Processo nº 827/2016 Data: 01.12.2016
(Autos de Recurso Extraordinário
de Revisão da Sentença)
Assuntos : “Recurso extraordinário de revisão”.
Alegação de (novos) “factos pessoais”.
Manifesta improcedência.
SUMÁRIO
1. O recurso extraordinário de revisão constitui uma “válvula de segurança” que permite a correcção de (eventuais) “erros judiciais” existentes numa decisão já transitada em julgado e, por isso, insusceptível de recurso ordinário, assegurando-se, desta forma, o respeito do direito que a todos deve ser reconhecido de contestar uma “condenação – que considere – injusta”.
2. Porém, se após condenado, e em sede de recurso de revisão invocar o arguido “novos factos pessoais”, do seu “foro subjectivo”, há que denegar a pretendida revisão, sendo mesmo de julgar o pedido “manifestamente improcedente”, se o mesmo arguido, desde o início do processo, assistido por Defensor Oficioso, teve já ampla e total oportunidade para, em relação à matéria em questão, exercer o seu direito de defesa, contraditando-a e/ou esclarecendo-a nos termos que por bem entendesse.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 827/2016
(Autos de Recurso Extraordinário de Revisão da Sentença)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os restantes sinais dos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de revisão, alegando, em síntese, que verificado estava o condicionalismo do art. 431°, n.° 1, al. d) do C.P.P.M.; (cfr., fls. 2 a 5 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo correu os seus termos, e oportunamente, pelo Mmo Juiz do T.J.B. foi elaborada a informação a que alude o art. 436° do citado C.P.P.M.; (cfr., fls. 29 a 30).
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Remetidos os autos a este T.S.I., foram os mesmos a vista do Exmo. Representante do Ministério Público que juntou o douto Parecer de fls. 39 a 39-v.
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Colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Vem o ora recorrente pedir a revisão do Acórdão do Colectivo do T.J.B. de 22.04.2016, proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-15-0397-PCC, com o qual foi condenado pela prática como autor material e em concurso real de 9 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004, na pena parcelar de 5 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 122 a 127-v).
Porém, da reflexão que sobre a pretensão apresentada nos foi possível efectuar, afigura-se-nos que nenhuma razão lhe assiste.
Vejamos.
Como é sabido, em regra, o “trânsito em julgado” de uma decisão faz “esquecer” os vícios de que padece, (“auctoritas rei judicatae prevalet veritati”).
Nas palavras do Prof. Eduardo Correia, “verdadeiramente …, o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade material, eis assim o que está na base do instituto” do caso julgado; (in, “Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, pág. 302).
Como salienta J. Alberto Romeiro – em artigo intitulado “A Valorização da Magistratura pela Revisão” – “uma justiça que reconhece os próprios erros e se corrige, que não os procura manter e defender com formulas vãs, é uma justiça edificante, que só confiança poderá inspirar”; (in, Scientia Jurídica, Tomo XVII, nºs 92/94).
Por sua vez, como ensinava o Prof. Cavaleiro de Ferreira: “a justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações. O direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade de decisões judiciais”; (cfr. “Revisão Penal” in, Scientia Jurídica, Tomo XIV, n.° 75-76).
Considerava ainda o referido autor que: “a resignação forçada perante a necessidade de dar valor definitivo à sentença judicial não equivale a desconhecer a sentença injusta e a proclamar uma misteriosa transubstanciação em ordem jurídica de todos os erros jurisprudênciais, como se de nova e contraditória fonte de direito se tratasse. É melhor aceitar como ónus da imperfeição humana, a existência de decisões injustas, que escondê-las, para salvaguardar um prestígio martelado sobre a infalibilidade do juízo humano e sob a capa de uma juridicidade directamente criada pelos tribunais”; (in “Curso de Processo Penal” III, ed. da AAFDUL, 1957, pág. 37).
No mesmo sentido afirma também o Prof. F. Dias: “embora a segurança seja um dos fins prosseguidos pelo processo penal, isto não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se podia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos, tem de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania”; (in “Direito Processual Penal”, pág. 44).
Era, igualmente, o Prof. A. dos Reis, (citando Mortara), de opinião que:
“Quanto mais evolui a consciência jurídica dum povo culto, mais se difunde a convicção de que é legítimo corrigir erros, cobertos embora pelo prestígio do caso julgado, mas que não devem subsistir, porque a sua irrevogabilidade corresponderia a um dano social maior do que a limitação feita ao mítico princípio da intangibilidade do caso julgado”; (in “C.P.C. Anot.”, vol. VI, pág. 337).
Nesta linha de raciocínio, teve também esta Instância oportunidade de afirmar, que “o instituto da revisão visa estabelecer um mecanismo de equilíbrio entre a imutabilidade de uma decisão transitada em julgado e a necessidade de respeito pela verdade material. Reside na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos, sacrificar a intangibilidade do caso julgado por imperativos de justiça, de forma a que se possa reparar uma injustiça e proferir nova decisão”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 03.05.2001, Proc. n.° 60/2001, de 21.02.2002, Proc. n.° 207/2001, de 15.05.2014, Proc. n.° 193/2014 e de 28.01.2016, Proc. n.° 773/2014).
De facto, como considera Amâncio Ferreira perante análogo expediente no âmbito do Processo Civil:
“Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza.
Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio.
A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª ed. pág. 333).
Dito isto, e clarificada que parece estar a “razão de ser” do “recurso de revisão” em questão, continuemos.
Pois bem, o presente “recurso extraordinário de revisão” comporta 3 fases: uma “preliminar”, onde se processa, instrui e se informa sobre o peticionado pelo recorrente, (e que, no caso, foi a que ocorreu no T.J.B.), outra “intermédia”, onde se aprecia e decide do pedido (de revisão), (e que é a que agora nos ocupamos), e, a “final”, para efectivação do novo julgamento no caso de ser aquele autorizado.
Encontrando-nos na “fase intermédia” e competindo-nos emitir o apelidado “juízo rescindente”, decidindo pela “autorização” ou pela “denegação” da pretendida revisão, detenhamo-nos na apreciação da pretensão do ora recorrente.
Nesta conformidade, mostra-se útil aqui transcrever o teor do art. 431° do C.P.P.M., o qual, estatuindo (taxativamente) os pressupostos para a revisão, prescreve que:
“1. A revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
2. Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3. Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4. A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida”; (sub. nosso).
“In casu”, da análise a que se procedeu, confirma-se que preenchido está o requisito do “trânsito em julgado” da decisão objecto do presente recurso.
E, então, que dizer?
Ora, como se referiu, invoca o recorrente a “al. d)” do transcrito art. 431° do C.P.P.M..
E, como deixamos adiantado, verificado não está o aí preceituado.
Com efeito, em sede do seu recurso, limita-se o recorrente a alegar – em síntese – que por ser residente do Interior da China não conhecia a(s) Lei(s) de Macau, que por ter poucos estudos, foi enganado e iludido por terceiros, e, no fundo, que agiu “sem dolo” e “desconhecendo que a sua conduta era proibida e punida pela Lei de Macau”.
Como é bom de ver, (e cremos que “entra pelos olhos dentro”), tal tipo de alegação não satisfaz (minimamente) o preceituado no dito art. 431°, n.° 1, al. d) do C.P.P.M., já que, independentemente do entendimento que se venha a ter sobre o alcance e sentido do estatuído quanto aos ali mencionados “novos factos ou meios de prova”, não se vislumbra como dar por existentes “graves dúvidas sobre a justiça da condenação” cuja revisão se pretende.
É que, no caso dos autos, o ora recorrente foi detido em flagrante delito e, seguidamente, apresentado ao Juiz de Instrução Criminal que, após o seu primeiro interrogatório decretou a sua prisão preventiva, nessa situação tendo acompanhado todo o processo até ao julgamento, onde compareceu, e onde se deu como “provada” a matéria que constava da acusação pública – da qual foi oportunamente notificado e em relação à qual teve oportunidade de contestar – e na qual lhe era imputada a prática do referidos 9 crimes de “auxílio”, e que tinha agido “livre, voluntária e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Perante isto, e certo sendo que à data dos factos tinha mais de 23 anos de idade, (não sendo própriamente um menor ou um adolescente), indiciada não se aprestando igualmente a sua inimputabilidade, (v.g., por anomalia psíquica), e notando-se que esteve sempre (desde o dia seguinte ao da sua detenção) assistido por Defensor Oficioso, não se vê pois como pretender-se, agora, (tentar) anular (ou inverter) “matéria de facto” (dada como provada) respeitante ao “elemento subjectivo” do tipo de crime pelo qual foi acusado, julgado e condenado.
Com efeito, tratando-se de “factos pessoais”, do (seu) “foro subjectivo”, em relação aos quais, depois de acusado, pôde contestar e esclarecer, e após audiência de julgamento, em que o próprio recorrente esteve presente e em que assistido por Defensor teve (novamente) ampla e total possibilidade de contraditar e prestar os esclarecimentos que por bem entendesse, cabe pois, face ao ora alegado, consignar que evidente se nos apresenta que verificado não está o pressuposto do art. 431°, n.° 1, al. d) do C.P.P.M., mostrando-se-nos mesmo de considerar o peticionado “manifestamente improcedente”, impondo-se decisão em conformidade.
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Por fim, cabe dizer o que segue:
Como atrás se disse, o presente recurso – como o próprio termo o diz, “extraordinário” – constitui uma “válvula de segurança” que permite a correcção de (eventuais) “erros judiciais” existentes numa decisão já transitada em julgado e, por isso, insusceptível de recurso ordinário, assegurando-se, desta forma, o respeito do direito que a todos deve ser reconhecido de contestar uma “condenação – que considere – injusta”.
Porém, (como em tudo na vida), há limites, e não pode valer tudo, cabendo notar que a situação dos autos se nos apresenta muito próxima de uma “litigância de má-fé”; (cfr., art. 385° do C.P.C.M.).
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar a peticionada revisão.
Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs, e, pela manifesta improcedência do pedido, a sanção correspondente a 8 UCs; (cfr., art. 438° do C.P.P.M.).
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada mais vindo aos autos, proceda-se à sua devolução ao T.J.B., com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 01 de Dezembro de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 827/2016 Pág. 16
Proc. 827/2016 Pág. 15