打印全文
Processo n.º 252/2016 Data do acórdão: 2016-11-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– conversas deixadas na aplicação “wechat” de telemóvel
– conversação ou comunicação propriamente dita
– art.º 175.º do Código de Processo Penal
– meio de prova legalmente admissível
– art.o 112.º do Código de Processo Penal
S U M Á R I O

No caso dos autos, as conversas deixadas pelo 2.º arguido na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 4.º arguido ora recorrente já foram transmitidas (e não em via de transmissão) por esta aplicação e aí conhecidas pelo 4.º arguido (posto que este até já respondeu às mesmas pela mesma via), pelo que o facto de tais conversas assim transmitidas, e já conhecidas pelo seu destinatário, se encontrarem guardadas na conta de “wechat” deste não impede a consideração de que essas conversas já deixaram de constituir conversação ou comunicação propriamente dita para efeitos do art.º 175.º do Código de Processo Penal. Não é, pois, aplicável a essas conversas o regime estatuído nos art.os 172.º a 174.º deste Código, podendo as mesmas conversas ser valoradas como um meio de prova legalmente admissível, em sede da formação da livre convicção do tribunal sentenciador aquando do julgamento da matéria de facto (art.os 112.º e 114.º do mesmo Código), conclusão essa que é aplicável às mensagens de voz transmitidas pelo 4.º arguido por via de “wechat” para a aplicação de “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido e por este já conhecidas.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 252/2016
(Autos de recurso penal)
Recorrente (4.º arguido): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 337 a 344 do Processo Comum Colectivo n.º CR2-15-0224-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, foram condenados todos os quatro arguidos desse processo, sendo o 4.º arguido A, aí já melhor identificado, condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, alínea 1), da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante chamada como Lei de droga), na pena de um ano e nove meses de prisão, e de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.º 14.º da mesma Lei, na pena de 45 dias de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, na pena única de um ano e nove meses e quinze dias de prisão.
Inconformado com essa decisão judicial, veio o 4.º arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado e peticionado materialmente o seguinte (na sua motivação apresentada a fls. 358 a 371):
– apreciando os factos da acusação, integralmente dados por provados no testo do acórdão recorrido, verifica-se haver poucos factos imputados ao próprio arguido recorrente, o qual exerceu o seu direito ao silêncio no julgamento, pelo que ele não pode ser prejudicado, de maneira que os agentes de autoridade apenas podiam depor sobre factos que tinham tomado conhecimento directo, por força da sua própria acção de investigação;
– havendo transcrição não autorizada para os autos, das messagens de voz, usou-se assim um método proibido de prova (cfr. o disposto nos art.os 112.º, 113.º, n.º 3, e 173.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP)), devendo ser, pois, excluída a prova (de acordo com messagens de voz de “wechat” do telemóvel do 2.º arguido) contra o recorrente, ao que acresce o facto de as gravações dessas mensagens não terem sido reproduzidas em audiência para que se tivesse a certeza de que se trata da voz do recorrente, de que foi ele o autor dessas mensagens, tudo ao arrepio do art.º 336.º do CPP;
– aliás, não constam da acusação pública nem o número do telemóvel, nem o conteúdo das mensagens de voz, para se preparar uma defesa cabal;
– houve, em suma, erro notório na apreciação da prova;
– e fosse como fosse, a pena de prisão achada no acórdão recorrido para o crime de tráfico de menor gravidade do recorrente deveria ser reduzida para perto do seu mínimo legal ou mesmo ao seu mínimo legal, e deveria ser optada a pena de multa para o crime de consumo ilícito de estupefaciente, ou, pelo menos, reduzida a pena de prisão deste delito também para perto do respectivo mínimo legal;
– e por fim, subsidiariamente falando, deveria ser decretada a suspensão da execução da pena única de prisão imposta no acórdão recorrido.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido, no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. fls. 397 a 402).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 423 a 425v), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a suas fls. 337 a 344, cujo teor integral, que inclui a fundamentação fáctica e jurídica do veredicto final condenatório aí feito, se dá por aqui intergralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Conforme essa factualidade dada por provada: o 1.º arguido vendeu ao 2.º arguido 16 gramas líquidos de Ketamina pura; o 2.º arguido comprou isto sob instrução do 4.º arguido ora recorrente, para este 4.º arguido destinar a droga assim adquirida ao consumo por ele e por pessoas amigas dele, em conjunto (cfr. os factos provados 1 a 6); foi apreendido um telemóvel ao corpo do 4.º arguido por este usado na prática daquela referida conduta (cfr. o facto provado 17); o 4.º arguido, cuja conduta não foi autorizada por lei, sabia claramente a natureza e características da droga em causa, sendo ciente da punibilidade da sua conduta (cfr. os factos provados 19 e 20).
Do exame dos autos, sabe-se também o seguinte:
– consta do intróito da acusação pública (deduzida a fls. 208 a 209v) e também do intróito do acórdão recorrido o número telefónico do arguido ora recorrente como sendo ...;
– consta da fl. 25 dos autos uma declaração escrita assinada pelo arguido recorrente, autorizando o pessoal da Polícia Judiciária a examinar o conteúdo das comunicações e conversações e mensagens contidas no corpo desse telemóvel e no cartão SIM desse telemóvel;
– das fls. 26 a 31 dos autos, constam as fotografias tiradas sobre as comunicações da aplicação “wechat”, já transmitidas por “wechat”, nomeadamente de voz, entre o arguido recorrente e o 2.º arguido e por ambos conhecidas (e até respondidas), com transcrição feita pelo pessoal policial investigador sobre o conteúdo dessas comunicações de voz;
– das fls. 19 a 24 dos autos, constam uma declaração de autorização de teor semelhante assinada pelo 2.º arguido e as fotografias tiradas sobre as comunicações da aplicação “wechat”, já transmitadas por “wechat”, nomeadamente de voz, entre o 2.º arguido e o arguido recorrente e por ambos conhecidas (e até respondidas), com transcrição feita pelo pessoal policial investigador sobre o conteúdo dessas comunicações de voz.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Visto o teor da motivação do recurso em questão, vê-se que o recorrente começa por sindicar do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, imputando ao Tribunal recorrido o cometimento do erro notório na apreciação da prova, com alegado uso de um meio de prova proibido.
Desde já, é de repudiar a tese de uso, no caso, de um meio de prova proibido.
É que:
Por um lado, foi o próprio 4.º arguido ora recorrente quem autorizou por escrito o pessoal policial investigador a examinar o conteúdo das comunicações e conversações e mensagens contidas no corpo do seu telemóvel n.º ..., autorização essa que afasta a procedência de toda a tese de uso de meio de prova proibido (cfr. o art.º 113.º, n.º 3, do CPP, que reza expressamente que “… são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, … na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular” (com sublinhado aqui posto para ênfase)). E o mesmo se pode dizer mutatis mutandis a respeito do 2.º arguido.
E por outro, e especialmente no tocante à tese de “falta de autorização dada para a transcrição do teor das mensagens de voz de wechat”, a tese sustentada nesta parte pelo 4.º arguido também não deixa de naufragar, porquanto adoptando aqui a posição jurídica já explanada no acórdão deste TSI, de 16 de Junho de 2016, no Processo n.º 830/2015, no caso dos autos, as conversas deixadas pelo 2.º arguido na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 4.º arguido ora recorrente já foram transmitidas (e não em via de transmissão) por esta aplicação e aí conhecidas pelo 4.º arguido (posto que este até já respondeu às mesmas pela mesma via), pelo que o facto de tais conversas assim transmitidas, e já conhecidas pelo seu destinatário, se encontrarem guardadas na conta de “wechat” deste não impede a consideração de que essas conversas já deixaram de constituir conversação ou comunicação propriamente dita para efeitos do art.º 175.º do CPP. Não é, pois, aplicável a essas conversas o regime estatuído nos art.os 172.º a 174.º deste Código, podendo as mesmas conversas ser valoradas como um meio de prova legalmente admissível, em sede da formação da livre convicção do tribunal sentenciador aquando do julgamento da matéria de facto (art.os 112.º e 114.º do mesmo Código), conclusão essa que é aplicável às mensagens de voz transmitidas pelo 4.º arguido por via de “wechat” para a aplicação de “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido e por este já conhecidas.
Outrossim, é irrelevante a alegada circunstância de na factualidade acusada não constarem referidos o número do telemóvel do 4.º arguido recorrente nem o conteúdo das mensagens de voz de “wechat”. É que os meios de prova e o conteúdo da prova podem não estar referidos expressamente na factualidade incriminatória, quer acuasada quer finalmente julgada provada. E seja como for, pelo menos no momento em que foi notificado do despacho de designação da data de audiência de julgamento, o arguido recorrente já teve todo o acesso ao teor de todos os autos para preparar a sua defesa (art.º 297.º do CPP).
E o exercício por algum arguido do respectivo direito ao silêncio na audiência de julgamento não pode ter a virtude de obstar ao tribunal julgador a apreciação de todos os meios probatórios carreados aos autos para efeitos de formação da sua livre convicção, nos termos do art.º 114.º do CPP, sobre o objecto probando.
Sobre a questão de “certeza” ou não sobre a autoria da voz das mensagens de voz transmitidas por “wechat”, isto também se resume a uma questão de apreciação livre da prova.
Em todo o caso, na esteira lógica da posição jurídica sobejamente vertida no acima identificado aresto de 16 de Junho de 2016, é legítimo ao Tribunal recorrido apreciar o teor da transcrição das mensagens de voz inicialmente transmitidas por “wechat” ao destinatário e por este já conhecidas, para efeitos da formação da sua livre convicção sobre os factos objecto do processo, pelo que no caso concreto dos autos, não pode ter havido violação do art.º 336.º do CPP.
No tangente ao assacado erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do CPP, a tese da existência deste vício não pode proceder, porque o arguido ora recorrente acaba por pretender fazer impor o ponto de vista pessoal dele acerca do resultado do julgamento judicial da matéria de facto em causa no caso dos autos, enquanto não se mostra patente a este Tribunal ad quem, ante todos os elementos probatórios carreados aos autos, que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas jurídicas atinentes ao valor legal das provas, regras da experiência da vida humana ou leges artis vigentes na tarefa jurisdicional do julgamento dos factos.
Sobre a problemática da medida da pena, vistos todos os ingredientes fácticos já apurados judicialmente em primeira instância e como tal descritos no texto do acórdão ora recorrido, não se vislumbra aos olhos do presente Tribunal ad quem qualquer injustiça notória na imposição, aos padrões plasmados maxime nos art.os 40.º e 65.º, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), de um ano e nove meses de prisão ao arguido recorrente pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade do art.º 11.º, n.º 1, alínea 1), da Lei de droga, e de 45 dias de prisão ao seu crime de consumo ilícito de estupefaciente do art.º 14.º da mesma Lei, sendo também correcta a opção pela aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa em relação a este crime, por força das necessidades da prevenção deste delito (art.º 64.º do CP).
Por outra banda, não é de formar qualquer juízo de prognose favorável ao arguido recorrente em sede do art.º 48.º, n.º 1, do CP, visto que ele não só cometeu um crime de consumo ilícito de estupefaciente, mas também um delito, mais grave, de tráfico (de estupefaciente) de menor gravidade, cujas exigências da prevenção geral na sociedade também são prementes, pelo que a simples censura dos factos e a ameaça da execução da pena única de prisão dele não dá para satisfazer de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.
É, pois, de confirmar toda a decisão condenatória da Primeira Instância ora impugnada concretamente pelo 4.º arguido, decisão judicial recorrida essa que, diversamente do esgrimido lateralmente por este, está fundamentada nos termos legais.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso, com custas pelo arguido recorrente, com seis UC de taxa de justiça.
Este acórdão é irrecorrível nos termos do art.º 390.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Macau, 17 de Novembro de 2016.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
___________________________
Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



Processo n.º 252/2016 Pág. 1/12