Processo n.º 708/2016
(Recurso cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 1/Dezembro/2016
ASSUNTOS:
- Acidente de trabalho; nexo de causalidade entre o evento e as lesões
- Local de trabalho; cobertura do acidente em Hong Kong
SUMÁRIO :
1. Se o sinistrado, no âmbito da sua relação laboral e obedecendo a instruções da entidade patronal, se desloca a um a um evento em Hong Kong, carregando um peso de mais de 10 Kg e por causa desse transporte sofre determinadas lesões e uma incapacidade temporária, não se comprovando que essas dores e e lesões foram causadas por uma outra doença de que padecia, comprova-se, no quadro desenhado nos autos, uma situação integrante de um acidente de trabalho.
2. A seguradora não deixa de ser responsável nos termos do contrato de seguro por esse acidente, ainda que as dores tenham surgido em Hong Kong, se a actividade aí desenvolvida ainda se insere na relação jurídico-laboral contraída em Macau e se o contrato contém cláusula expressa prevendo a ocorrência de acidente no Exterior.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 708/2016
(Recurso Civil)
Data : 1/Dezembro/2016
Recorrente : - A Insurance Co. Ltd.
Recorrido : - B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. A Insurance Company Limited, requerida nos autos acima e à margem cotados, e neles mais bem identificada, vem, interpor recurso, com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo, da sentença proferida em 29 de Junho de 2016, apresentando a seguinte MOTIVAÇÃO DE RECURSO, em síntese:
1 - A ora recorrente insurge-se com a consideração efectuada na douta sentença recorrida de que o ocorrido ao A. em 25 de Novembro de 2015 se possa considerar um acidente de trabalho.
2 - Pois, na verdade, as dores lombares sofridas por este ocorreram unicamente em virtude de o mesmo ter já, anteriormente, uma doença crónica e uma hérnia discal lombar.
3 - Transportar 10 kilos numa mochila, durante algum tempo, não faria nenhum adulto saudável ter dores lombares.
4 - O facto de o A. ter sofrido dores com tal procedimento significa que ele já padecia de um problema médico e que foi esse problema médico anterior a única causa da lesão mencionada nos autos.
5 - Sem conceder, sempre se dirá que a recorrente não é responsável pelo ressarcimento da indemnização atríbuida ao A. pois a apólice contratada não cobre este tipo de acidentes ocorridos fora de Macau.
6 - Na verdade, o A. é trabalhador da XXX onde exerce o cargo de supervisor superior.
7 - Ficou provado que, em 25 de Novembro de 2012, o A. foi incumbido, pela entidade patronal de liderar e acompanhar uma equipa de trabalhadores da XXX Macau a uma corrida de caridade organizada pela UNICEF.
8 - Isto é, como se verifica pela matéria dada como provada, a entidade patronal enviou o A. a uma actividade social e desportiva em Hong Kong.
9 - Porém, e como decorre da apólice contratada, na cláusula relativa a actividades desportivas e Sociais/Culturais ficou acordado que: "Esta apólice estende-se a indemnizar o segurado contra qualquer responsabilidade de pagar, de acordo com a lei, qualquer compensação no caso de lesões ou morte dos seus funcionários, no exercício em Macau de actividades sociais/culturais ou desportivas, que sejam organizadas, patrocinadas ou solicitadas pelo segurado, do qual resultem lesões ou morte no exercício de qualquer destas actividades, considerando-se para o efei to os que ocorreram no decurso do exercício de funções para o empregador."
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Excelências, deve, pelas apontadas razões, ser julgado procedente o presente recurso.
2. A Magistrada do Ministério Público, junto ao T.J.B., tendo sido notificada das alegações do recurso interposto pela ré A Insurance Co., Ltd., vem, em patrocínio oficioso do trabalhador B, e ao abrigo do disposto no art 114, n.º 2, do C.P.T., apresentar as suas alegações de resposta, dizendo, em sede conclusiva:
l.) A visão pessoal da recorrente em atribuir determinados sentidos às provas produzidas não vincula o tribunal recorrido.
2.) No caso vertente, e dado os factos provados, ficou claro que o Autor não esteja praticar qualquer actividade desportiva em Hong Kong e não existe qualquer vício de interpretação da lei na sentença recorrida.
Nestes termos, e pelas razões acima expostas, o recurso ora interposto pela recorrente não mereça de provimento. Devendo o mesmo recurso julgado improcedente e mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
O Autor é trabalhador da sociedade comercial “XXX Concessionários (Macau) Limitada”, desde Outubro de 2009, sob cujas ordens, direcção e fiscalização exerce o cargo de supervisor superior. (alínea A) dos factos assentes)
- A responsabilidade, relativa a acidentes de trabalho, foi transferida para a Ré, ao abrigo da apólice nº AMC/ECI/12-60017053 (fls. 241 e ss). (alínea B) dos factos assentes)
- O A. auferia uma retribuição mensal de MOP30.284,00. (alínea C) dos factos assentes)
Base instrutória:
- Na qualidade referida em A), o Autor foi incumbido, pela entidade patronal, de liderar e acompanhar, em 25 de Novembro de 2012, a Hong Kong, uma equipa de trabalhadores da XXX Macau, que, nessa data, iria participar na corrida da caridade organizada pela UNICEF. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- Durante a deslocação, quer antes, quer após a corrida, em execução da missão de que foi incumbido, o Autor, tal como os demais participantes, teve que carregar peso, pele menos, de 10 Kg., nomeadamente dois sacos com bebidas, bem como a sua mochila onde levava bagagem pessoal e onde acondicionou de documentação relacionada com a corrida. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- Pelas 14:30 horas, quando transportava a referida mochila às costas, o A. foi subitamente acometido de dores lombares tão fortes que teve que antecipar a hora do seu regresso a Macau. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Sem conhecer melhoras, procurou tratamento clínico nos dias imediatos, tendo-lhe sido diagnosticada torção lombar aguda e hérnia discal lombar. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Nas circunstâncias referidas em 2º, advieram para o Autor as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 171 e nos elementos clínicos hospitalares e outros para que tal exame remete, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Em consequência do referido, o Autor sofreu 231 de incapacidade temporária absoluta, concretamente entre 26 de Novembro de 2012 e 14 de Julho de 2013. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- O A. teve que despender, em assistência clínica e medicamentosa, de MOP70.114 e HK$10.610. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
III – FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Se as lesões resultam de doença que o sinistrado já detinha anteriormente aos factos em que se desencadearam, estando assim em causa a caracterização do acidente como de trabalho;
- se o seguro cobre o acidente de trabalho, por alegadamente ter ocorrido em Hong Kong.
2. No que se diz respeito à primeira questão, a ré Seguradora invoca que o autor em momento anterior a este acidente, já sofria de uma doença crónica denominada "chronic subluxation of lumbar and thoracic vertebrae" resultante de uma “neurothlipsis complicated by mild spondthesis" e que foi unicamente essa doença que lhe causou as dores e padecimentos verificados nesse dia em Hong Kong, considerando que esta ocorrência não pode ser qualificada como acidente de trabalho, tal como consignado na douta sentença recorrida.
A resposta a esta questão resulta da matéria que vem provada da que não foi provada e que não se mostra impugnada.
Vejamos.
No quesito 8º perguntava-se:
“O A. teve de despender, em assistência clínica e medicamentosa, de MOP$54864,00 ?”
Resposta: “O A. teve que despender, em assistência clínica e medicamentosa, de MOP70.114 e HK$10.610.”
No quesito 9º perguntava-se:
“O A. em momento anterior ao descrito supra de 1 a 3 (factos relativos a uma deslocação a uma corrida de caridade em Hong Kong por uma equipa de trabalhadores da XXX de Macau e transporte de uma mochila com um peso entre 10 a 15 quilos e acometimento das dores lombares pelas 14:30 h do dia 25/11/2012), já sofria de uma doença crónica denominada “chronic subluxation of lumbar and thoracic vertebrae” resultante de uma ““neurothlipsis complicated by mild spondthesis" (doc. n.º 3)?”
Resposta: O que consta do teor do doc. de fls 245.
No quesito 11º. “O referido em 9º e 10º provocaram as consequências referidas supra em 6.? (Aí se perguntava: Em consequência do referido, o Autor sofreu 231 de incapacidade temporária absoluta, concretamente entre 26 de NOVEMBRO E 14 DE Julho de 2013?)
Resposta ao quesito 11º: “Não provado”
Por aqui se vê que, não obstante a doença de que o sinistrado já padecia, tal como documentada nos autos, não foi por causa disso que sofreu a incapacidade que comprovada.
Assim, os factos invocados pela ré foram considerados não provados na audiência e julgamento, o que, aliás, não se deixa de compaginar com a lógica das coisas, pois, não fora o peso carregado pelo sinistrado e não adviriam aquelas lesões.
Por outro lado, conforme o acórdão de 3 de Junho de 2016, de fls. 312 relativamente a causa das lesões sofridas pelo Autor, a convicção do Tribunal, para além dos documentos referidos, “baseou-se no depoimento das testemunhas C, D e E, sendo a primeira e a última médicos que tinham consultado e examinado o Autor logo que este regressasse de Hong Kong, segundo elas o Autor queixou de muitas dores na parte lombar depois de ter carregado materiais pesados numa missão oficial a Hong Kong. Depois do exame MRI ocorrido em 30/11/2012, verificou-se que o Autor sofria de hérnia discal lombar, o que lhe causou dores lombares fortes. Não obstante a prova de que o Autor tinha sofrido da lesão lombar em 30/7/2012, segundo a testemunha E, após várias terapias, o Autor já melhorou muito antes da sua ida a Hong Kong e também afastou a hipótese de que o Autor sofria de problema de hérnia discal lombar já em Julho. O depoimento das duas testemunhas é coerente com o teor dos documentos de fls. 30 a 77, 83 a 106, 109 a 134, 175 a 176, 245 e 246, dos quais se resulta que desde 26/11/2012, o Autor estava sujeito a consultas e terapias relacionadas com o problema da hérnia discal lombar. Por outro lado, segundo os elementos elaborados pela entidade empregadora (fls. 107 e 163), esta confirmou que o Autor foi incumbido por ela a liderar a actividade realizada em Hong Kong, e de facto, encarregou-se das bebidas e documentação com peso e padeceu de dores lombares em Hong Kong. Apreciada, em conjunto, todas as provas em análise, levou o Tribunal a acreditar que o Autor sofreu, efectivamente de hérnia discal lombar por causa de ter carregado peso no exercício das funções incumbidas pelo seu empregador numa missão a Hong Kong.”
Pelo exposto, resulta claro que a convicção do tribunal foi no sentido de que, segundo as regras da experiência e a livre apreciação, não deixou de ter uma base lógica e objectiva que não se mostra abalada.
Fica, pois, a síntese vertida na douta sentença, a propósito do nexo de causalidade entre o evento e as lesões que foram desencadeadas:
“Segundo os factos provados, o Autor deslocou-se a Hong Kong em 25 de Novembro de 2012 no sentido de prestar o serviço que lhe foi incumbido pelo empregador. Em execução de tal tarefa, o Autor teve que carregar objectos com peso mais de 10 Kg., o que lhe causou dores lombares fortes. O mesmo teve que antecipar a hora do seu regresso a Macau para procurar tratamento médico em Macau, tendo-lhe sido diagnosticada torção lombar aguda e hérnia discal lombar.
A Ré tentou a pretensão de que a torção lombar sofrida pelo Autor tinha a ver com a mesma dor sofrida pelo mesmo antes da missão de serviço, mas tal pretensão não pode ser dada como assente.
Da matéria de facto provado resulta que o Autor foi acometido de dores lombares fortes após ter carregado objectos pesados e, posteriormente, foi-lhe diagnosticada hérnia discal lombar. É razoável entender que as dores lombares do Autor foi provocadas pelos objectos pesados que carregou. Deste modo, pode reconhecer-se que existe o nexo de causalidade directo e adequado entre as dores lombares sofridas pelo Autor e o trabalho desenvolvido pelo mesmo em Hong Kong.”
Se as lesões foram desencadeadas por causa da doença pré-existente e para uma propensão para tal desfecho, essa é outra história, que podia ter sido explorada, mas o certo é que não foi objecto de indagação, nem essa eventual insuficiência foi suscitada.
Pelo que, sem mais, o recurso não deixará de improceder nesta parte.
3. Quanto à segunda questão, impugnamos a seguinte forma:
A ré invocou a irresponsabilidade no pagamento da indemnização atribuída argumentando que a apólice celebrada entre a XXX Concessionaires (Macau) Limitada e a recorrente, apenas ficaram cobertos pela mesma, o acidentes de trabalho ocorridos em actividades desportivas e sociais realizadas em Macau (Sports ans Social Activities Within Macau), recorrendo o vício da interpretação da lei.
Não tem razão o recorrente.
Desde logo os factos desencadeadores da lesão, qual seja o carregamento do dito peso, iniciou-se em Macau, tendo sido daqui que partiu a equipa de acompanhamento da referida prova da caridade.
Na verdade, o Autor não praticou actividades desportivas e sociais em Hong Kong, limitando-se a desenvolver uma actividade a partir de Macau. Conforme os quesitos provados na audiência e julgamento, o autor na qualidade do trabalhador da sociedade comercial XXX Concessionários (Macau) Limitada, desde Outubro de 2009, sob cujas ordens, direcção e fiscalização exerce o cargo de supervisor superior, foi incumbido, pela entidade patronal, de liderar e acompanhar, em 25 de Novembro de 2012, a Hong Kong, uma equipa de trabalhadores da XXX Macau, que, nessa data, iria participar na corrida organizada pela UNICEF. Durante a deslocação, quer antes, quer após a corrida, em execução da missão de que foi incumbido, tal como os demais participante, teve que carregar peso pelo menos, de 10 kg, nomeadamente dois sacos com bebidas, bem como a sua mochila onde levava bagagem pessoal e onde colocou ainda documentação relacionada com a corrida e foi nessas circunstâncias que advierem para o Autor as lesões descritas nos autos.
Não se poderá, pois, em bom rigor localizar o acidente como sendo Hong Kong, dado o desenvolvimento do esforço que terá sido continuado e produzido em diversos locais, não obstante as dores só terem aparecido em Hong Kong.
No caso vertente, o Autor foi contratado em Macau, a sua relação jurídico-laboral foi esbelecida em Macau, foi ainda neste ordenamento que aceitou e desenvolveu a sua actividade funcional, perdendo relevância o local ou locais com que esse desempenho esteja conexionado.
Não será de excluir a cobertura do acidente quando o sinistrado que seja vítima de acidentes de trabalho no exterior, ao serviço de empregador que exerce legalmente a respectiva actividade em Macau, tendo direito às prestações previstas na lei, salvo se a lei do local do acidente reconhecer ao trabalhador e sua família o direito à reparação, visto o disposto no art. 2° n.º 2 do Dec.-Lei n.º 40/95/M de 14 de Agosto, que estabelece “Os trabalhadores, contratados em Macau, que sejam vítimas de acidentes de trabalho no exterior, ao serviço de empregadores que exerçam legalmente a respectiva actividade no Território, têm direito às prestações previstas neste diploma, salvo se a lei do local do acidente reconhecer ao trabalhador e suas famílias o direito à reparação.”
O art. 3º do citado diploma não deixa de prever como acidente de trabalho o seguinte:
“Para efeitos do presente diploma, considera-se:
a) «Acidente de trabalho» ou «Acidente» — o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho.
É igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido:
(1) Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução da actividade laboral ou de serviços determinados pelo empregador ou por este consentidos;
(…)”
A responsabilidade, relativa a acidentes de trabalho do Autor foi transferida para a ré, ao abrigo da apólice n.ºAMC/ECII12-60017053/8 (fls. 241 e ss) (alínea B) dos factos assentes) e é a própria lei que já prevê, quanto ao âmbito de aplicação do apólice de seguro, a cobertura dos riscos de deslocações do Autor a locais fora do território de Macau, tanto assim que se essa deslocação for por período inferior a 15 dias, poderá ser passível de um agravamento que ficará ao critério da ré (art. 14° da Portaria n.º 236/95/M de 14 de Agosto), sendo que no caso, não se deixava de prever expressamente uma extensão para trabalho temporário fora de Macau (cfr. fls 241 e 255), não havendo dúvidas de que a actividade desenvolvida o foi no cumprimento da relação jurídica de vinculação laboral, no cumprimento de instruções dimanadas da entidade patronal do sinistrado.
Razões por que, ainda aqui, o recurso não deixará de improceder.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 1 de Dezembro de 2016,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
708/2016 14/14