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Processo nº 807/2015
Data do Acórdão: 17NOV2016


Assuntos:

Usucapião
Junção de documentos
Impugnação da matéria de facto


SUMÁRIO

1. Na fase de recurso, para além dos documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, dos documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados e dos documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, só podem ser apresentados pelas partes juntamente com as alegações os documentos cuja junção se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC;

2. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC; e

3. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 807/2015


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A e o seu cônjugeB, ambos devidamente identificados nos autos, intentaram uma acção ordinária, registada sob o nº CV2-13-0035-CAO, do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, pedindo que, com fundamento na usucapião, fossem declarados únicos e legítimos proprietários de um imóvel situado em Coloane, contra herdeiros desconhecidos de C, nos autos representados pelo Ministério Público nos termos do disposto no artº 51º do CPC, foi proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção :

I – Relatório :
  A e mulher B, casados no regime de participação nos adquiridos, de nacionalidade chinesa, residentes na XXX, em Macau;
  veio intentar a presente
  Acção Ordinária
  contra
  Herdeiros desconhecidos de C, que serão representados pelo Ministério Publico;
  com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls.63 a 86,
  concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada a presente acção e os Autores serem declarados únicos e legítimos proprietários do imóvel sito na XXX, em Coloane, Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX, a fls. XXX do Livro B21, omisso na matriz predial urbana, por força da aquisição do mesmo através da usucapião.
*
  Procedeu-se à citação edital dos Herdeiros desconhecidos de C os quais também não vieram contestar.
  Citado o Ministério Público para representar os Réus, o mesmo contestou a fls 103 a 104, pedindo que seja julgado improcedente o pedido e sejam os Réus absolvidos do pedido.
*
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
*
  Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
  Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
  Da Matéria de Facto Assente:
* O prédio sito em Macau, Coloane, na XXX, em Coloane, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX. A fls. XXX do Livro B21, omisso na matriz predial urbana, encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Macau a favor de C, sob a inscrição nº 363, com o valor matricial de MOP$150,00 (cento e cinquenta patacas). (fls. 26 a 29) (alínea A) dos factos assentes).
* O prédio foi adquirido por C, em 11 de Dezembro de 1896, mediante escritura do Tabelião Serpa, cuja certidão consta de fls. 135 a 139 dos autos (alínea B) dos factos assentes).
* Os Autores são proprietários do prédio sito em Macau, Coloane, na Rua XXX, em Coloane, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX, a fls. XX do Livro B21, com matriz predial nº XXX, conforme a inscrição nº XXX . (fls. 30 a 36) (alínea C) dos factos assentes).
* O imóvel foi adquirido através de uma compra e venda pelos Autores em 12 de Maio de 2010, pela quantia de MOP$8.565.600,00 (alínea D) dos factos assentes).
* Os AA. adquiriram o imóvel dos D e E (alínea E) dos factos assentes).
* D e E tinham adquirido o imóvel em 8 de Março de 2001 (sito na Rua do Caetano, nº 66) de F, que o registara na Conservatória do Registo Predial de Macau em 22 de Maio de 2000 (alínea F) dos factos assentes).
* A F, adquirira a propriedade do imóvel por usucapião, resultante do trânsito em julgado da Sentença que declarou o direito de propriedade da mesma em 7 de Junho de 1996 nos autos de acção ordinária, n.º 188/95 que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Macau (alínea G) dos factos assentes).
***
Da Base Instrutória:
* C já faleceu (resposta ao quesito da 1º da Base Instrutória).
* Em 11 de Dezembro de 1896, G comprou o prédio n.º 66º a Siu Ap Iec pelo preço de MOP$300,00 (resposta ao quesito da 3º da Base Instrutória).
***
III – Fundamentos:
  Pedem os Autores que lhes sejam reconhecida a aquisição originária da propriedade do prédio urbano sito na Rua XXX, em Coloane, Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX, a fls. XX do Livro B21, objecto da presente acção, inscrito em nome de C.
  Para fundamentar a sua pretensão, alegam os Autores; que G comprou os prédios nºs 64 e 66 a Siu Ap Iec pelo preço de MOP$300,00; que depois vendeu verbalmente os prédios a C que apenas procedeu ao registo de aquisição do prédio nº 64 em 1986; que C cedeu ambos os prédios por contrato verbal a H, nos anos 30 do século passado; que H doou à filha F ambos os imóveis na década de 60 de século XX e faleceu viúvo em 11 de Janeiro de 1966; que F adquiriu a propriedade do prédio nº 66 por usucapião em 7 de Junho de 1996; que D e E adquiriram o prédio nº 66 em 9 de Março de 2001 de F; que os Autores adquiriram o prédio nº 66 através de uma compra e venda pelos em 12 de Maio de 2010, pela quantia de MOP$8.565.600,00; que os prédios nºs 64 e 66 foram sempre um só prédio tendo sido utilizados sempre em conjunto desde a década de 1930 até hoje.
  Mais alegam que apesar de H, F, D e E terem sido e os Autores serem apenas registados como proprietários do prédio nº 66, sempre se comportaram e se consideram proprietários dos prédios nº 64 e 66 porque, ao exercer os actos de posse sobre o prédio nº 66, estes estiveram sempre convictos de ser os titulares do direito de propriedade sobre o mesmo, suportaram todas as despesas relativas às obras de conservação e reparação, celebravam contratos de fornecimento de electricidade e água, pagando os respectivos consumos, e procediam ao pagamento das contribuições prediais, sempre convictos da sua qualidade de proprietários de ambos os prédios.
*
  Flui do acima exposto que os Autores fundamentam a sua pretensão na posse que alega ter sobre o prédio nº 64 que actualmente está registado em nome de C.
  Pois, preceitua o artigo 1212º do CC que “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”
  Urge, portanto, aquilatar se os Autores são possuidores do prédio nº 64.
*
  “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
  Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
  Feito o julgamento da matéria de facto, os Autores não conseguiu provar os factos que fundamentam o por si alegado de que o prédio nº 64 e o prédio nº 66 fazem parte de um mesmo prédio e H, F, D e E e os Autores durante anos praticavam os actos por si indicados no prédio nº 64 passíveis de ser qualificados como actos possessórios.
  Afastada a alegada posse de H, F, D e E e pelos Autores, fica precludida a necessidade de se debruçar sobre os demais requisitos da usucapião almejada pelos Autores.
  Com o que se julga improcedente a pretensão dos Autores.
***
IV – Decisão:
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, absolve os Réus, Herdeiros desconhecidos de C, do pedido formulado pelos Autores, A e B.
  Custas pelos Autores.
  Notifique e Registe.

Não se conformando com o decidido, vieram os Autores recorrer da mesma para este Tribunal de Segunda Instância.

Os Autores formularam para o efeito as seguintes conclusões:

A - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os Réus do pedido de aquisição a favor dos Autores do imóvel sito na Rua XXX, em Coloane, Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, a fls. XX do Livro B21, omisso na matriz predial urbana, por força da aquisição do mesmo através da usucapião.
B - Com tal decisão não se podem os Recorrentes conformar por entenderem que, no caso, o Tribunal a quo não retirou o devido alcance da prova documental já constante dos autos, atenta a factualidade alegada pelos Autores ora Recorrentes nos presentes autos.
C - Desde logo, não podem os Recorrentes concordar com a resposta do Tribunal a quo à matéria de facto, nomeadamente, quanto à resposta dada aos quesitos 2.º e 8.º (e também 6.º) da base instrutória, razão pela qual passarão os Recorrentes à respectiva impugnação.
D - Por outro lado, quanto à resposta de sentido negativo aos restantes quesitos, ao abrigo do disposto no art. 616.º do C.P.C., no sentido da demonstração do trato sucessivo comum e demais características da sua (boa) posse, vêm os Recorrentes requerer a junção ao presente recurso de um novo documento - a certidão da sentença proferida no âmbito do processo n.º 188/95 que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Macau-, a que se refere a alínea G) dos factos assentes -, conforme Doc. 1 que ora se junta.
E - Com efeito, a matriz ou razão de ser da presente acção reside no facto de os Autores serem os legítimos proprietários do prédio sito em Macau, Coloane, na Rua XXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, prédio esse contíguo e com acesso directo ao prédio sito na Rua do Caetano, com o n.º 64, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX.
F - Da análise do histórico de ambos os imóveis logo se retira que, para além de contíguos, os mesmos têm acesso pelo interior e ainda uma matriz comum: ambos pertenceram a C, conforme resulta dos factos assentes sob as alíneas A) e B) e se retira da sentença acima junta como Doc. 1, sabendo, para mais que, a referida acção que correu seus termos sob o n.º 188/95 que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Macau também foi proposta contra C, por ter sido o mesmo quem, na década de 1930, o vendeu a H, o pai de F, a Autora na referida acção.
G - Assim, porque a junção da referida certidão da sentença é importante para a global compreensão da situação dos imóveis objecto dos autos, ao abrigo do disposto no art. 616.°, n.º 1 do C.P.C., requerem os Recorrentes a V. Ex.as que a referida junção seja admitida.
H - Ora, considerados os factos desde logo dados como assentes, entendem os Recorrentes que mal andou o Tribunal a quo ao não ter dado como não provado que o prédio n.º 64 e o prédio n.º 66 fazem parte do mesmo prédio, porquanto, tanto o imóvel n.º 64 como o imóvel n.º 66 da Rua do Caetano foram sempre, na verdade, um só prédio ou edifício, tendo sido utilizados sempre em conjunto desde a década de 1930 até hoje.
I - E nesse sentido, entendem os Recorrentes que errada foi a resposta do Tribunal a quo aos quesitos 2.°, 6.° e 8.° da base instrutória, ,nos termos dos arts. 599.° n.º 1, al. a) do C.P.C..
J - Contrariamente ao que considerou o Tribunal a quo (quer na sentença, quer na fundamentação do Acórdão com resposta à matéria de facto) entendem os Recorrentes que, quer dos documentos juntos aos autos, quer dos depoimentos prestados pelas testemunhas, resulta que o imóvel n.º 64 e o imóvel n.º 66 da Rua do Caetano foram sempre, na verdade, um só prédio ou edifício, tendo sido utilizados sempre em conjunto.
K - É o que se retira dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do Doc. 1- a certidão do registo predial relativa ao imóvel n.º 64 da Rua do Caetano-, bem como das fotografias juntas aos autos como Doc. 4 e das plantas juntas como Docs. 5 e 6 todos da petição inicial. É o que resulta também, de forma muito clara, do Doc. 2 junto com a contestação do Ministério Público.
L - Tendo presente os factos dados como assentes sob as alíneas A) e B), e analisada a própria certidão do registo predial relativa ao imóvel n. ° 64 da Rua do Caetano (cfr. fls. 26 a29 dos autos) resulta o seguinte:
"N. 4.579 - Prédio urbano n.º 64 da Rua do Caetano, situado em Coloane. É composto de um andar e loja (...) tendo uma porta para a Rua do Caetano, rasgada, e duas pequenas para um terreno do prédio n.º 66 da mesma rua.(...)".
M - Contrariamente ao que resulta do Acórdão com resposta à matéria de facto, tendo o Tribunal a quo consignado que: "A inspecção ao local permitiu (...) constatar que há uma abertura do tamanho de uma porta, com uma porta de ferro aí instalado, que faz a ligação dos dois imóveis", conciliando tal constatação com o que já consta da descrição predial do imóvel, na sequência da realização da escritura pública de 11 de Dezembro de 1896 (cfr. fls. 135 a 139 dos autos), logo resulta que desde essa data "o Prédio urbano n.º 64 da Rua do Caetano, situado em Coloane. (...) tem uma porta para a Rua do Caetano, rasgada, e duas pequenas para um terreno do prédio n.º 66 da mesma rua" incorrecta se afigura a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que: "No entanto, nada mais no local indica que esta abertura e porta sempre existiram (...)"
N- Depois, do Doc. 2 junto com a contestação do Ministério Público resulta muito claramente que ambas as descrições prediais XXX9 (Prédio urbano n.° 64) e XXX (prédio urbano n.º 66) são tratadas pela Direcção dos Serviços de Finanças como um único terreno - com o n.° XX - com entrada pelos n.ºs XX da Rua do Caetano.
O - Mais consta da fotocópia extraída do livro de Registo de Foros M/21 que o terreno 32 onde se situa o prédio com entrada pelos n.ºs XX está associado ao nome de H - ou H-, ou seja, precisamente a pessoa a quem C vendeu verbalmente, não só o n.º 66 (conforme resulta da sentença acima junta como Doc. 1), bem como o n.°64.
P - Pelo que, em termos imediatos, pela consideração dos referidos documentos, diferente resposta se impunha aos quesitos 2º, 6º e 8º da base instrutória.
Q - Isso mesmo foi confirmado pelas duas testemunhas ouvidas nos presentes autos, a saber: I e J, ambos ouvidos na sessão de julgamento que teve lugar no dia 12.02.2015, gravação às 15.27.03 (1ª97Sq05011270) min. 00.00 a 35.32 e gravação às 16.02.32 (1A99%FEGO5011270).WAV, min. 00.00 a 05.47, cujos depoimentos, na parte relevante, se encontram acima transcritos nas alegações.
R - Pelas razões expostas, atentos os meios de prova citados e especialmente a certidão do registo predial junta a fls. 26 a 29 dos autos, a escritura de fls. 135 a 139, o doc. 2 junto com a contestação do Ministério Público, a par das declarações das testemunhas acima mencionadas, entendem os Recorrentes que os quesitos 2.° e 8.° da base instrutória só poderiam ter sido dados como Provados, alteração que, assim, se requer em sede do presente recurso.
S - A procedência do recurso em matéria de facto nos termos acima suscitados permite concluir que, contrariamente ao que consta da sentença recorrida, os Autores/Recorrentes lograram provar os factos que fundamentam o por si alegado de que o prédio n.º XX e o prédio n.º XX fazem parte de um e mesmo prédio e que H, F, D e E e os Autores, durante anos, praticavam também sobre o prédio n.º 64 todos os actos possessórios que justificam a aquisição por usucapião.
T - Tratando-se, como se trata, do mesmo edifício, se dúvidas não existem quanto à regularidade das características da posse relativas ao prédio descrito sob o n. XXX (Prédio urbano n.° XX) de que os Autores são legítimos proprietários, então tais características são extensíveis ao prédio urbano n.° XX, visto se tratar do mesmo prédio.
U - Esta a razão da importância da junção da certidão da sentença proferida no âmbito do processo 188/1995, cuja consideração, em bom rigor, deverá importar uma resposta de diferente sentido aos quesitos 4°, 5.° e 9.° a 17.° da base instrutória.
V - Porquanto, a boa posse relativa à aquisição do imóvel descrito sob o n. XXX (Prédio urbano n.º XX) deverá ser extensível ao prédio urbano n.º XX, visto se tratar do mesmo prédio, pertencendo estruturalmente ao imóvel propriedade dos AA e aqui Recorrentes .
W - Tendo estes, como os anteriores possuidores, exercido de forma pacífica e pública a posse sobre o mesmo de forma ininterrupta, sem violência e de boa fé por muito mais que 20 anos.
X - A posse dos Recorrentes sobre o prédio urbano sito o n.º XX da Rua do Caetano, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, a fls. XX do Livro B21, é efectiva, contínua, de boa fé, sem oposição de terceiros, sem violência, pública e pacífica, seguindo-se à posse exercida por H, por F, por D e por E sobre o mesmo imóvel.
Y - De facto, os Recorrentes (e anteriores proprietários do imóvel sito no n.º XX da Rua do Caetano) vêm exercendo um conjunto de actos que configuram a posse do direito de propriedade, sobre o mesmo prédio, embora o mesmo apresente 2 descrições prediais.
Z - Desde 1930, H, F, D e E e os aqui Autores vêm exercendo a posse sobre o imóvel registado em nome do Réu de boa fé (artigo 1184° do CC), de forma pacífica (artigo 1185° do CC) e de forma pública (artigo 1186° do CC).
AA - Pelo exposto, a sentença recorrida, ao não ter declarado a aquisição por usucapião do imóvel objecto dos presentes autos a favor dos Autores, viola o disposto no artigo 1180.º, n.º 1, 1184.° a 1186.°, bem como o disposto nos artigos 1212.° e seguintes todos do Código Civil.
Termos em que, e com o douto suprimento de V. Ex.as, deverá o presente recurso ser declarado procedente e, em consequência, declarada a aquisição da propriedade a favor dos Autores por usucapião sobre o imóvel sito na Rua do Caetano, com o n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX.
Decidindo assim farão Vossas Excelências
JUSTIÇA!


Notificado o Ministério Público, que representa os herdeiros desconhecidos de C nos termos do disposto no artº 51º do CPC, não respondeu ao recurso.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso, os Autores, ora recorrentes, começam por questionar a bondade das respostas de sentido negativo dadas aos quesitos 2º, 6º e 8º da base instrutória, e depois pretendem, no caso do êxito da alteração da matéria de facto nos termos requeridos, rogar a revogação da decisão de direito da 1ª instância e em substituição a consequente declaração de que eles, os Autores, adquiriram a propriedade do imóvel em causa por via de usucapião.

A fim de tentar convencer este Tribunal de recurso de que o Tribunal a quo andou mal no julgamento de matéria de facto, os recorrentes juntaram, com a petição do recurso, um novo documento, que é a certidão de uma sentença proferida pelo então Tribunal de Competência Genérica em 09MAIO1996.

Coloca-se portanto a questão da admissibilidade deste documento nesta fase de recurso.

Assim, temos de os debruçarmos primeiro sobre este incidente de junção de novo documento em sede de recurso.

Ora, a apresentação da prova por documentos rege-se pelas regras gerais consagradas no artº 450º do CPC, que reza:
Artigo 450.º
(Momento da apresentação)
1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Em situações excepcionais, as partes são autorizadas a juntar documentos após os articulados ou mesmo após o encerramento da discussão em primeira instância.

São as situações previstas no artº 451º do CPC que preceitua:
Artigo 451.º
(Apresentação em momento posterior)
1. Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
2. Os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
Paralelamente às situações excepcionais previstas no artº 451º do CPC, em que a lei (por remissão expressa feita no artº 616º/1 para o artº 451º) permite especificamente que se possam juntar às alegações de recurso os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou os documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, o artº 616º/1, in fine, do CPC autoriza ainda na fase de recurso a apresentação dos documentos cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.

Para fundamentar a admissibilidade da junção do documento, os recorrentes invocaram, a título principal, dois fundamentos, respectivamente previstos nos artºs 450º/1 e 616º/1, in fine, do CPC, que no fundo são previstos como duas alternativas.

Por um lado disseram que “é importante para a correcta apreciação da factualidade objecto dos autos”.

Isto é, o documento ora junto pelos recorrentes, em sede de recurso, destina-se a fazer prova dos fundamentos da acção e defesa.

Se assim fosse, o mesmo documento deveria ter sido apresentado nos termos da regra geral prevista no artº 450º do CPC, acima citado e transcrito, ou seja, ou entregue com os articulados, ou posteriormente mas sempre até ao encerramento da discussão em primeira instância mediante o pagamento da multa, ou ainda excepcionalmente depois do encerramento da discussão em primeira instância com fundamento na impossibilidade da apresentação com o articulado ou até ao encerramento da discussão em primeira instância.

Para que seja lícita a junção tardia deste tipo de documentos, quer na primeira instância após o encerramento da discussão em primeira instância, quer no recurso, a parte tem de convencer o tribunal de superveniência do documento respectivo, ou porque o documento se formou depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência do documento, ou porque não pôde obtê-lo até àquela altura – cf. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, IV, pág. 15.

O que in casu obviamente não foi feito pelos recorrentes, pois estes se limitaram a invocar como fundamento legal da junção tardia o artº 616º/1 do CPC, sem que tenha especificado se quiseram referir-se à primeira parte ou à segunda parte desse número um.

Em relação à primeira parte do artº 616º/1 do CPC, já pelo que vimos supra, é de concluir que não estamos perante qualquer das situações integráveis no artº 451º do CPC, que permite excepcionalmente a apresentação de documentos em momento posterior ao encerramento da discussão em primeira instância.

Resta saber se se trata da junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC.

Ao interpretar o artº 706º/1 do CPC Português, que corresponde o artº 616º/1 do nosso CPC, com vista a averiguar em que circunstância pode a sentença da primeira instância determinar a necessidade da junção de um documento ao processo, João Espírito Santo citou o Acórdão do STJ de 24ABR1936 defendendo que “tal, sucederá quando nela se rejeita o critério seguido pelas partes e se adoptam factos novos. A ideia da introdução pelo julgador, quando profere a decisão, de factos não alegados pelas partes é dificilmente conciliável com a trave-mestra do processo civil: o princípio dispositivo. Essa conciliação parece só poder fazer-se a partir do princípio inquisitório em matéria instrutória, que, apesar de ter perdido a formulação genérica antes contida no n.º 3 do art.º 264.º, continua a habilitar o juiz, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, a realizar ou ordenar oficiosamente diligências probatórias. Com efeito, esse poder de que goza o julgador, habilita-o a introduzir no processo meios probatórios com que as partes podiam, justificadamente, não contar, e a fundar a sua decisão nesses meios, sem que tal signifique o conhecimento de factos de que lhe não é lícito conhecer. É precisamente este o pressuposto da admissibilidade da junção de documentos a que se reporta a segunda parte do n.º 1 do art. 706.º, ou seja, contraditar, mediante prova documental, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão” – in O Documento Superveniente para Efeito de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina.

Compulsados os autos, verificamos, quer ao longo de toda a tramitação no TJB, quer na fundamentação da sentença recorrida, que o Tribunal a quo não chegou introduzir ex oficio no processo factos não alegados pelas partes ou meios probatórios com que os recorrentes podiam não contar, nem fundar a sentença recorrida neste tipo de factos ou de meios probatórios que nunca passaram pela cabeça das partes.

Antes pelo contrário, constatamos que o Tribunal a quo se limitou a examinar e valorar o que as partes apresentaram com os articulados.

Assim, não se verificando qualquer das situações previstas no artº 616º/1 do CPC que permitem excepcionalmente a junção dos documentos às alegações do recurso, é de indeferir a pretendida junção dos documentos, ora constantes das fls. 234 a 237 dos p. autos, e consequentemente ordenar o seu desentranhamento.

Decidido o incidente da junção dos documentos, passemos então à apreciação do objecto do recurso.

Tal como vimos no relatório supra, os recorrentes impugnaram por via de recurso, as respostas de sentido negativo aos quesitos 2º, 6º e 8º da base instrutória, e depois pretendem, no caso do êxito da alteração da matéria de facto nos termos requeridos, rogar a revogação da decisão de direito da 1ª instância e em substituição a consequente declaração de que eles, os Autores, adquiriram a propriedade do imóvel em causa por via de usucapião.

Então vejamos.

Antes de entrarmos na apreciação da impugnação da matéria de facto, temos de salientar que, não tendo sido admitida a junção do documento, consistente na certidão de uma sentença proferida em 1996, apresentado com a petição do presente recurso, não serão tidas em conta todas as considerações e razões tecidas e feitas basear pelos recorrentes no teor daquele documento, para sustentar a alteração da matéria de facto fixada em primeira instância nos termos pretendidos, pura e simplesmente por este documento não ter sido admitido aos autos, portanto, não poder ser valorado.

Assim, avancemos.

Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.

Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
(Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto)
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
In casu, o recorrente questionou a bondade da resposta negativa dada aos quesitos 2º, 6º e 8º da base instrutória.

A matéria em causa tem o seguinte teor:
......

Tanto o imóvel nº XX como o imóvel nº XX da Rua do Caetano foram sempre, na verdade, um só prédio ou edifício, tendo sido utilizados sempre em conjunto desde a década de 1930 até hoje?
......

H, e a filha, F, passaram a ocupar imediatamente ambos os imóveis que de facto são um só edifício?
......

Comportando-se ambos como proprietários dos imóveis que são um mesmo prédio, dividido por uma parede apenas?
......

Todos estes quesitos foram julgados não provados.

De acordo com o Acórdão da decisão de facto, a convicção do Tribunal Colectivo foi formada com base nos documentos juntos aos autos e no depoimento das duas testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, bem como na inspecção ao local.

Para os recorrentes, os meios de prova que impunham, sobre a matéria quesitada sob nºs 2º, 6º e 8º da base instrutória, uma resposta positiva são os documentos juntos aos autos, nomeadamente do Doc. 1, que é a certidão do registo predial relativa ao imóvel n.º 64 da Rua do Caetano, as fotografias juntas aos autos como Doc. 4 e das plantas juntas como Docs. 5 e 6, todos da petição inicial e o Doc. 2 junto com a contestação do Ministério Público, assim como os depoimentos das duas testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, na parte devidamente identificada na motivação do recurso, ou seja, as declarações prestadas por I e J, na sessão de julgamento que teve lugar no dia 12.02.2015, gravadas às 15.27.03 (1ª97Sq05011270) min. 00.00 a 35.32 e gravação às 16.02.32 (1A99%FEGO5011270).WAV, min. 00.00 a 05.47.

Satisfeitas assim as exigências processuais para a viabilização da reapreciação da matéria de facto com vista à eventual modificação por este Tribunal de Segunda Instância da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, passemos então a apreciar se existem as alegadas incorrecções na apreciação da prova pelo tribunal a quo.

Ora, decorre do preceituado no artº 629º que o Tribunal de recurso é permitido funcionar como tribunal de substituição na matéria da questão de facto, relativamente ao Tribunal de primeira instância, desde que, em qualquer das situações aí previstas, se mostrem preenchidos os pressupostos nele exigidos, isto é, se coloquem ao dispor do tribunal ad quem os mesmos meios probatório de que dispunha o tribunal de 1ª instância.

Sintetizando falando, a matéria de facto que os recorrentes pretendem ver provada é o facto de os prédios com o nº 66 e nº 64º serem um só mesmo prédio e o facto de os prédios serem utilizados sempre em conjunto desde a década de 1930 até hoje.

Ao que parece, o raciocínio dos recorrentes é o seguinte:

* São eles comprovadamente proprietários do prédio nº 66;

* Os prédios com o nº 66 e nº 64º são um só mesmo prédio;

* Os prédios com o nº 66 e nº 64º são sempre utilizados em conjunto desde a década de 1930 até hoje; e

* Sendo proprietários do prédio nº 66, têm posse sobre o prédio nº 64, por este prédio estar utilizado sempre em conjunto com aquele prédio e por ambos constituir um mesmo único prédio.

Auscultadas e analisadas todas as passagens da gravação dos depoimentos, valorados os documentos indicados pelos recorrentes, nomeadamente as partes desses documentos especialmente destacadas pelos mesmos recorrentes, verificamos que a mensagem que podemos extrair de todos estes meios probatórios, quer em conjunto ou conjugando com o resto da matéria de facto assente, quer separadamente, está longe de ter a virtualidade de nos levar a julgar provados os factos quesitados nos pontos 2º, 6º e 8º.

Em primeiro lugar, as testemunhas, com hesitações, nada conseguiram dizer concretamente se os prédios com o nº 66 e o nº 64 têm vindo ser utilizados em conjunto, sucessivamente por várias pessoas, e por últimos por ambos os Autores. É verdade que uma das testemunhas inquiridas chegou a dizer ambos os prédios compartilhavam o mesmo tecto ou telhado, o certo é que esta afirmação não é mais do que uma mera mensagem que esta testemunha retira da imagem de ambos os prédios que ela captou.

Em segundo lugar, os documentos, para nós, quanto muito, demonstram que ambos os prédios são contíguos, e pertenciam a C, e chegaram a ser tratados em conjunto pela Administração Fiscal para o efeito de cobrança de imposto, mas sempre com a menção dos dois números que são 64 e 66 – vide as fls. 109 dos presentes autos.

Todavia, dos tais factos ou circunstâncias não se podem fazer ilação da ocorrência de outros factos capazes de demonstrar a posse sobre o prédio nº 64, adquirida originária ou derivadamente pelos Autores.

Assim sendo, não pode deixar de improceder in totum a impugnação da decisão de facto.

O que nos dispensa de apreciar a questão de direito da acção, cuja procedência fica obviamente condicionada pela comprovação dos factos demonstrativos da posse por parte dos Autores, ora recorrentes, sobre o prédio nº 64.

Em conclusão:


4. Na fase de recurso, para além dos documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, dos documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados e dos documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, só podem ser apresentados pelas partes juntamente com as alegações os documentos cuja junção se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC;

5. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC; e

6. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.


Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:

1. Não admitir a junção do documento, ora constante das fls. 234 a 237 dos presentes autos, e ordenar o seu desentranhamento e a consequente entrega aos recorrentes.

2. Negar provimento ao recurso interposto pelos Autores, mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Custas do incidente da junção do documento e do recurso a cargo dos recorrentes.

Registe e notifique.

RAEM, 17NOV2016

Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Ac. 807/2015-27