracção “X9” foram pagos pela 1ª Ré (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Desde a data referida em a) são os Autores quem habita a fracção identificada em a) ali tendo sediada a sua vida familiar. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- As despesas com água e electricidade relativas á fracção autónoma referida em a) são suportadas pelos Autores. (resposta ao quesito 7ºA da base instrutória)
- Os Autores pagaram o condomínio relativamente à fracção autónoma referida em a) dos meses de Outubro de 2000 a Maio de 2001. (resposta ao quesito 7ºB da base instrutória)
- A 1ª Ré, em 23 de Abril de 2009, pagou o condomínio relativo ao período compreendido entre Junho de 2001 e Abril de 2009 referente à fracção identificada em a). (respostas aos quesitos 8º e 9º da base instrutória)
- A 1ª Ré pagou as despesas da fracção “X9”, como o fundo de reparação predial, a despesa com alteração das portas de aço das cabinas dos elevadores, a despesa com a conservação dos elevadores. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- A 1ª Ré pagou a renda devida pela fracção “X9”. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Só quando o 2º Réu foi ter com os ora Autores para que estes assinassem um contrato de arrendamento, é que estes tiveram conhecimento da venda referida em b). (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Os 2º e 3ª Réus nunca foram ver ou visitar a fracção que alegadamente adquiriram. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- Em 1996, o Autor A veio viver para Macau. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Uma vez que o Autor A é irmão mais velho de E, companheiro da 1ª Ré esta deixou-o viver na fracção onde habitavam sita em Macau, Bairro de “XX”, Edf. “XX”, XXº andar XX. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- Em 2000, como B esposa do Autor A veio viver em Macau, este pediu à 1ª Ré para deixar a esposa viver também na fracção sita em Macau, Bairro de “XX”, Edf. “XX”, XXº andar XX. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Durante o período em que o Autor A viveu na referida fracção “2D”, este nunca pagou à 1ª Ré qualquer quantia. (respostas aos quesitos 7º e 21º da base instrutória)
- A 1ª Ré adquiriu, pelo preço de MOP$50.000,00, a fracção autónoma referida em a) (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- Dada a relação familiar dos Autores com o seu companheiro, a 1ª Ré deixou aqueles a viver na fracção referida em a). (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- Sempre que a 1ª Ré pediu aos Autores para pagar a renda ou, para restituir a fracção “X9”, estes não responderam à 1ª Ré. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
- A 1ª Ré ao deixar os Autores residir na fracção “X9” pediu-lhes para suportarem as despesas emergentes da fracção. (resposta ao quesito 26º da base instrutória)
- Em 27 de Setembro de 2011, a 1ª Ré assinou um contrato-promessa de compra e venda, da fracção “X9” aos 2º e 3ª Rés e ao mesmo tempo recebeu o sinal de HKD$200.000,00. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- No dia da escritura referida em b) a 1ª Ré recebeu o remanescente do preço pago pelos 2º e 3ª Réus, de HKD$610.000,00. (resposta ao quesito 32º da base instrutória)
- A 1ª Ré já pagou a comissão à agência imobiliária “F”. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)
- Os 2º e 3ª Réus adquiriram a fracção autónoma através da agência imobiliária Fomento Predial F. (resposta ao quesito 35º da base instrutória)
- Os 2º e 3ª Réus têm vindo a adquirir diversas fracções autónomas no prédio onde se encontra a fracção objecto dos presentes autos, entre as quais fracções que têm exactamente a mesma configuração desta. (resposta ao quesito 36º da base instrutória)
- Na presente data, os 2º e 3ª Réus são titulares da maioria das fracções autónomas do referido prédio. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- A fracção objecto dos autos tem uma área de apenas 28.9 m2 e o prédio de que faz parte encontra-se degradado. (resposta ao quesito 38º da base instrutória)
- Previamente à aquisição da casa, os 2º e 3ª Réus foram informados pela agência imobiliária Fomento Predial F que a proprietária, a 1ª Ré, tinha deixado uns familiares a residir na fracção, não existindo contrato de arrendamento, pelo facto dos Autores serem parentes da 1ª Ré. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)
- Após a aquisição da fracção, os 2º e 3ª Réus dirigiram-se aos Autores e comunicaram-lhes que pretendiam reaver a fracção. (resposta ao quesito 40º da base instrutória)
- Após o referido no item anterior os Autores comunicaram aos 2º e 3ª Réus que precisavam de um prazo de 6 (seis) meses para desocupar a fracção. (resposta ao quesito 41º da base instrutória)
- Ao que os 2º e 3ª Réus anuíram, desde que os Autores assinassem um contrato de arrendamento. (resposta ao quesito 42º da base instrutória)
- No seguimento do referido nos itens anteriores em Novembro de 2011, foi assinado o contrato de arrendamento, pelo referido prazo de 6 (seis) meses. (resposta ao quesito 43º da base instrutória)
- Os Autores a partir da data referida no item anterior e apenas até Abril de 2012 procederam ao pagamento da renda aos 2º e 3ª Réus. (resposta ao quesito 44º da base instrutória)
- O valor de HKD$3.000,00 de renda foi o valor acordado com os Autores, tendo os mesmos invocado que não tinham capacidade de pagar mais do que HKD$3.000,00. (resposta ao quesito 45º da base instrutória)
- O valor de renda relativa à fracção 8X era de HKD$4.300,00, à data de 7 de Setembro de 2011. (resposta ao quesito 48º da base instrutória)
- Os Autores desde Maio de 2012 não pagam qualquer renda aos 2º e 3ª Réus. (resposta ao quesito 49º da base instrutória)
- Os 2º e 3ª Réus pagaram MOP$50.000,00 em honorários ao seu Advogado com esta acção. (resposta ao quesito 52º da base instrutória)
III – FUNDAMENTOS
1. Basicamente o que se discute no presente recurso reconduz-se em saber se era admissível a reconvenção de forma a declarar a nulidade da sentença proferida por inadmissibilidade de tal pedido.
Os AA. deixaram cair os pedidos que formularam na acção, estando apenas em discussão a matéria respeitante ao pedido reconvencional.
2. A situação é a seguinte:
Os AA. propõem uma acção, arrogando-se a propriedade de uma fracção, onde vivem, que dizem ter sido comprada por sua ordem e com dinheiro seu pela 1.º Ré, pedindo a nulidade da venda dessa fracção aos segundos RR., por alegada simulação.
Estes últimos, perante este pedido, o que dizem? Que não é verdade que a casa seja dos AA. e se eles ali se encontram é porque com eles celebraram um contrato de arrendamento, sobre o qual, aliás, desde Abril de 2012 deixaram de pagar rendas, razão por que pedem a resolução do contrato e consequente entrega em sede de reconvenção.
O que se prova nos autos é esta versão e, consequentemente foi lavrada sentença em conformidade.
Ainda que a questão não venha colocada, não se deixa de se nos afigurar poder haver má-fé dos AA., conduta que não mereceu sinalização na douta sentença proferida e por isso nos abstemos de aí intervir.
Prendem-se agora os recorrentes com uma questão formal, qual seja a de que não foi seguida a forma de processo adequada à pretensão dos RR., qual fosse a acção de despejo.
Mas, questionamo-nos, quem foi que, sendo arrendatário, pretendia ser reconhecido como proprietário e, nessa conformidade, deu azo a que o verdadeiro proprietário pusesse os “termos nos carris” e, na acção apropriada, se apurassem os termos e títulos da detenção sobre a fracção em causa?
Pretendem os AA. fazer valer-se de uma errada forma processual para fazer valer um direito que bem sabem que não lhes assiste.
3. Atentemos na pertinente fundamentação expendida na douta sentença recorrida:
“Com a presente acção, invocaram os Autores que a fracção autónoma discutida nos autos foi adquirida pela 1ª Ré em nome própria, mas sob solicitação daqueles e com o dinheiro pago pelos mesmos, com a promessa desta de lhes transferir a propriedade. A 1ª Ré, por aparência da escritura pública de compra e venda, transferiu a propriedade da fracção autónoma aos 2° e 3ª Réus, mas na realidade, nunca houveram a intenção nem de compra nem da venda por nenhum partes dos contraentes. Pretendendo que seja declarada nula a transmissão da propriedade através da escritura pública com fundamento de simulação e que lhes seja transferida a propriedade ou condena a 1ª Ré a lhes indemnizar.
Simulação
(…)
Mandato sem representação
(…)
Reconvenção
Na contestação apresentada pelos 2° e 3ª Réus, estes deduziram reconvenção, com o fim de despejar os Autores por falta de pagamento da renda.
Poderá inculcar a questão da compatibilidade da forma processual desse pedido reconvencional com a acção, sendo despejo acção especial, porém, perante a admissão expressa dos pedidos de reconvenção no saneador, avançamos directamente para conhecimento do mérito de causa da reconvenção.
*
Despejo
Na reconvenção, argumentaram os 2° e 3ª Réus que, após da aquisição da fracção autónoma, deslocaram à fracção autónoma em causa, contactando com os Autores que nela se encontraram resididos, para que estes desocupassem do local, após a negociação com eles, chegou a celebrar com eles um contrato de arrendamento por seis meses, com a renda mensal de HKD3.000,00. Mas desde Abril de 2012, os Autores deixaram de pagar qualquer renda.
Natureza Jurídica da relação jurídica estabelecida pelas partes
Nos termos do art°969° do C.C., “Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar a outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.”
Diz, por outro lado, o art°970° do C.C. que “A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.”
O art°1031°, n° 1 do C.C. preceitua que “ O arrendamento pode ter como fim a habitação, o exercício de empresa comercial, o exercício de profissão liberal, a actividade rural, ou outra aplicação lícita do prédio.”
Nos presentes autos, está assente que, após a aquisição da fracção, os 2º e 3ª Réus dirigiram-se aos Autores e comunicaram-lhes que pretendiam reaver a fracção. Os Autores comunicaram aos 2º e 3ª Réus que precisavam de um prazo de 6 (seis) meses para desocupar a fracção. Ao que os 2º e 3ª Réus anuíram, desde que os Autores assinassem um contrato de arrendamento. Foi, assim, assinado um contrato de arrendamento, pelo prazo de 6 (seis) meses. Os Autores apenas procederam ao pagamento da renda devido até Abril de 2012 aos 2º e 3ª Réus.
Segundo o quadro fáctico acima referido, dúvidas não restam de que o contrato celebrado entre os 2° e 3ª Réu e os Autores enquadra-se no contrato de arrendamento para fim de habitação.
Os Autores e os 2° e 3ª Réus celebraram um contrato nos termos dos quais estes deram de arrendamento a estes a fracção autónoma em jogo com o prazo de seis meses a partir de Novembro de 2011, mediante o pagamento de renda mensal por aqueles no valor de HK$3.000,00.
Estão fora de dúvida que entre os Autores e os 2° e 3ª Réus foi estabelecida uma relação jurídica de arrendamento que tem por objecto um imóvel, ora fracção autónoma discutida nos autos, portanto, os 2° e 3ª Réus ficam obrigados a proporcionar o gozo temporário dum imóvel aos Autores, e estes com a obrigação de pagamento de renda.
Resolução do contrato
Vêm os reconvintes pedir a resolução do contrato de arrendamento celebrado com os reconvindos com fundamento de falta de pagamento de rendas.
De acordo com o disposto do art°1017°:
“1. O locatório pode resolver o contrato nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2. A resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatório tem de ser decretada pelo tribunal; tratando-se de arrendamento, o senhorio só pode resolver o contrato nos casos previstos no artigo 1034°.”
Portanto, prevê o art°1034° as causas em que se permitem ao senhorio resolver o contrato de arrendamento. Tratam-se de causas taxativas.
Isto é, apenas nos casos especificados nesse normativo legal é que o senhorio pode fazer cessar a relação, entre as quais, o não pagamento das rendas no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório.( a alínea a) do artigo mencionado).
Vejamos se aos 2° e 3ª Réus assistem o direito de resolver o contrato.
Dos factos tidos como assentes, os 2° e 3ª Réus, actuais proprietários da fracção autónoma, deixaram os Autores o gozo temporária da fracção autónoma, que, todavia, a tinha ocupado, sem qualquer título legítimo e por tolerância da 1ª Ré, ex-proprietária, mostra-se que esse já cumpriu o seu dever de concessão do gozo do locado aos Réus inquilinos.
Como contrapartida, os Autores têm a obrigação de pagar a renda acordada com os senhorios, ora 2° e 3ª Réus.
Conforme os factos assentes, os 2° e 3ª Réus apenas pagaram as rendas até Abril de 2012, prazo final do contrato de arrendamento.
Segundo o disposto do n°1 do art°1038° do C.C., “Findo o prazo do arrendamento, o contrato renova-se por períodos sucessivos, se nenhuma das partes o tiver denunciado no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei.”
Na verdade, foi pelas partes estipulado o prazo de seis meses do contrato. Como não consta dos autos que, apenas decorrido o prazo inicialmente fixado, alguma das partes tinha denunciado a cessação do contrato, assim, ao abrigo das disposições neste artigo, o contrato é considerado renovado por igual período. Devendo o senhorio deixar o inquilino o gozo do arrendado, e com o dever do inquilino no pagamento das rendas fixadas.
Mas, vem provado que os Autores, desde Maio de 2012, deixaram de pagar qualquer renda aos 2° e 3ª Réus.
De acordo com o disposto do art°996°, a falta de pagamento das rendas no prazo estipulado pelas partes constitui o réu em mora, o que dá direito a indemnização aí prevista bem como o direito de resolução do contrato de arrendamento.
A mora e a falta de pagamento das rendas é imputável aos próprios locatários, ora réu, visto que, de acordo com o disposto do art°788° do C.C., no caso de responsabilidade contratual, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento da obrigação não procede da culpa sua.
Porém, os Autores não se logram ilidir a presunção da culpa resultante desse normativo. Assim, é de considerar que a falta de cumprimento da obrigação do pagamento de renda é imputável aos próprios Autores, tendo os 2° e 3ª Réus o direito à resolução do contrato de arrendamento celebrado com os Autores.
Estipula-se, porém, o art°1019° do C.C. que,
“O direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até à contestação da acção destinada a fazer valer esse direito, pague ou deposite as somas devidas e a indemnização referida no artigo 996°.”
No caso vertente, nada consta sobre os Autores chegaram a depositar as somas das rendas devidas e indemnizações previstas no art°996° do C.C.. O direito à resolução do contrato de arrendamento não se mostra caducado.
Nestes termos, a falta de pagamento das rendas pelos Autores constitui causa legítima para resolver o contrato de arrendamento por parte dos 2° e 3ª Réus, assim, é de julgar proceder o pedido de resolução do contrato.
*
Restituição do imóvel
Dispõe-se a alínea j) do art°983°do C.C., que são obrigações do locatário, entre outras, restituir a coisa locada fundo o contrato, nos termos do n° 1 do artigo 1025°.
Preceitua-se o art°1025° que “1. Na falta de convenção em contrário, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. 2. Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo.”
Assim, resolvido o contrato, os Autores terão que restituir aos 2° e 3ª Réus a fracção autónoma devoluta de pessoas e de bens.
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Indemnização das rendas
(…)
A indemnização em mora
(…)
Juros moratórios
(…)
(…)”
4. Caso julgado formal da admissão da reconvenção e nulidades processuais
O que se observa é que tal pedido reconvencional foi admitido e esse despacho não foi impugnado, tendo a acção seguido os seus termos e realizado o julgamento, perspectivado sempre no apuramento da relação jurídica arrendatícia.
Nunca os AA. suscitaram qualquer questão e só agora, em sede do recurso, o vêm fazer.
A primeira questão que se coloca é a do caso julgado formal sobre a admissibilidade do pedido reconvencional, face ao disposto no artigo 575º do CPC.
Claro que a decisão de admissão do pedido reconvencional foi uma decisão liminar, mas não se tem necessariamente como tabelar, implicando um juízo de conformidade com a sua inserção na acção que corria seus termos. O certo é que os AA. não só não o impugnaram, como adequaram a sua postura processual à indagação dos factos referentes ao referido contrato de arrendamento.
Dispõe o art.º 569º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, que após o proferimento de uma decisão judicial, verifica-se a extinção do poder jurisdicional do juiz, o que significa que o tribunal não pode, motu próprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada.
Como assinala Teixeira de Sousa,[4] “desta extinção decorrem dois efeitos: - um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; - um efeito positivo, que é a vinculação desse tribunal à decisão por ele proferida.”.1
Daqui decorre que o juiz poderá ainda rectificar erros materiais, suprir alguma nulidade processual, esclarecer a decisão ou reformá-la quanto a custas ou multa, mas não pode alterar já a decisão, nem os seus fundamentos, não pode modificar o seu sentido ou alcance.
Do caso julgado formal se ocupa o art.º 575º, do Código de Processo Civil, nos termos do qual “Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo”.
Como resulta da anotação de José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “O despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é assim apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjectivos e objectivos da instância (...) e a regularidade da sua constituição (…) mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito.”.
Aí se devem incluir, como assinalam aqueles autores, “Quer a sentença de absolvição da instância, seja qual for o momento processual em que é proferida, quer o despacho de indeferimento liminar, por fundamento de mérito ou outro (…), quer a sentença que decida um incidente com a estrutura de uma causa, quer os despachos interlocutórios proferidos ao longo do processo.”2
Relativamente ao despacho de admissão da reconvenção, assim transitado em julgado, nem sobre a sentença proferida a final incide qualquer causa de nulidade prevista no artigo 571º do CPC, como se pretende nas alegações, a final, sendo que a previsão da al. b) é desmentida pela fundamentação concreta e detalhada ali inserida e a previsão da al. d) esbarra com o conhecimento de uma questão que deve ser tratada como uma nulidade processual ou com a excepção de rro na forma de processo, como decorre do regime dos artigos 139º e segs do CPC.
Isto é, tendo sido proferida uma decisão sobre admissibilidade da reconvenção, essa decisão constitui a nosso ver caso julgado formal.
De todo o modo, a considerar-se uma situação contemplada no art. 139º, n.º 1, c) do CPC, nem abrangida pelo caso julgado formal, não se deixaria de considerar sanada, face ao desenvolvimento da lide e posição das partes que não deixaram de se aprestar a discutir a existência do arrendamento nos autos, sendo bem esclarecedora a réplica dos AA., ao reconhecerem a existência do arrendamento e atribuindo “culpas” aos RR. pelo não recebimento das rendas.
5. Era admissível o pedido reconvencional?
Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre a reconvenção seria admissível, no limite, numa perspectiva ampla do que se entenda por causa de pedir e do efeito útil pretendido.
Para que o réu possa exercer a faculdade de formular pedido reconvencional contra o autor é necessário que exista uma conexão entre os dois pedidos.
Os elementos de conexão relevantes encontram-se taxativamente enunciados no artº 218º nº 2 do Código de Processo Civil (vigente na altura em que foi proferido o despacho sob recurso :
“a) Quando o pedido do réu emerge de facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa ;
b) Quando o réu se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o A. se propõe obter”.
A única alínea que poderia estar em causa no âmbito desta questão é a alínea c).
Ora, no caso “sub judice” os AA., ora recorrentes, alegando a propriedade, para além do pedido de declaração de nulidade da compra e venda celebrado entre os RR. , pedia que fosse reconhecida a seu favor a transmissão do prédio que se veio a provar que detinham por contrato de arrendamento que, no fundo, acabaram por admitir. Também os RR. pediram que lhes fosse entregue a fracção, ainda que por outra razão.
O efeito útil das pretensões reconduz-se ao mesmo facto: a entrega e restituição da coisa, ainda que por causas diferentes.
Não deixa de haver aqui a pretensão do mesmo efeito útil, qual seja o da entrega da coisa, por AA. e RR., pelo que não custa ter por integrada a previsão do n.º 2, al. c) do art. 218º do CPC.
Significa isto que os demandantes reconvencionais pretendem conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que as demandantes da acção se propõem obter.
Por aqui se podem compreender as razões porque o pedido reconvencional não deveria ter sido rejeitado.
Por outro lado, já nos custa aceitar que haja uma identidade de causa de pedir, se bem que não deixe de haver uma relação substantiva de conexão entre o pedido formulado na acção e na defesa. Ali, os AA., arrogando-se titulares do direito sobre a coisa, formulam vários pedidos, sendo o que releva, no caso que nos interessa, é o a transmissão da coisa a seu favor; Oss RR., na defesa, dizem ser eles os proprietários da coisa e, invocando um arrendamento, pedem que a coisa lhes seja entregue. Só indirectamente se visa a conexão das causas de pedir em que radicam os pedidos formulados. A possibilidade de considerar aceitável a reconvenção por esta via, basear-se-ia na possibilidade de o réu, não obstante formular uma relação jurídica diversa daquela em que se funda a acção, constituindo tal relação fundamento da sua defesa, com vista à improcedência do pedido do autor, legitimaria a formulação de um pedido reconvencional autónomo, como já se defendeu na Jurisprudência Comparada.3
Trata-se, contudo, de questão prejudicada pelo julgamento que antecede relativo ao facto de se ter por preenchida uma situação de caso julgado formal quanto à admissibilidade da reconvenção.
6. Da forma de processo
Defende m os recorrentes que o pedido reconvencional era incompatível com a tramitação da acção comum.
Não se vê que haja por esta razão obstáculo a uma tramitação unitária, pois não se vislumbra que haja o obstáculo previsto n art. 218.°, n.º 3 do C.P.C, desde logo porque entre o pedido principal deduzido na acção e o pedido deduzido em sede de reconvenção não se verifica qualquer tramitação incompatível, nos termos a que se refere o art. 65.°, n.ºs 3 e 4 do CP.C, tal como se prevê no art. 218º, n.º 3 do mesmo Código.
Aliás, a partir do momento em que esse pedido foi admitido sempre estaria obrigado a respeitar o princípio de adequação e a não prejudicar qualquer das partes por essa tramitação unitária, nomeadamente em relação à possibilidade de depósito de rendas e outras particularidades, que as parte interessadas, os AA. nunca suscitaram.
Tal como nunca suscitaram a desadequação processual à discussão do pedido reconvencional que passou a ser discutido nos autos, desde que o pedido foi admitido.
Para além de que é o próprio artigo 930.°/1 do C.P.C diz que “A acção de despejo, na sua fase declarativa, segue os ternos do processo ordinário ...” e, estando em causa apenas o pagamento de rendas, a forma de processo sumário (930º/2). De todo o modo, a acção não deixou de seguir a forma mais solene e, portanto, com mais garantias de discussão e defesa dos diferentes interesses em jogo.
A adaptação às particularidades específicas do despejo não deixaria de ser possível, como o próprio art. 218º/3 do CPC prevê, razão por que não se vê como incompatível a tramitação da acção comum com esta acção especial.
Talvez por isso mesmo, no âmbito do direito processual, em Portugal, a acção de despejo deixou de ser configurada como acção especial.
Assim, nos termos e fundamentos expostos:
Considerando um caso em que os AA. se arrogam a propriedade de uma fracção onde vivem, porquanto dizem que encarregaram a 1.ª Ré de a comprar a si, perante a a venda por parte desta a terceiros, vêm pedir a nulidade da venda, invocando um negócio simulado e mais pedem a transferência da propriedade para si;
Se, perante este pedido, os RR se defendem dizendo que a propriedade não pertence aos AA, antes a 1.ª ré lhes arrendou a casa e que estes deixaram de pagar as rendas, razão por que pedem a resolução do contrato de arrendamento e entrega do locado,
Pedido reconvencional este que foi aceite pelo juiz, despacho esse não impugnado,
Passando os AA. a discutir nos autos a relação arrendatícia e passando a defender que a falta de pagamento de rendas se ficou a dever a culpa dos RR,
Não podem agora em sede de recurso, a final, vir invocar a inadmissibilidade do pedido reconvencional, por falta dos respectivos pressupostos e por incompatibilidade das formas de processo aplicáveis aos diferentes pedidos, configurando-se ter sido possível adequar e compatibilizar os procedimentos processuais específicos.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 17 de Novembro de 2016,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
1- “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, 572
2 CPC Anotado, 2001, 681
3 - Ac. RC, de 1/4/77, CJ 1977, 292
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