Processo nº 450/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 17/Novembro/2016
Assunto: Interesse processual
Rectificação do registo
SUMÁRIO
1. Ao abrigo do artigo 72º do Código de Processo Civil, há interesse processual sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais, consistindo esse interesse na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
2. Segundo o nº 2 do artigo 73º do CPC, nas acções constitutivas, há sempre interesse processual sempre que o efeito jurídico visado não possa ser obtido mediante simples acto unilateral do autor, e considerando que a rectificação do registo tem por objectivo obter modificação duma situação jurídica já existente, a qual só podendo ser efectuada mediante o acordo de todos os interessados ou, não o havendo, por meio de rectificação judicial, pelo que neste caso há interesse processual.
3. O registo é inexacto quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade (artigo 19º).
4. Segundo o alegado pelas requerentes, os proprietários inscritos nunca se casaram, mas ficou registado como casados no regime da comunhão de adquiridos.
5. Se isso for verdade, estamos perante uma situação de inexactidão do registo, inexactidão essa que não resulta da desconformidade com o título, pois o registo foi feito com base nos elementos do próprio título, mas provavelmente proveniente de deficiência deste, na medida em que alguns dos elementos constantes do próprio documento que serviu de base ao registo não corresponderiam à realidade.
6. Segundo o disposto no nº 1 do artigo 114º do CRP, “os registos inexactos e os registos indevidamente lavrados podem ser rectificados por iniciativa do conservador ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito.”
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 450/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 17/Novembro/2016
Recorrentes:
- A e B (Requerentes)
Objecto de recurso: Despacho que indeferiu liminarmente o pedido de rectificação do registo
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A e B, com os sinais dos autos, deduziram o processo de rectificação judicial prevista nos termos do artigo 121º do Código de Registo Predial, pedindo que seja rectificado o registo de aquisição da fracção autónoma “D1”, no sentido de ficar a constar que no tocante ao estado civil, os proprietários inscritos, C e A, eram solteiros e que a quota adquirida era 1/2 para cada um e não casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos.
Em sede de despacho liminar, o Juiz a quo indeferiu liminarmente o pedido, por duas ordens de razões: inexistência de interesse substancial dos requerentes ao socorrerem-se desta acção, na medida em que ambos são únicos titulares do imóvel por morte de C; e falta de verificação dos pressupostos previstos no artigo 116º e seguintes do Código de Registo Predial.
Inconformadas, dela recorreram os requerentes jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“1. 原審法院主要認為有關登記之繕立與憑證相符,故不適用《物業登記法典》第116條及續後條文之規定去更正有關登記,基於兩名上訴人並無實質利益提起該訴訟,故駁回兩名上訴人之聲請(見卷宗第68頁及背面,有關內容在此視為完全轉錄)。
2. 在保持充分的尊重下,上訴人實在未能認同原審法院的見解,正如上訴人在起訴狀中所述,C在有關單位的買賣公證書及意定抵押公證書中均聲稱其與第一上訴人“casados no regime da comunhão de adquiridos”,致使物業登記局在有關登記中登記業權人C及第一上訴人之婚姻狀況為“已婚”,財產制度為“取得共同財產制”。事實上,C與第一上訴人之間並不存在婚姻關係,該等已婚聲請是錯誤的。
3. 的確,涉案的登記是與相關的憑證相符,然而,因相關的憑證中有關當事人婚姻狀況與事實不符,導致該等憑證本身是一錯誤的憑證,繼而引致以該等錯誤憑證作為登記依據的登記亦是錯誤的。
4. 中級法院第809/2014號合議庭裁判已提及過公證員根據當事人所聲稱的財產制度而在買賣公證書記載的婚姻財產制度並不具有完全的證明力,茲因相關買賣公證書內所載的婚姻財產制度只是因應當事人的聲明而記載,因此,該公證書所能證明的只是彼等曾作出該聲明,並不代表有關聲明是正確無誤的。
5. 針對該等公證書的不準確地方,兩名上訴人曾按《公證法典》第140條第2款、第141條h項及i項,以及第142條第1款及第二款e項之規定,向有關的私人公證員要求更正該等不準確的地方,然而,該等公證員根據同一法典第17條拒絕作出有關行為。
6. 澳門司法事務司於1998年2月出版的由物業登記局局長Vicente João Monteiro撰寫之《澳門物業登記概論》一書第112頁:“關於不規則登記也可分為兩種情況:a) …… b) 有的登記雖與憑證相符,卻仍存在遺漏或不準確之處,但尚未構成登記無效的原因(例如一個人在購入某項物業時為已婚,但公證書中誤寫為未婚)。這種影響登記事實內容的不規則之處並非登記的錯誤,而是由登記的憑證所引致的。依照《物業登記法典》第82條第2款的規定,這些情況也可按第229條及後續條文所訂的程序作更正。”
7. 可見,兩名上訴人現在僅能依據《物業登記法典》第121條之規定向法院要求司法更正登記。
8. 基於此,兩名上訴人具有提起此訴訟的必需性。
9. 另一方面,正如起訴狀第5至7條所述,C於2014年5月13日死亡,第二上訴人為C與第一上訴人共同所生之女兒,以及透過《確認繼資格公證書》,第二上訴人被確認為死者C的合法繼承人。
10. 可見,兩名上訴人具有正當性提起此訴訟。
11. 此外,兩名上訴人在物業登記局更正登記申附件一及二均能證明C與第一聲請人不存在婚姻關係,該證明具完全證明力。
12. 儘管物業登記局局長在相關意見書中第9點表示上訴人並沒有附入第一上訴人及C的出生登記證明第一上訴人及C的民事狀況,因為其可能在澳門以外的地方締結婚姻。
13. 針對此情況,兩名上訴人於起訴狀第10條至第13條已清楚解釋,於2000年4月17日,C與D於中國締結婚姻,於2012年2月10日,C與D向民事登記局申請兩願離婚,於2012年3月23日,民事登記局局長作出批准離婚決定。
14. 從上述事實可見,若於1999年2月10日C與第一聲請人是存在婚姻關係的話,C是不可能於2000年4月17日與另一名女子D於中國締結婚姻,因為眾所週知,此為重婚,為一刑事罪行。
15. 此外,於2012年3月23日,C與D已離婚,於2013年6月14日時,C與第一聲請人亦不可能存在婚姻關係,因有關的婚姻登記上並沒有兩人結婚之登記。
16. 唯一的結論是於簽訂相關的公證書時,C與第一上訴人根本不存在婚姻關係,其已婚聲明是錯誤的。
17. 再者,C與第一上訴人並非在本澳出生,故本澳民事登記局根本就沒有C與第一上訴人的出生登記證明。
18. 此外,有必要指出,相關之利害關係人,即第一聲請人及第二聲請人均同意更正有關單位之物業登記。
19. 基於此,應根據《物業登記法典》第121條、第122條及續後條文之規定,更正上述不動產所有權人之婚姻狀況。”
Concluem, pedindo que se conceda provimento ao recurso com a consequente revogação do despacho recorrido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão da primeira instância:
“No presente caso, independentemente da falta de razão da rectificação e pelos fundamentos expostos pelo Sr. Conservador e que fazemos nossos “brevitatis causa”, o que é facto constatável é a inexistência de interesse substancial dos requerentes ao socorrerem-se desta acção.
É que face ao alegado são ambos únicos titulares do imóvel por morte C à data divorciado.
Se assim é, comporão como entenderem os seus direitos, por estarem de acordo.
Não vemos pois razão de substância para accionar o mecanismo em causa.
Não obstante sempre se dirá que, em face dos elementos disponíveis resulta que o registo se encontra concretizada em conformidade com o título que lhe serviu de base, não se enquadrando a rectificação pretendida nos termos do art. 116º e seguintes do CRP.
Desta sorte, por não existem interessados para que se cumpra o disposto no art. 123º, n.º 1 do CRP, proferindo-se de imediato decisão, indefere-se o recurso.
Custas pelos requerentes.
Notifique.”
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Referiu-se na decisão recorrida que não há interesse substancial dos requerentes ao socorrerem-se desta acção.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos o contrário.
Ora bem, o que estaria em causa é a (in)existência de interesse processual ou interesse em agir, concebido como pressuposto processual referente às partes.
De acordo com o artigo 72º do Código de Processo Civil, há interesse processual sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais.
Esse interesse consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.1
O fundamento para conceber o interesse processual como pressuposto processual contende com o objectivo de evitar acções inúteis, pois se a lei proíbe a prática de actos inúteis, por maioria de razão proibirá acções inúteis.
Segundo o nº 2 do artigo 73º do CPC, nas acções constitutivas, há sempre interesse processual sempre que o efeito jurídico visado não possa ser obtido mediante simples acto unilateral do autor.
Considerando que a rectificação do registo tem por objectivo obter modificação duma situação jurídica já existente, a qual só podendo ser efectuada mediante o acordo de todos os interessados ou, não o havendo, por meio de rectificação judicial, pelo que neste caso há interesse processual conforme o previsto na lei.
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Em segundo lugar, entende a decisão recorrida que face aos elementos disponíveis resulta que o registo se encontra concretizado em conformidade com o título que lhe serviu de base, daí não se enquadrando a rectificação pretendida nos termos do artigo 116º e seguintes do Código de Registo Predial.
Vejamos.
Está em causa um pedido de rectificação judicial do registo cujo regime está previsto nos termos do artigo 114º e seguintes do Código de Registo Predial.
De um modo geral, as irregularidades e deficiências do registo estão qualificadas, conforme a sua gravidade, como inexistência, nulidade ou inexactidão do registo.
A inexistência é o vício mais grave e que está prevista nos artigos 15º e 16º do Código, podendo ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial, não produzindo o registo, digamos inexistente, quaisquer efeitos.
E são causas de nulidade do registo as previstas no artigo 17º, enquanto o registo é inexacto quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade (artigo 19º).
Segundo o disposto no nº 1 do artigo 114º do CRP, “os registos inexactos e os registos indevidamente lavrados podem ser rectificados por iniciativa do conservador ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito.”
Segundo se refere no Parecer 73/96 elaborado pelo Ministério Público – Procuradoria-Geral da República, de 20.11.2000, publicado no Diário República, citado em termos de direito comparado e para efeitos de consulta, “a inexactidão do registo constitui, por seu lado, um vício de menor intensidade que não determine a inexistência ou nulidade. Está caracterizado no artigo 18º, nº 1, do Código do Registo Predial: “O registo é inexacto quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade.” Este conceito é novo em relação ao Código anterior e abrange o que então se designava como “erro no registo” e como “irregularidade de registo”. O primeiro caso era o da desconformidade do registo com os títulos que lhe serviram de base. Estes continham uma coisa, mas o registo publicava outra”. O registo estava errado, “não espelhando a realidade constante dos documentos, ou por simples erro de cópia, ou por erro substancial, alterando o sentido e alcance do título”. Quando a inexactidão se referia ao próprio documento que serviu de base ao registo não era este que se podia dizer errado. Errado[…] estava o título, não o registo. A esta anomalia do documento correspondia, pois, o conceito de “irregularidade do registo”.”
Como observa Mouteira Guerreiro2, “no que respeitam às deficiências dos títulos, não obrigam à prévia emenda destes, ou seja, não há, portanto, no registo predial, motivo para obrigar os interessados a proceder à rectificação dos títulos (v.g. escrituras públicas) para só depois se rectificar o registo. Esse é um procedimento injustificado à face do actual C.R.P. O registo pode (deve) ser rectificado independentemente do título, isto é, mesmo que este o não tenha sido.”
Ora bem, estamos em causa nos presentes autos um processo de rectificação do registo, pedindo as requerentes que ficasse a constar, no tocante ao estado civil, os proprietários inscritos, C e A, eram solteiros e que a quota adquirida era 1/2 para cada um e não, como constava do registo, casados um com o outro no regime da comunhão de adquiridos.
Segundo o alegado pelas requerentes, os proprietários inscritos nunca se casaram, mas ficou registado como casados no regime da comunhão de adquiridos.
A nosso modesto entender, se isso for verdade, estamos perante uma situação de inexactidão do registo, inexactidão essa que não resulta da desconformidade com o título, pois o registo foi feito com base nos elementos do próprio título, mas provavelmente proveniente de deficiência deste, na medida em que alguns dos elementos constantes do próprio documento que serviu de base ao registo não corresponderiam à realidade.
Dispõe-se no nº 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial que “as inexactidões provenientes de deficiência dos títulos só podem ser rectificadas com o consentimento de todos os interessados ou por decisão judicial, desde que as deficiências não sejam causa de nulidade.”
Não sendo possível obter o consentimento dos interessados, por que um deles já faleceu, não resta outra alternativa senão accionar-se por via de rectificação judicial.
No mesmo sentido foi decidido no Acórdão deste TSI, no Processo nº 35/2013:
“Como é sabido, o procedimento de rectificação judicial visa, como o próprio nome indica, corrigir os erros do registo, erros esses que podem resultar tanto da desconformidade com o título como da deficiência do mesmo (artº115° e 116° do C.R.P.).
No caso em apreço, não se verifica, como bem referiu a sentença recorrida, qualquer inexactidão do registo proveniente da desconformidade do título, já que do título que serviu de base do registo (certidão da respectiva sentença judicial) consta expressamente que o estado civil do adquirente é casado com D, melhor identificada nos autos, em regime de separação de bens.”
Mas já não se nos afigura correcto afirmar a inexistência de qualquer inexactidão do registo resultante da deficiência do título mesmo que ficassem provados os factos alegados pelos ora Recorrentes.
Entende-se por deficiência do título qualquer desconformidade entre a realidade material e os elementos constantes do título.
Repare-se, se provados os factos alegados pelos ora Recorrentes, o seu pai – adquirente do imóvel por usucapião – era solteiro no momento da aquisição, ficaria demonstrada a existência da inexactidão no título do registo na parte do estado civil do adquirente, ou seja, o título do registo é deficiente nesta parte por não corresponder à verdade material, o que implica a necessidade da sua rectificação. Não se trata, portanto, de uma situação de manifesta inviabilidade, pelo que não pode ser objecto de indeferimento liminar.”
Por tudo quanto deixou exposto, temos que julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo o juiz ordenar as diligencias que entender convenientes e decide sobre o mérito do pedido.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelas requerentes ora recorrentes A e B, revogando a decisão recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
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RAEM, 17 de Novembro de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 179
2 Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral, 2ª edição, pág. 102
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