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Proc. nº 128/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Novembro de 2016
Descritores:
-Facto assente: alteração
-Caso julgado: decisão e fundamentos
-Convenções pós-nupciais: validade

SUMÁRIO:

I. Dar como assente um determinado facto não constitui caso julgado positivo, se no processo existir alguma fonte de prova (v.g., documental) que afaste a primitiva versão factual que tiver sido levada à factualidade provada.

II. Geralmente, o caso julgado apenas abrange a parte decisória da sentença, porque é aí que o tribunal fornece a resposta a uma pretensão, o que de certo modo está em sintonia com o disposto no art. 574º, nº1, do CPC, que somente alude à “decisão sobre a relação material”.

III. No entanto, sempre que as questões tratadas na fundamentação da sentença constituam premissas da conclusão decisória ou precedentes lógicos e necessários do dispositivo, faz sentido e lógica que o manto do caso julgado da sentença cubra igualmente os seus motivos ou fundamentos, naquilo a que se pode designar por “concepção ampla do caso julgado”.

IV. Face ao consignado no art. 52º do CC, a admissibilidade, substância e efeitos das convenções pós-nupciais são reguladas pela lei competente nos termos do artigo 50.º do Código Civil, preceito que, por seu turno, determina que “Salvo o disposto no artigo seguinte [que trata das convenções antenupciais], as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.”

V. Nos termos dos arts. 1578º e 1574º do CC, “ex vi” citado art. 52º, as convenções pós-nupciais que não forem celebradas por escritura pública são nulas (cfr. art. 212º do CC).









Proc. nº 128/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, do sexo feminino, divorciada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM nº XXX, reside em Macau, na XXX, intentou no TJB (Proc. nº CV3-14-0012-CAO) acção declarativa ordinária contra: ----
B, do sexo masculino, divorciado, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM nº XXX, reside em Macau, na XXX.
Na petição, pediu a procedência da acção e, em consequência, fosse:
a) Declarado como bem comum (dela e do réu) a fracção “AR/C” do rés-do-chão “A”, com sobreloja e entrada pelo nº 32-I da Rua Central, do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo XXX e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXX, com a aquisição a favor do R. pela inscrição nº 180212G;
b) Ordenada a rectificação desta inscrição no sentido passar a constar da mesma o regime da comunhão de adquiridos.
*
Foi proferida sentença que julgou procedente a acção, condenando ainda o réu como litigante de má fé.
*
É contra essa sentença que ora vem interposto pelo réu recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Impugnação dos reconhecimento e rectificação do facto provado alínea I):
2. A sentença a quo reconheceu o seguinte facto provado alínea I): “Por sentença de 26 de Abril de 2013, proferido pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base no processo nº CV1-11-0059-CAO, já transitada em julgado, foi declarada a invalidade de convenção pós-nupcial celebrada entre as partes em 5 de Março de 2007.”
3. A sentença a quo rectificou na sua fundamentação o referido facto para “na apreciação do processo CV1-11-0059-CAO, foi julgada inválida a convenção pós-nupcial celebrada entre os dois”. Mas o recorrente entende que tal rectificação ainda não está em conformidade com o respectivo teor da sentença.
4. A sentença do processo CV1-11-0059-CAO, que foi juntada à petição inicial apresentada pela autora (fls. s40 a 44 dos autos), não foi uma certidão de sentença emitida pelo respectivo tribunal, sendo apenas uma fotocópia, na qual não foi referido que a sentença já transitou em julgado nem a sua data.
5. Entende o recorrente que o teor da sentença do processo CV1-11-0059-CAO e o seu trânsito em julgado devem ser comprovados pela certidão emitida pelo respectivo tribunal, caso contrário, de acordo com o artº 356º, nº 2, artº 357º, nº 1 e artº 365º, nº 1, a sensu contrario, do Código Civil, a simples fotocópia da sentença do processo CVl-11-0059-CAO não tem força probatória quanto ao conteúdo nela referido.
6. Reza o artº 558º do CPC que quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.
7. Pelo exposto, a sentença a quo não devia reconhecer o facto provado alínea I) com tal teor.
8. Caso a impugnação seja julgada improcedente, o recorrente não pode deixar de entender que a sentença a quo não devia rectificar o dito facto provado da seguinte forma: “na apreciação do processo CV1-11-0059-CAO, foi julgada inválida a convenção pós-nupcial celebrada entre os dois.” Porquanto:
9. Na sua fundamentação factual e jurídica, a sentença do processo CV1-11-0059-CAO apontou que o acordo sobre os bens do casal, que foi assinado no cartório notarial do distrito de Xinhui, Jiangmen, China, não foi celebrado por escritura pública, o qual se trata, de facto, de documento particular, por isso é nulo por falta de requisito formal. Mas isso não foi declarado ou julgado na parte dispositiva da sentença.
10. O recorrente entende, portanto, que a sentença em causa analisou a questão da validade do acordo e manifestou a sua posição, com finalidade de melhor especificar as questões envolvidas. No entanto, a análise da validade do acordo e manifestação da sua posição não são necessárias para resolver o litígio entre os dois e o pedido da autora.
11. Por outras palavras, tal sentença não intencionou fazer qualquer declaração ou julgamento da questão invocada.
12. Com efeito, segundo o princípio do pedido das partes, a sentença em causa não fez e não devia fazer qualquer declaração ou julgamento da questão referida na sua parte dispositiva. Portanto, na óptica do recorrente, a análise da validade do acordo em apreço e a manifestação da posição fazem parte da fundamentação da decisão da sentença e não da parte dispositiva, as quais também não são fundamentos logicamente necessários para a decisão.
13. Dispõe o artº 3º, nº 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
14. Pelo que o recorrente entende que a sentença a quo violou a norma jurídica citada.
15. O efeito e limites do caso julgado:
16. Ainda que a sentença proferida no processo nº CV1-11-0059-CAO tivesse transitado em julgado, no entendimento do recorrente tal decisão não deve produzir à sentença a quo deste processo os efeitos de caso julgado (efeitos e limites).
17. Indicou a sentença a quo que quanto à questão da validade da convenção pós-nupcial já existe uma sentença expressa e transitada em julgado que vincula ambas as partes. Nesta situação, o Tribunal não pode proferir uma decisão contrária à aludida sentença.
18. Porém, o recorrente não se conforme com tal entendimento
19. De acordo com o nº 1 do artº 574º do CPC, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 416.º e seguintes, sem prejuízo do disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro.
20. Reza o nº 1 do artº 576º do mesmo Código que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
21. A questão controvertida centra-se no preenchimento do requisito “os pressupostos e fundamentos logicamente necessários” indicado na expressão “abrangem-se, em determinadas situações, os pressupostos e fundamentos logicamente necessários para a prolação da sentença”, ou seja, temos que ver se o teor da fundamentação da sentença a quo trata-se ou não de pressupostos e fundamentos logicamente necessários ou indispensáveis para a prolação da referida sentença.
22. A sentença do processo CV1-11-0059-CAO analisou primeiro na sua fundamentação de facto e de direito o acordo de bens do casamento celebrado pelos Autora e Réu na China, no cartório notarial da zona de Xinhui da cidade de Jiangmen (adiante designado por “o acordo”), entendendo ser nulo o acordo por falta de requisito formal e indicando para tal que caso a parte não assim entenda e ache ser válido o acordo, não é possível que este acordo produza efeitos retroactivos. A sentença fez análise jurídica e decidiu a seguir o seguinte: “...a Autora pede que seja declarado o estado civil do Réu B na aquisição dos dois imóveis em causa era casado, cujo cônjuge é A, as partes contraíram casamento sob o regime da comunhão de adquiridos” e “a Autora e o Réu contraíram matrimónio no dia 30 de Dezembro de 2004, na zona de Xinhui, na cidade de Jiangmen, China, não tendo escolhido o regime sobre os bens. Segundo o artº 17º da Lei de Casamento da R.P.C., os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento são considerados bens comuns do casal e ambos os cônjuges têm direito igual aos bens.”
23. Daí constata-se que, da lógica adoptada na fundamentação factual e jurídica da aludida sentença resulta que a decisão não é proferida necessariamente com base no reconhecimento da invalidade do acordo, porquanto, mesmo que seja um acordo válido, com base na análise feita na sentença respeitante à viabilidade, conteúdo e efeitos da convenção pós-nupcial, irá chegar à conclusão de que é impossível que o acordo produza efeitos retroactivos.
24. Por outras palavras, a sentença ia fazer a mesma decisão quanto ao pedido judicial da autora, independentemente da validade do acordo.
25. Pela expressão “os imóveis foram adquiridos antes da celebração do acordo (o acordo foi celebrado depois da aquisição dos imóveis)” no processo CV1-11-0059-CAO, entende o recorrente que mesmo seja reconhecida a validade do acordo, para poder proferir uma decisão como a referida, devem ser reconhecidos também os efeitos retroactivos do acordo.
26. De facto, perante o pedido da autora, para resolver o litígio entre as partes, a solução não é necessariamente a análise ou reconhecimento da validade do acordo, porquanto, logicamente a solução mais directa e necessária é a análise sobre os efeitos retroactivos do acordo. Desde que não sejam reconhecidos os efeitos retroactivos do acordo, o conflito entre as partes pode ser resolvido, independentemente da validade do acordo. Daí pode julgar-se procedente o pedido da autora e, consequentemente, satisfaz-se o pedido dela
27. Nesta situação, tendo examinado os fundamentos factuais e jurídicos da sentença, bem como o conteúdo da sua parte dispositiva, entende o recorrente que “os pressupostos e fundamentos logicamente necessários” é a apreciação e o reconhecimento dos efeitos retroactivos do acordo e não da sua validade.
28. Quanto à questão de os fundamentos da sentença serem abrangidos ou não nos limites do caso julgado, segundo a orientação jurisprudencial do Dr. Viriato Manuel Pinheiro de Lima no “Manual de Direito Processual Civil”, 2ª edição da tradução, traduzido por Ip Son Sang e Lou Ieng Ha, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2008, p. 342 e 343, é princípio fundamental que o caso julgado se restrinja à parte dispositiva, mas deverá alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha necessidade de resolver como premissa da conclusão formada, ou seja, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgamento.
29. De facto, neste processo, para resolver o litígio entre as partes e para julgar a acção judicial intentada pela autora, bastava apenas analisar e apreciar a questão relativa aos efeitos retroactivos do acordo segundo a lógica factual e jurídica, não seria necessário recorrer à análise e apreciação da validade do mesmo acordo.
30. Tal como se disse na fundamentação factual e jurídica da sentença:
“Caso a parte não assim entenda e ache ser válido o “acordo de bens do casamento” celebrado no cartório notarial da zona de Xinhui, cidade de Jiangmen da China, não é possível que este acordo produza efeitos retroactivos pela seguinte razão: ...”
31. A dita sentença analisou primeiro a validade do acordo foi por causa da lógica sobre a ordem de surgimento de factos e não visou à lógica necessária para resolver juridicamente o problema. De facto, para resolver o pedido da autora, basta analisar e apreciar a questão relativa aos efeitos retroactivos do acordo. Será resolvido legalmente o conflito entre as partes e o pedido da autora satisfeito, desde que seja resolvida a aludida questão.
32. Isto quer dizer que a sentença poderia obter decisão final sem analisar a validade do acordo caso tivesse reconhecido na fundamentação os efeitos retroactivos do acordo.
33. Assim, entende o recorrente que a apreciação e reconhecimento da validade do acordo não é o pressuposto da decisão final que resolve a questão em apreço. Por outras palavras, a validade do acordo não é a questão preliminar que é antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
34. Face ao exposto, o recorrente entende que não existe relação de “os pressupostos e fundamentos logicamente necessários da sentença” entre a “decisão” da sentença e a “posição manifesta na fundamentação respeitante à invalidade do acordo”, existindo logicamente, para a “decisão”, quanto muito, uma “opção” ou “fundamento complementar”.
35. O recorrente entende que não deve julgar “os pressupostos e fundamentos logicamente necessários da sentença” somente com base no teor da sentença, deve julgar em conjugação com a lógica jurídica objectiva, ou seja, o juízo feito por uma pessoa que tem formação jurídica ou tem conhecimentos jurídicos gerais sobre a relação entre a “decisão” e “fundamentação” segundo a lógica jurídica objectiva depois de ter lido a sentença.
36. Caso numa sentença exista a relação de “os pressupostos e fundamentos logicamente não necessários da sentença” entre a “decisão” e “uma posição na fundamentação”, tais pressupostos e fundamentos não devem produzir, fora do processo, efeito de caso julgado.
3 7. Nesta conformidade, salvo o devido respeito por opinião diferente, na óptica do recorrente, a posição tomada e a opinião expressa na fundamentação da sentença respeitante à validade do acordo não devem ser alargadas à força obrigatória de caso julgado.
38. Na óptica do recorrente, a sentença a quo violou o artº 574º, nº 1 e artº 576º, nº 1, ambos do CPC.
39. A validade do acordo de bens do casamento celebrado em 5 de Março de 2007:
40. A sentença a quo indicou, “pela matéria de facto provado constante dos autos, só pode obter-se a mesma conclusão”.
41. No entanto, o recorrente não se conforma com tal entendimento pelo seguinte motivo:
42. Analisados os factos e direito, a sentença a quo apontou que se pode resultar, quanto muito, no reconhecimento do facto de que a Autora e o Réu confirmaram e assinaram o acordo perante o notário. Este tipo de documento notarial é equiparado ao documento autenticado previsto na lei da Região, por isso, não se pode entender que tal convenção pós-nupcial foi lavrada por escritura pública ou forma semelhante à escritura pública pelo notário local. E entendeu que tal convenção não foi lavrada por escritura pública por um notário, forma específica exigida por lei.
43. O referido reconhecimento só indicou que realmente a celebração do acordo não observou a forma especial de escritura pública lavrada por um notário, mas não disse qual é a forma de escritura pública exigida pela lei de Macau, reconhecendo ser nulo o acordo por este não ter sido lavrado conforme aqueles requisitos formais. (sic)
44. Na óptica do recorrente, logicamente, na resolução jurídica da questão, deve-se definir a escritura pública exigida pela lei de Macau e analisar, depois, a forma de escritura pública exigida ou elementos constitutivos. Só depois disso é que se pode reconhecer a invalidade do acordo por não ter sido celebrado conforme aquelas formas ou elementos constitutivos.
45. A autora invocou que tal documento é um documento particular assinado pelas partes e o notário apenas reconheceu a autenticidade das assinaturas, não sendo uma escritura pública. Tal facto não foi dado como assente.
46. Mesmo assim, o recorrente entende que, para obter conclusão sobre a questão acima suscitada, há necessidade de analisar o teor do acordo e a sua elaboração e a forma de elaboração.
47. Da matéria de facto provado destes autos e dos documentos constantes de fls. 69 a 73 dos autos, resulta que a autora e o réu celebraram a seguinte convenção: (vd. o teor acima citado)
48. Além do teor acima mencionado, ainda há a capa da escritura pública, a escritura pública com o carimbo com assinatura do notário e o selo do cartório notarial e a tradução em língua inglesa da escritura pública e do “acordo de bens do casamento”.
49. Para analisar se o acordo foi ou não celebrado sob forma de escritura pública, o recorrente não pode deixar de transcrever o teor completo da certidão acima referida que foi emitida em 9 de Novembro de 2015 pelo cartório notarial no distrito de Xinhui da cidade de Jiangmen da Província de Guangdong da China: (vd. o teor acima citado)
50. Além disso, deve ter em conta o teor, elaboração e requisito formal de escritura pública exigidos pela lei de Macau na análise da questão em causa.
51. Dispõe o nº 2 do artº 356º do Código Civil que autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, por notário ou por oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.
52. Reza o artº 50º do Código do Notariado que os documentos lavrados pelo notário, ou em que ele intervém, podem ser autênticos, autenticados ou ter apenas o reconhecimento notarial.
53. De acordo com os diplomas legais de Macau acima referidos, a diferença entre a elaboração dos documentos autênticos e a dos documentos particulares tem a ver com se o documento é, ou não, exarado, com as formalidades legais, por notário nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído.
54. O documento cujo conteúdo inteiro foi minutado e elaborado pelo notário é documento autêntico, tratando-se, rigorosamente, de uma escritura pública. No caso de o documento ser elaborado por particular e depois entregue ao cartório notarial para reconhecimento da assinatura e conteúdo, este é considerado documento particular com assinatura reconhecido notarialmente ou documento particular autenticado.
55. Estipula o nº 1 do artº 51º do Código do Notariado que são exarados nos livros de notas os testamentos públicos e os actos para os quais a lei exija escritura pública ou que os interessados queiram celebrar por essa forma.
56. O artº 52º do mesmo Código dispõe que a numeração dos registos dos actos notariais é mensal, podendo ser adoptada a numeração diária para os reconhecimentos.
57. Podemos ver que, formalmente, a lei de Macau exige a gestão organizacional das escrituras públicas através do seu registo e arquivamento.
58. O artº 68º do Código do Notariado estipula que o notário deve sempre verificar a identidade dos outorgantes e demais intervenientes no acto. A verificação da identidade dos outorgantes no acto pode ser feita por alguma das seguintes formas: a) Pela exibição do bilhete de identidade de residente de Macau ou de documento equivalente; ...”
59. E reza o artº 72º do mesmo Código que antes da assinatura e na presença simultânea de todos os intervenientes, deve proceder-se à leitura do instrumento notarial e dos documentos complementares que o acompanham e, em seguida, à explicação do conteúdo do acto e suas consequências legais. A explicação do conteúdo do instrumento e das suas consequências legais deve ser feita pelo notário, de forma resumida, mas de modo a que os outorgantes fiquem a conhecer, com precisão, o significado e efeitos do acto realizado. (o sublinhado é do recorrente)
60. Reza o nº 1 do artº 73º do mesmo Código que os actos notariais são assinados na presença do notário, que assina por último, pelos outorgantes e demais intervenientes no acto.”
61. Portanto, a lei de Macau estabelece que o conteúdo inteiro da escritura pública deve ser minutado e elaborado por notário, este verifica a identidade dos outorgantes mediante documentos de identificação. Além disso, a escritura pública e documentos complementares são lidos aos outorgantes pelo notário e este explica, a seguir, às partes o conteúdo do acto e suas consequências legais. Para confirmação a escritura pública será assinada pelos outorgantes e, por último, pelo notário.
62. Além disso, estipula o nº 1 do artº 363º do CC que o documento só é autêntico quando a autoridade pública, o oficial público ou notário que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar.”
63. Assim sendo, além do preenchimento dos requisitos legais acima mencionados respeitantes ao conteúdo, elaboração e foram, a lei de Macau exige ainda que o notário que lavra a escritura pública seja competente, em razão da matéria e do lugar, e não esteja legalmente impedido de o lavrar.
64. Analisados a forma e elementos constitutivos para a lavratura de escritura pública exigidos pela lei de Macau, o recorrente vai agora analisar se o acordo em causa preenche ou não os elementos constitutivos da escritura pública previstos pela lei de Macau.
65. Em primeiro lugar, tal escritura pública foi lavrada a pedido conjunto das partes. Após verificadas nos termos da lei, por parte do referido cartório notarial do Interior da China, a autenticidade e legalidade do acto notarial requerido (acordo de bens do casamento), o notário Nie Jianxiong do cartório notarial, depois de ter verificado a legalidade do acto, minutou e elaborou legalmente, conforme a vontade das partes sobre o acordo de bens do casamento, a escritura pública no modelo exigido pelo Departamento de Administração Judicial do Conselho do Estado e o conteúdo inteiro da sua parte integral “acordo de bens do casamento”, incluindo a tradução em língua inglesa de tal escritura pública e sua parte integral “acordo de bens do casamento” (vd. nºs 1 e 3 da certidão anexa).
66. Por conseguinte, a escritura pública do acordo de bens do casamento em causa preenche os requisitos necessários para a elaboração de escritura pública exigidos pela lei de Macau.
67. Formalmente, a referida escritura pública foi lavrada em triplicado e, após devidamente assinada, um exemplar fica em poder de cada uma das partes e outro exemplar fica arquivado no respectivo cartório notarial. Tal escritura foi registada legalmente pelo respectivo
cartório notarial sob nº o número 新証內字 1012(2007) no livro de registo em ordem cronológica e por espécies. (vd. nºs 5 e 6 da certidão anexa)
68. Pelo exposto, tal acordo satisfaz formalmente os requisitos necessários para escritura pública previstos na lei de Macau.
69. Quanto ao conteúdo, ao admitir o pedido de celebração de escritura pública e ao assinar a escritura pública em causa, o notário responsável verificou as identidades de B e A pela exibição dos bilhetes de identidade de residente de Macau e documentos relacionados que foram por eles apresentados e confirmou a capacidade de exercício, qualidade e direito das partes para pedir a escritura pública em causa. E aquando da assinatura da escritura, o notário leu às partes a escritura pública e o “acordo de bens do casamento”, que faz parte integral da escritura, e explicou-lhes os seus conteúdos, sentido e consequência jurídicos, acharam em tudo conforme e assinaram. A escritura pública foi assinada também pelo notário, na qual foram apostos o carimbo com assinatura e o selo deste Cartório. (vd. nºs 2 e 4 da certidão anexa)
70. Por conseguinte, a escritura pública do acordo de bens do casamento em causa preenche os requisitos necessários para escritura pública exigidos na lei de Macau.
71. Por fim, a pedido das partes B e A o notário responsável pela lavratura da escritura pública lavrou o instrumento de acordo com os procedimentos legais e com o uso da competência conferida por lei. Não se verificou impedimento por parte deste Cartório ou do notário responsável na realização do acto. (vd. nº 7 da certidão anexa)
72. Por isso, a escritura pública do acordo de bens do casamento em causa preenche também o requisito relativo à competência do notário que lavra a escritura pública previsto na lei de Macau, não existindo o impedimento legal.
73. Face ao exposto e pelos fundamentos apresentados e direito notarial do Interior da China citado, o acordo de bens do casamento controvertido satisfaz a definição e requisitos legais da escritura pública previstos na lei de Macau respeitantes a conteúdo, elaboração, forma e competência e impedimento de notário.
74. A sentença a quo reconheceu, nos termos do artº 35º, nº 1, conjugado com os artºs 1578º, nº 3, e 1574º do CC, que o acordo não foi celebrado por forma de escritura pública regulada pela lei de Macau e, por consequência, considerou nulo o acordo.
75. O artº 35º, nº 1 do CC dispõe que a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no exterior.
76. Da norma supra citada, entende-se que, em princípio, é suficiente que a forma da declaração negocial observe a lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir a observância de determinada forma, ou seja, o negócio celebrado no exterior deve observar também as disposições da lei reguladora da substância do negócio.
77. Tendo comparado nos parágrafos anteriores as formas e elementos constitutivos previstos na lei de Macau e do Interior da China, o recorrente pode concluir que o “acordo de bens do casamento celebrado pelas partes no cartório notarial do Interior da China, cujos conteúdo, elaboração e forma estão em conformidade com a determinada forma de escritura pública prevista pela lei de Macau e satisfazem a rigorosidade e solenidade exigidas pela lei da Região na lavratura de escritura pública.”
78. Além disso, o recorrente admite que há diferença entre as duas (leis de Macau e do Interior da China), mas tal não afecta substancialmente o reconhecimento da conclusão acima deduzida.
79. Devemos compreender que cada país ou território tem o seu próprio sistema jurídico e tem definição e requisitos para a lavratura de escritura pública não exactamente semelhantes aos adoptados por outros. Portanto, não se deve exigir que a escritura pública de um território seja lavrada na forma exactamente igual à de outro território, para se poder reconhecer a sua validade, senão pode surgir uma situação extrema - são consideradas inválidas todas as escrituras públicas lavradas no exterior por não preencherem os requisitos para a lavratura de escritura pública em Macau!
80. Deve considerar-se que o acordo foi celebrado por forma especial de escritura pública perante um notário, o qual, por isso, está em conformidade com as disposições do artº 1578º, nº 3, conjugado com o artº 1574º e artº 35º, nº 1, todos do CC, e, consequentemente, produz efeitos em Macau.
81. Pelo exposto, entende o recorrente que a sentença a quo violou as normas jurídicas acima citadas, mormente o artº 1578º, nº 3, conjugado com o artº 1574º e artº 35º, nº 1, todos do CC».
*
A autora respondeu ao recurso pugnando pelo seu improvimento, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1- Autora e Réu contraíram entre si matrimónio no dia 30 de Dezembro de 2004, no distrito de Xinhui, na cidade de Jiangmen, província de Cantão, no regime supletivo da lei chinesa, conforme certidão do casamento junta a fls. 9 e cujo teor se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos. (alínea A) dos factos assentes)
2 - Em Outubro de 2005 as partes fixaram residência em Macau, sendo que a 5 de Março de 2007 já tinham obtido autorização de residência e adquirido a condição de residentes não permanentes (alínea B) dos factos assentes)
3 - No dia 5 de Março de 2007, A. e R. celebraram num cartório da cidade de Jiangmen convenção pós-nupcial nos termos da qual “os bens adquiridos por cada um dos cônjuges antes e depois do casamento são pertença daquele que os adquiriu, não podendo nenhum dos cônjuges interferir na utilização e no funcionamento dos bens pessoais do outro. Quaisquer perdas e lucros com o património de cada um em nada são relacionados com o outro”, tudo conforme doc. de fls. 12 cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea C) dos factos assentes)
4 - Em 8 de Abril de 2013 foi decretado o divórcio das partes pelo Tribunal da Província de Cantão, no distrito de Xinhui, da cidade de Jiangmen, conforme cópia da sentença junta a fls. 14 e ss. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea D) dos factos assentes)
5 - Essa decisão está de momento a ser objecto de revisão no Tribunal de Segunda Instância, cujos autos correm sob o nº 508/2013 (alínea E) dos factos assentes)
6 - Por escritura pública de 29 de Março de 2009, outorgada no Cartório do Notário Privado Dr. Luís Reigadas, o R. adquiriu pelo preço de HKD1.350.000,00 (um milhão trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), a fracção autónoma para comércio, designada por “AR/C” do rés-do-chão “A”, com sobreloja e entrada pelo nº 32-I da Rua Central, do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 22711, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 20856, estando a referida fracção inscrita a favor do R. sob o nº 180212G, tudo conforme doc. de fls. 21 e ss., 26 e 27 e ss. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea F) dos factos assentes).
7 - Também por escritura de 29 de Março de 2009, outorgada no mesmo cartório, o R. constituiu a favor do Banco de Construção da China (Macau) uma hipoteca voluntária sobre a supra mencionada fracção para garantia de facilidades bancárias gerais até ao limite de HKD1.000.000,00 (um milhão de dólares de Hong Kong), conforme de fls. 33 e ss. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea G) dos factos assentes)
8 - Em ambas as escrituras mencionadas atrás, o R. declarou-se casado no regime da separação de bens. (alínea H) dos factos assentes)
9 - Por sentença de 26 de Abril de 2013, proferido pelo 1 º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base no processo nº CV1-11-0059-CAO, já transitada em julgado, foi declarada a invalidade de convenção pós-nupcial celebrada entre as partes em 5 de Março de 2007. (alínea I) dos factos assentes)
Acrescentam-se ainda os seguintes factos, por serem do nosso conhecimento (o aqui relator foi relator do respectivo processo):
10 – O processo referido no facto supra referido sob o nº 5 foi findo com a prolação de acórdão datado de 17/07/2014, já transitado, que julgou procedente o pedido de revisão.
11 – A sentença aludida no facto nº 9 apresenta o seguinte dispositivo decisório:
«IV) Decisão
Nos termos acima expostos, julgo procedente a presente acção intentada pela Autora A contra o Réu B e declaro que os dados pessoais do proprietário das fracções autónomas "M" e "N" do 22° andar, no Edifício Jardim XX, Fase I, n° 49 da Rua de Brás da Rosa e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXX e inscrita na matriz predial sob o artigo 71774, com o proprietário inscrito sob n° 101166G) são os seguintes:
"O próprietário B (B) do sexo masculino, casado, contraiu casamento com A (A) sob o regime de bens supletivo da Lei de Casamento da República Popular da China".
Defiro que o Conservador modifique os dados pessoais do proprietário dos dois imóveis em causa conforme o indicado acima”.
***
III – O Direito
1 – Do quadro de facto
No que aos factos respeita, vale a pena recordar o que para o caso essencialmente importa. E o que é essencial destacar é que:
a) - Autora e Réu contraíram matrimónio no dia 30 de Dezembro de 2004, no distrito de Xinhui, na cidade de Jiangmen, província de Cantão, no regime supletivo da lei chinesa, o que significa que o regime de bens era o de comunhão de adquiridos;
b) – Em 2005 vieram viver para Macau e em 2007, na RPC, celebraram uma convenção pós-nupcial, segunda a qual os bens levados por cada um dos cônjuges para o casamento ou os por cada um adquiridos posteriormente conservavam a natureza de bens próprios;
c) – Divorciaram-se em Abril de 2013 na RPC;
d) – Em 2005 o recorrente adquiriu duas fracções autónomas imobiliárias sitas em Macau, celebrando para o efeito a respectiva escritura pública;
e) – Nessa escritura o R declarou ser solteiro.
f) – A sentença proferida a 26 de Abril de 2013 no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, no processo nº CV1-11-0059-CAO, declarou na parte decisória que o adquirente dos bens referidos no ponto 4, não era solteiro, mas casado com A, aqui recorrida, sob o regime de bens supletivo da Lei de Casamento da República Popular da China, determinando em consequência se procedesse à correcção na respectiva Conservatória do Registo Predial a respeito da titularidade sobre os referidos imóveis.
g) – Por escritura pública de Março de 2009 o réu voltou a adquirir uma fracção imobiliária destinada a comércio, sita em Macau, tendo constituído na mesma data, também por escritura pública, sobre aquela uma hipoteca voluntária para garantia de facilidades bancárias.
h) – Em ambas as escrituras referidas no ponto anterior o réu declarou-se casado em regime de separação de bens.
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2 – Da decisão recorrida
Na presente acção a autora tinha invocado a ilegalidade da convenção pós-nupcial a fim de que o tribunal declarasse (a acção era declarativa, sublinhe-se) que o referido bem adquirido pelo réu é comum de ambos e ordenasse a respectiva rectificação registral.
A sentença ora sob escrutínio sufragou a tese da autora, julgando a acção procedente, suportada na circunstância de aquela convenção ser inválida.
Para atingir tal conclusão a sentença recorrida fez o seguinte exercício:
i – A sentença proferida no Processo nº CV1-11-0059-CAO, na sua fundamentação, afirmou que o acordo pós-nupcial era inválido, formando caso julgado;
ii – Porém, e supletivamente, para o caso de se não entender estar em presença de caso julgado, analisou a validade do tal acordo e concluiu que ele era nulo.
E foi assim que a sentença em crise decidiu, na sua parte dispositiva, que o bem adquirido em 2009 pelo réu era bem comum, ordenando a rectificação dos dados pessoais acerca da propriedade sobre ele na respectiva Conservatória do Registo Predial, a fim de que no registo ficasse a constar que o réu era casado com a autora no regime supletivo de bens previsto no ordenamento jurídico da República Popular da China.
*
3 – A posição do recorrente
No presente recurso jurisdicional o recorrente trouxe a terreiro os seguintes fundamentos:
- A sentença recorrida procedeu à rectificação da sentença do Proc. nº CV1-11-0059-CAO, sem o poder fazer, visto que a forma como o fez não está em conformidade com o teor da referida sentença;
- A sentença recorrida serviu-se da sentença proferida no Proc. nº CV1-11-0059-CAO para afirmar que a questão da invalidade da convenção pós-nupcial estava já resolvida por decisão transitada. Porém, o que foi junto aos autos não foi uma certidão, mas uma simples fotocópia sem qualquer referência ao seu trânsito;
- A sentença proferida no referido Proc. nº CV1-11-0059-CAO não produziu caso julgado em relação à validade/invalidade da convenção pós-nupcial, uma vez que essa questão apenas foi abordada num trecho da sua fundamentação, sendo que na sua parte dispositiva nada foi decidido quanto a esse tema. E o caso julgado apenas releva em relação à decisão e não já quanto aos fundamentos.
- O acordo pós-nupcial celebrado entre autora e réu (recorrida e recorrente) é válido, porque obedece às exigências das leis de Macau, nomeadamente – e ao contrário do que foi sustentado na sentença em crise – pelo uso de escritura pública perante o notário da RPC.
São, pois, estas as grandes questões que urge apreciar, o que faremos imediatamente no capítulo seguinte.
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4.1 – Da alegada rectificação
Esta questão tem que ver com a factualidade contida na alínea I dos “factos assentes” (ver supra II-9).
Aí é dito que “Por sentença de 26 de Abril de 2013, proferido pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base no processo nº CV1-11-0059-CAO, já transitada em julgado, foi declarada a invalidade de convenção pós-nupcial celebrada entre as partes em 5 de Março de 2007”.
Ora, como se pode constatar da sentença proferida naquele processo a sua parte decisória limitou-se a consignar o seguinte:
“Nos termos acima expostos, julgo procedente a presente acção intentada pela Autora A (A) contra o Réu B e declaro que os dados pessoais do proprietário das fracções autónomas "M" e "N" do 22° andar, no Edificio Jardim XX, Fase I, n° XX da Rua de Brás da Rosa C descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n" 21781 e inscrita na matriz predial sob o artigo 71774, com o proprietário inscrito sob n° 101166G) são os seguintes:
"O próprietário B (B) do sexo masculino, casado, contraiu casamento com A (A) sob o regime de bens supletivo da Lei de Casamento da República Popular da China".
Defiro que o Conservador modifique os dados pessoais do proprietário dos dois imóveis em causa conforme o indicado acima”.
Como se pode ver, o dispositivo transcrito não efectuou qualquer pronúncia declarativa a respeito da invalidade da convenção pós-nupcial.
O que se passou foi que a sentença em causa, no desenvolvimento da sua fundamentação, debruçou-se sobre a validade da referida convenção, supondo ter que efectuar esse exercício a fim de poder declarar que o réu/recorrente era casado no regime de bens supletivo existente na RPC e de poder determinar a alteração dos dados pessoais na Conservatória do Registo Predial, já que neles constava ser solteiro.
O juiz que prolatou a sentença em crise, dando conta dessa circunstância, e achando que o aludido facto não traduzia fielmente a verdade, achou que devia fazer referência a essa vicissitude. E a esse propósito disse que o facto deveria ser rectificado a fim de que dele resultasse que “na apreciação do processo CV1-11-0059-CAO, foi julgada inválida a convenção pós-nupcial celebrada entre dois”.
Nós entendemos perfeitamente a posição do juiz da sentença, aliás exacta, na medida em que corresponde totalmente à verdade formal e material.
Com efeito, tal posição cabe dentro da possibilidade consentida pelo art. 562º, nº2, do CPC. Com efeito, não constitui caso julgado positivo um qualquer facto assente se no processo existir alguma fonte de prova (v.g., documental) que afaste a primitiva versão factual que tiver sido levada à factualidade provada (neste sentido, v.g., Ac. da RL, de 16/07/2009, Proc. nº 5095/05; Ac. RC, de 18/03/2014, Proc. nº 3721/11, entre outros).
De qualquer maneira, sempre importa dizer que, se é verdade que o juiz da sentença fez tal afirmação acerca da necessidade de rectificar o referido facto, verdade é também que não proferiu na parte dispositiva qualquer decisão a este respeito. Ou seja, o juiz limitou-se a tomar em consideração o facto concreto na versão que considerava exacta, para daí prosseguir para a análise jurídica do caso na parte referente ao questionado caso julgado acerca da validade da convenção.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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4.2 – Da fotocópia da sentença
Acha o recorrente que o tribunal “a quo” não podia fazer uso de um documento, que não é mais do que uma fotocópia simples, mas que, para ser tida em conta, deveria ser apresentado sob a forma de certidão, com referência à data do seu trânsito.
Pois bem. A verdade é que, sendo um documento oriundo dos tribunais (sentença), se não tivesse ocorrido o respectivo trânsito por certo o recorrente teria impugnado a sua força probatória, em seu devido tempo, o que não fez.
Por outro lado, é um documento que, pela sua origem, seria do conhecimento do tribunal; e não seria lhe difícil averiguar da condição alusiva à eventualidade do aludido trânsito.
Finalmente, não resta qualquer dúvida a respeito do trânsito de tal sentença, pois assim o proclama a certidão constante do documento de fls. 224-230. Ou seja, esta certidão comprova aquilo que a simples fotocópia não podia ter transmitido, razão pela qual nenhum constrangimento em matéria de prova entrevemos sobre esta matéria. Assim, onde o tribunal “a quo” pudesse ter alguma dúvida (que não teve, devido ao conhecimento directo que tinha da situação), o este tribunal “ad quem” sempre teria à sua disposição um documento que supriria alguma insuficiência a este respeito.
Improcede, pois, o recurso também quanto a este fundamento.
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4.3 – Do alcance do caso julgado
Discute-se neste fundamento do recurso a questão de saber se a sentença proferida no Proc. nº CV1-11-0059-CAO constituir caso julgado no tocante à apreciada (na fundamentação) invalidade da convenção pós-nupcial.
A sentença disse que sim; o recorrente entende que não.
Vejamos, então.
A circunstância de a referida sentença ter concluído (mas não declarado na sua parte dispositiva, recorde-se) que a convenção era ilegal vincularia o julgador dos presentes autos a seguir essa posição?
O problema equacionado prende-se, pois, com a velha questão de saber qual o alcance ou limite objectivo do caso julgado e exprime-se da seguinte maneira: o caso julgado atinge unicamente a parte decisória da sentença ou simultaneamente a fundamentação desta?
Existe um consenso em redor deste tema. Diz-se que, em princípio, o caso julgado apenas abrange a parte decisória da sentença, porque é aí que o tribunal fornece a resposta a uma pretensão. Aliás, a justificação do caso julgado está precisamente na necessidade de se evitar uma contradição entre decisões. E esta linha de raciocínio, que traduz, aliás, uma concepção restrita do caso julgado, de certo modo está em sintonia com o disposto no art. 574º, nº1, do CPC, que somente alude à “decisão sobre a relação material”. Este é o sentido geral da doutrina mais representativa (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, pág. 317-318; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, III, 4ª ed., pág. 143; Castro Mendes, Direito Processual Civil, III Vol., 1978/1979, edição da Associação Académica da Universidade de Lisboa, pág. 282-283; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 712, 714 e 718-719; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág.579; Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 556).
Todavia, nem sempre a decisão propriamente dita responde a todas as dificuldades que se colocam. É então que alguns autores propendem para incluir no alcance do caso julgado a parte fundamentativa da sentença sempre que os fundamentos concretamente utilizados se mostrem imprescindíveis à decisão. Estaríamos então, parafraseando as palavras dos doutrinadores, perante premissas da conclusão decisória ou face a precedentes lógicos e necessários do dispositivo. Em tais casos faz sentido e lógica que o manto do caso julgado da sentença cubra igualmente os seus motivos ou fundamentos, naquilo a que se pode designar por concepção ampla do caso julgado. Neste sentido se pronunciam, entre outros, Alberto dos Reis (ob. e loc. cit.), no que foi seguido, por exemplo, por Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 1999, pág. 200-201), Manuel de Andrade (ob. cit., pág. 318 e 327 e sgs.), Teixeira de Sousa (ob. cit., pág. 580-583), Viriato Lima (ob. e loc. cits.).
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4.4 - (Continuação)
E o caso concreto? A análise que a sentença proferida no Proc. nº CV1-11-0059-CAO efectuou sobre a validade da convenção pós-nupcial tinha carácter prévio e necessário à decisão propriamente dita?
Vejamos.
O que estava em causa nessa acção intentada pela aqui autora e ora recorrida era que o tribunal declarasse, a seu pedido, que o ora recorrente estava casado consigo sob o regime de comunhão de adquiridos e que se comunicasse à Conservatória do Registo Predial o dado pessoal sobre o estado civil deste. E isto porquê? Porque o recorrente tinha adquirido dois imóveis, declarando na escritura pública ser solteiro.
Ora, esse estado civil (de solteiro) não correspondia à verdade, pois que continuava casado com a recorrida.
Portanto, se o problema fosse unicamente circunscrito ao estado civil, não haveria necessidade de avaliar se o “acordo de bens do casamento” (a aludida convenção pós-nupcial) era ou não válido. É que uma coisa é o estado civil, outra é o regime de bens. Portanto, bastaria ao tribunal averiguar se o casamento se mantinha ou não. E porque não tido havido dissolução, pareceria óbvio que a decisão a tomar no tribunal não oferecia qualquer dúvida ou dificuldade.
Porém, o sentido da acção não era apenas esse. O que a autora pretendia era assegurar que, além do reconhecimento da manutenção do casamento, também ficasse demonstrado que o regime de bens ainda era aquele que tinha sido definido entre ambos inicialmente (regime supletivo da RPC, que é o de comunhão de adquiridos) e que portanto, no fundo, as duas fracções adquiridas pelo recorrente também lhe pertenciam.
Ora, quanto a nós, para chegar a essa conclusão o tribunal tinha que realmente que analisar se o referido “acordo de bens” (que excluía da comunhão todos os bens adquiridos por cada um dos cônjuges antes ou depois do casamento) era ou não válido. A decisão a tomar quanto à pretensão da autora dependeria da conclusão a que chegasse nesse estudo preliminar. Dito por outras palavras, a resolução da questão da validade da convenção pós-nupcial era prévia e necessária à decisão a proferir.
E sendo assim, parece-nos ser este um caso que a doutrina citada inscreve na excepção à regra de que o caso julgado apenas abrange a decisão e não a sua fundamentação (cfr. art. 574º, nº1 e 576º, nº1, do CPC). É que se a convenção aludida era inválida para aquele processo, também o será para o presente, o que permitirá afirmar que a fracção adquirida pelo recorrente, e aqui em apreciação é também propriedade da recorrida.
Ou seja, a avaliação efectuada na sentença proferida no Proc. nº CV1-11-0059-CAO tem aptidão para constituir caso julgado quanto a esta matéria, pelo que falta razão ao recorrente quanto a este ponto.
*
4.5 – (Continuação)
Em todo o caso, o juiz da sentença proferida nos presentes autos, ora em escrutínio, passou a enfrentar directamente o tema em discussão sob a forma de um exercício supletivo (“caso assim se não entenda….”), em termos que mais adiante teremos oportunidade de ver.
Quer isto dizer que, pela mesma ordem de ideias, isto é, também supletivamente, iremos averiguar de seguida o último fundamento trazido ao recurso jurisdicional.
*
5 – Da validade do “acordo bens de casamento”
É ou não válida a citada convenção pós-nupcial?
De acordo com o disposto no art. 52º, nº1, do Código Civil “A admissibilidade, substância e efeitos das convenções pós-nupciais e das modificações feitas pelos cônjuges ao regime de bens, legal ou convencional, são reguladas pela lei competente nos termos do artigo 50.º ”.
E nos termos do art. 50º, nº1, do mesmo Código “Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.”
Ora, por força do art. 1578º, nº3, do Código Civil “À convenção pós-nupcial é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no art. na subsecção anterior”.
E face ao art. 1574º, “As convenções antenupciais só são válidas se forem celebradas por escritura pública ou, com os limites determinados nas leis do registo civil, pela forma consagrada nestas leis”.
Por outro lado, presente o nº1, do art. 35º do Código, “A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no exterior”.
Se é assim, e sendo certo que ambos os cônjuges residiam em Macau desde 2005, então esta convenção pós-nupcial devia observar o regime da lei de Macau e não o do lugar da celebração da convenção. O que quer dizer que, para ser válida, estava sujeita a escritura pública.
Ora bem. O réu da acção, e ora recorrente, defende que a referida convenção foi efectivamente efectuada através de escritura pública, para o que às alegações junta uma certidão emitida em 9/11/2015 pelo cartório notarial de Xinhui da cidade de Jiangmen, da Província de Guandong pretensamente demonstrativa.
Vejamos o que diz o acordo (alínea C) dos factos assentes) consta de documento, cujo teor reproduzimos integralmente (fls. 69-73 dos autos):
"Parte A: B, do sexo masculino, nascido em 11 de Agosto de 1982, reside actualmente em Macau.
N° do Bilhete de Identidade de Residente de Macau: XXX
Parte B: A, do sexo feminino, nascida em 12 de Novembro de 1982, reside actualmente em Macau.
N° do Bilhete de Identidade de Residente de Macau: XXX
Parte A e Parte B contraíram matrimónio no dia 30 de Dezembro de 2004, no distrito de Xinhui, na cidade de Jiangmen da província de Guangdong. Após o casamento, ambas as partes decidem celebrar o seguinte acordo após negociação:
Os bens adquiridos por cada um dos cônjuges antes e depois do casamento são pertença daquele que os adquiriu, não podendo nenhum dos cônjuges interferir na utilização e no funcionamento dos bens pessoais do outro. Quaisquer perdas e lucros com o património de cada um em nada são relacionados com o outro.
2.· Ambas as partes podem celebrar acordo supletivo sobre assuntos não indicados aqui neste acordo, que terá os mesmos efeitos jurídicos do presente acordo.
O presente acordo é feito em triplicado, ficando um exemplar em poder de cada uma das partes e sendo um exemplar entregue no cartório notarial do distrito de Xinhui da cidade de Jiangmen.
Outorgantes:
B
A
Aos 5 de Março de 2007".
Como se vê, não constam ali os elementos necessários à configuração formal de uma escritura pública tal como a conhecemos no nosso ordenamento jurídico. É que, sendo a escritura um documento autêntico, para possuir essa natureza a convenção em apreço deveria revestir-se das exigências formais e substantivas previstas nos arts. 356º, nº2 e 363º, nº1, do C.C. (tb. art. 66º do Cod. Not.).
E sendo assim, não interessa que a certidão ora junta trate o documento (convenção) como sendo escritura pública.
A qualificação que é dada na certidão não altera a natureza e a forma do documento em si mesmo. Efectivamente, não interessa que a certidão traga o nomen que o seu autor entendeu dar-lhe. É que para o caso, e com vista à avaliação da sua validade substancial e formal, apenas se aplicam as normas do direito da residência habitual dos cônjuges, que no momento da celebração era Macau.
E isto o concluímos, não só face ao disposto nos artigos 50º e 52º do CC acima citados, mas também ao vertido no art. 35º, nº1, do mesmo CC, segundo o qual “A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio”.
É certo que a 2ª parte do nº1 do art. 35º do CC acrescenta que “(…) é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no exterior”. Ora, é também esse o caso, pois a lei que regula a substância da convenção impõe que seja observada a forma solene de escritura pública, formalidade ad substantiam, e não ad probationem, razão pela qual a nulidade do negócio se impõe quando não respeitada (Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 145), tal como emerge do art. 212º do CC.
E o documento em causa não passa de um documento particular que, à face da nossa lei, é considerado autenticado, o que é coisa diferente de um documento autêntico, especial e incontestável, como é o caso da escritura pública (J.A. Mouteira Gurreiro, Temas de Registo e Notariado, pág. 201-206; tb. Vicente Monteiro e Frederico Rato, Regime do Notariado Privativo, CFJJ, 2014, pág. 72).
Aliás, nulidade que noutro plano da substância se detecta ainda, na medida em que contraria o disposto no art. 1578º, nº2, do CC que prevê que “A convenção pós-nupcial produz efeitos entre os cônjuges a partir do dia da sua celebração, sendo nula qualquer estipulação em contrário” (destaque nosso).
Como o documento em apreço dispõe que “Os bens adquiridos por cada um dos cônjuges antes e depois do casamento são pertença daquele que os adquiriu, não podendo nenhum dos cônjuges interferir na utilização e no funcionamento dos bens pessoais do outro.” (destaque nosso). Ou seja, a convenção, ao retroagir os seus efeitos a data anterior à data da sua celebração (inclusive a data anterior ao próprio casamento), viola a norma imperativa do art. 1578º, nº2 citado, o que é cominado com a nulidade.
Tudo se conjuga, pois, para a nulidade da convenção, tal como o concluiu a sentença recorrida, que assim se tem que confirmar e manter.
***
IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
T.S.I., 17 de Novembro de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong



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