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Proc. nº 737/2016
Recurso Extraordinário de Revisão
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Dezembro de 2016
Descritores:
-Instância
-Parte processual
-Sujeito processual
-Interessados incertos
-Citação edital
-Falta de citação
-Recurso extraordinário de revisão

SUMÁRIO:

I. A instância inicia-se pela propositura da acção (art. 211º, nº1, do CPC), ainda que essa propositura apenas produza efeitos (que são os do art. 401º do CPC) em relação ao réu a partir da citação (arts. 175º e 211º, nº2, do CPC).

II. O interessado incerto citado editalmente apresenta uma qualidade formal e abstracta de parte e que só assume a qualidade concreta a partir do momento em que ele intervém nos autos e assume a verdadeira qualidade de efectivo e concreto sujeito processual.

III. Quando o art. 653º, alínea c), do CPC, permite que a parte interponha um recurso de revisão, está a partir de um pressuposto implícito, que é o de que a parte processual, como sujeito do processo, interveio efectivamente na acção sem, porém, ter podido fazer uso de um documento capaz de modificar a decisão em sentido que lhe seria favorável.

IV. Quando se vier a verificar que a relação material controvertida, em vez de interessados incertos, atinge alguém certo e conhecido, e que deveria ter sido citado pessoalmente, em vez de editalmente, a situação detectada preenche a previsão da alínea f), do art. 653º do CPC.

V. A hipótese configurada em IV consubstancia a falta de citação a que se refere o art. 141º, al. c), do CPC, por se ter empregado a citação edital, em vez da pessoal.







Proc. nº 737/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, de nacionalidade chinesa, casado com B, no regime da separação de bens, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau com o n.º XXX, emitido em 13 de Dezembro de 2013, pela Direcção dos Serviços de Identificação e residente em Macau, XXX, na Taipa, por apenso aos autos nº CV2-06-0020-CAO, em que foi autora, C, ali melhor identificada, interpôs no TJB recurso extraordinário de revisão da decisão neles proferida.
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Na oportunidade, foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso.
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É contra essa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações o recorrente formula as seguintes conclusões:
«I. A Autora alegou na Acção factos relativamente a um prédio, mas forneceu aos autos a descrição predial e registou a aquisição do Prédio do seu vizinho, o ora Recorrente.
II. A Autora era conhecedora de tal incongruência, pois alegou a demolição do prédio objecto da Acção, ocorrida em 2005, vindo depois a registar um prédio urbano constituído por rés-do-chão e primeiro andar: a morada de família do Recorrente III. Pelo que resulta claro dos factos acima descritos que da citação realizada nos autos, constava a errada identificação do prédio, objecto da causa de pedir e do pedido na acção.
IV. A Autora, ora Recorrida, ofereceu aos autos uma descrição predial errada e não tomou as diligências necessárias para aferir da identidade dos verdadeiros demandados, obrigação que lhe cabia nos termos do artigo 58.º do CPC, sendo ao autor a quem compete configurar a relação material controvertida.
V. A Autora não tomou as diligências necessárias para aferir da contradição existente entre a descrição predial e o número policial constante da planta cadastral tornada definitiva em 1998.
VI. Ora, determinam as disposições combinadas dos artigos 15.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, de 17 de Janeiro, no que respeita à localização, áreas e confrontações, deve existir harmonização entre a descrição e a respectiva planta cadastral.
VII. Pelo que, não identificando correctamente o Prédio, deliberadamente ou não, os éditos para citação dos interessados incertos acabaram por identificar erroneamente o Prédio que não era, nem podia ser objecto do pedido de usucapião.
VIII. Por essa razão, exclusivamente imputável à falta de diligência, para não dizer dolo, da Autora, foi completamente vedado ao Recorrente o direito de intervir na Acção.
IX. Razão pela qual o Recorrente não poderia ter tomado conhecimento do seu interesse na acção a menos que tivesse sido citado pessoalmente para a mesma, o que não ocorreu.
X. Ora, por um lado, a incorrecta identificação do prédio gera nulidade do acto processual, pois a irregularidade influiu necessariamente no exame e na decisão da causa, conforme determina a segunda parte do n.º 2 do artigo 147.º do CPC.
XI. Por outro lado, perante a errada identificação do Prédio, o Recorrente não foi citado pessoalmente como determina a lei, existindo, ainda, falta de citação nos termos da alínea a) do artigo 141.º do CPC.
XII. Mais, determina a alínea b) artigo 141.º do CPC que há falta de citação quando tenha havido erro de identidade do citado.
XIII. O que ocorreu por via da errada identificação do Prédio, pois o Recorrente não foi correctamente demandado como seu possuidor, como o era e ainda continua a ser.
XIV. Por outro lado, o n.º 6 do artigo 180.º do CPC prevê que a citação edital tem lugar quando o citando se encontre ausente em parte incerta ou quando sejam incertas as pessoas a citar.
XV. Como já acima se deixou dito, o Recorrente não podia ter sido considerado incerto e, menos ainda, ausente em parte incerta, pois continuava, como continua, a ser legítimo possuidor do Prédio, onde então tinha a sua morada.
XVI. Como reconhece a douta decisão ora recorrida, “(N)na verdade demandaram-se interessados incertos sem que se delimitasse o interesse dos incertos (...) e tal como o recorrente alega, tem um interesse legitimador para a intervenção que o torna sujeito da relação material controvertida naquela acção” - vide fls. 158 da aludida sentença.
XVII. Acompanhando José Alberto dos Reis no Código Processo Civil Anotado, Volume VI, páginas 363 e seguintes, “a sentença formou-se sem que ao réu fosse facultado o exercício do direito de defesa; o processo, de que ela saiu, acusa anomalia muito grave: supressão do contraditório”.
XVIII. E nem se diga que a intervenção do Ministério Público na Acção veio sanar quaisquer irregularidades pretéritas, pois conforme decidiu o Tribunal de Segunda Instância no Recurso n.º 447/2008, “não estava sanada a nulidade por causa da falta de citação, com a intervenção do Ministério Público” e que a nulidade por falta de citação só fica sanada quando o Ministério Público deva intervir como parte principal, como bem determina a leitura conjugada da alínea b) do artigo 140.º com o artigo 142.º do CPC.
XIX. Tendo sido completamente omitido o acto da citação pessoal, tendo existido erro quanto à identidade dos citados, e apenas realizada a citação por éditos e anúncios, tem que se concluir que há falta de citação nos termos das alíneas a) e b) do artigo 141.º do CPC.
XX. O Recorrente veio apresentar certidão emitida pelo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais n.º 175/CM.SSVMU/2015, emitida em 28 de Outubro de 2015, que prova que a certidão predial apresentada pela Autora corresponde ao actual n.º 34 (anteriormente n.º 29), cuja posse é titulada pelo Recorrente, e não ao prédio n.º 29 (anteriormente n.º 30) sobre o qual a mesma alegou ter agido como sua proprietária e, como tal, o veio a usucapir.
XXI. Porém, entende o douto Tribunal a quo que “de modo nenhum se pode ter a certeza que a decisão seria diferente perante a certidão predial junta com a petição inicial” na Acção, e que “nem a planta cadastral definitiva de fls. 114, nem a certidão emitida pelo IACM de fls. 109 a 113 têm força probatória plena entre o n.º de polícia 20 ou 34, de 1935, e o prédio descrito na CRPredial sob(re) o n.º 4838 de cuja descrição não consta o elemento identificativo confrontações.”
XXII. Ora, nos termos do artigo 28.º do Código do Registo Predial (CRP), a alteração da numeração policial dos prédios deve estabelecer-se oficiosamente, cabendo aos serviços camarários definir aquela correspondência, competência do actual Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais ao abrigo da alínea 4) do artigo 38.º do Despacho do Chefe do Executivo n.º 2/2002.
XXIII. Constituindo, por isso, tal certidão, documento bastante para demonstrar que os factos alegados pela Autora na Acção não correspondem ao Prédio.
XXIV. Mais, por força do artigo 14.º, bem como das disposições combinadas dos artigos 15.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, de 17 de Janeiro, conjugados com o artigo 25.º do CRP, deve existir harmonização entre a descrição e a respectiva planta cadastral no que respeita à localização, áreas e confrontações.
XXV. É também por isso que um dos elementos obrigatórios da descrição é o número e a data da respectiva planta cadastral, de acordo com a alínea f) do n.º 1 do artigo 74.º do CRP.
XXVI. Neste sentido também, o artigo 76.º do Código do Notariado que impõe que nenhum instrumento respeitante a actos sujeitos a registo predial pode ser lavrado sem que no texto se mencionem os números das descrições dos respectivos prédios na conservatória.
XXVII. Determinando, ainda, os n.os 1 e 3 do artigo 79.º do mesmo Código, que a identificação dos prédios não pode ser feita, quanto à área, localização e confrontações em contradição com a descrição e, achando-se a descrição desactualizada quanto a alguns daqueles elementos, não podem ser titulados factos sujeitos a registo sem a apresentação da respectiva planta cadastral.
XXVIII. Ora, incorre em erro o douto Tribunal a quo quando diz que não é possível apurar, perante a referida certidão emitida pelo IACM e da planta cadastral definitiva de fls. 114, tal correspondência no caso dos autos, pois as confrontações do Prédio constantes da respectiva planta cadastral correspondem às da descrição predial de fls. 276 da Acção.
XXIX. Que, quando comparadas com a planta cadastral junta como Doe, n.º 5 ao recurso de revisão, não podem resultar senão na verificação de que a descrição predial n.º 4836 corresponde necessariamente ao n.º 34 da Rua dos Clérigos, pelo menos, desde 1998, ano em que esta se tornou definitiva, tendo a acção corrido os seus termos já em 2006.
XXX. Razão pela qual se encontra cumprido o requisito da suficiência dos documentos apresentados para modificar a sentença em sentido mais favorável à parte vencida.
XXXI. Por fim, concluiu a sentença recorrida que a planta cadastral, segundo o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 3/97/M, é apenas título bastante para a identificação física dos prédios no que se refere à sua localização, áreas e confrontações e para efeito de actualização e rectificação de descrições prediais, no que se refere a elementos de identificação física, mas já não é “título bastante” para prova de correspondência entre o número de polícia e o número da descrição policial.
XXXII. O “valor jurídico das plantas definitivas”, epígrafe do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, que determina que a “planta cadastral é título bastante para a identificação física dos prédios no que se refere à sua localização, áreas e confrontações.” no seu n.º 1 e, no seu n.º 2, diz que “a planta cadastral definitiva é igualmente título bastante para efeitos de actualização e rectificação de descrições prediais”.
XXXIII. Não se pode admitir que a leitura dos dois preceitos seja feita de modo a concluir que a planta cadastral é título bastante para identificação física dos prédios apenas para efeito de actualização e rectificação de descrição predial, como parece inferir-se da leitura da sentença recorrida.
XXXIV. Ou que esta não é título bastante para provar a correspondência entre o número policial e o número da descrição predial.
XXXV. É que a localização do prédio incluiu obrigatoriamente o seu número policiai, como consta da própria planta cadastral.
XXXVI. Se assim não se entendesse, teria que se concluir que a planta cadastral também não é suficiente para a identificação da situação do Prédio quanto à toponímia, nomeadamente da freguesia ou da rua onde se encontra.
XXXVII. Acresce que, nos termos da alínea b) do artigo 4.º do mesmo diploma, as plantas devem conter, para além do número de cadastro, a situação do prédio por referência à freguesia, bem como ao lugar e confrontações ou à rua e numeração policial.
XXXVIII. Repita-se, o artigo 14.º é prova bastante da localização do prédio quanto à sua toponímia e quanto ao seu número policial, como bem se retira do n.º 3 daquele artigo que determina que nos títulos respeitantes a factos sujeitos a registo predial, a identificação dos prédios não pode ser feita em contradição ou desarmonia com a planta cadastral definitiva no que se refere aos elementos da localização, árias e confrontações.
XXXIX. E nem se pode dizer que a certidão do IACM não é título bastante para determinar a correspondência entre o anterior n.º 29 e o actual n.º 34 da Rua dos Clérigos, pois é aos serviços camarários que compete a atribuição e emissão de certidão do número policial, nos termos e ao abrigo da alínea 4) do artigo 38.º do Despacho do Chefe do Executivo n.º 2/2002.
XL. Pelo que, andou mala douto Tribunal a quo quando em violação clara dos artigos 14.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, dos artigos 25.º e 28.º do CRP, bem como da alínea 4) do artigo 38.º do Despacho do Chefe do Executivo n.º 2/2002, quando decidiu que os documentos apresentados pelo Recorrente não são suficientes para, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 653.º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o 'presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a douta sentença de fls. 281 a 286, ora recorrida, por violar os artigos 141.º e 147.º do CPC, dos artigos 14.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 3/94/M, de 17 de Janeiro, e dos artigos 25.º, 28.º e 71.º do CRP, e, ainda, bem como da alínea 4 do artigo 38.º do Despacho do Chefe do Executivo n.º 2/2002, de 8 de Janeiro, publicado no Boletim Oficial - I Série, a 14 de Janeiro, e, em consequência, substituída por outra que, dê provimento ao determine a procedência do pedido formulado pelo ora Recorrente no recurso de revisão revidendo, com as demais consequências legais, assim se fazendo a costumada Justiça!».
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A recorrida, por seu turno, concluiu a sua resposta ao recurso nos seguintes termos:
«A - Entende a Recorrida que a sentença ora recorrida não merece qualquer reparo ou juízo de censura, tendo, pelo contrário, analisado desenvolvidamente e de forma exemplar a questão que motivou o recurso extraordinário de revisão interposto, razão pela qual deverá ser integralmente mantida.
B - Sobre a alegada falta de citação do Recorrente, tudo quanto o mesmo alega sob os n.ºs 7.º a 34.º do seu recurso não passa de representação dos seus próprios argumentos.
C - No caso em apreço, analisada a acção e assim a relação material controvertida tal como configurada pela Autora e ora Recorrida, verifica-se que foi feita a citação da Região Administrativa Especial de Macau, na qualidade de proprietária do domínio directo, devidamente representada pelo Ministério Público, bem como dos Interessados Incertos.
D - Em causa nos presentes autos está a aquisição, por usucapião, do domínio útil incidental sobre o prédio n.º 29 da Rua dos Clérigos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4836.
E - No caso, é patente que a Recorrida invocou e demonstrou o trato sucessivo relativo à fracção sita na Rua dos Clérigos, n.º 29, que nenhuma relação tem com o trato sucessivo invocado pelo Recorrente: enquanto a Recorrida alegou e demonstrou que adquiriu a posse do domínio útil do referido prédio por a ter adquirido de E, o Recorrente invoca um trato sucessivo que deriva de D, ignorando a Recorrida qualquer relação do prédio em questão com D.
F - Não existindo qualquer titular inscrito do domínio útil do prédio, a Recorrida não tinha como ou porquê de ter proposto a acção contra D ou contra os herdeiros incertos do mesmo, onde se incluirá o ora Recorrente.
G - Donde, da análise da relação material controvertida tal como configurada pela Recorrida, não existe qualquer relação e muito menos qualquer razão válida para que o Recorrente tivesse sido citado como Réu certo, nos termos pretendidos pelo mesmo.
H - Pelo exposto, no caso, não foi erradamente efectuada a citação edital, não se verificando o pressuposto definido na alínea f) do art. 653.º do C.P.C., pelo que deverá o presente recurso ser declarado improcedente por ausência de verificação do pressuposto da falta de citação.
I - Sobre a invocação pelo Recorrente do disposto na alínea c) do art. 653.º do C.P.C., entende a Recorrida que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação do preceito em análise, atentas as especificidades do caso em apreço.
J - Todos os documentos juntos aos autos, nomeadamente contribuições prediais, contribuição industrial, recibos de licenças municipais, etc., demonstram claramente” que o prédio cuja posse pertenceu a E era o n.º 29 da Rua dos Clérigos, ao qual sempre correspondeu a descrição predial n.º 4836.
K - Descrição essa que, por sua vez, correspondia ao artigo matricial 40381 conforme se comprova pela certidão de dados matriciais junta aos autos com a petição inicial como doc. 2, sendo que, para haver a atribuição de um número matricial tem de necessariamente existir uma descrição predial e, como referido, a certidão de dados matriciais junta aos autos atesta que o prédio com a descrição n.º 4836 e o número de polícia 29 corresponde ao artigo matricial 40381.
L - Assim, entende a Recorrida que a conclusão do Tribunal a quo é certa e assertiva, porquanto os documentos juntos aos autos pelo Recorrente não são suficientes para, por si só, e com a força da certeza necessária, pôr em causa a abundante prova documental produzida e, assim, a sentença proferida nos autos e já transitada em julgado.
M - Contrariamente ao que pretende sufragar o Recorrente no recurso ora interposto, as plantas cadastrais juntas aos autos como docs. 5 e 6 do recurso de revisão, não fazem prova plena quanto à correspondência entre o número de polícia e o número da descrição predial. Nada do que resulta do DL n.º 3/94/M, de 17/01 resulta nesse sentido.
N - Pelo exposto, entende a Recorrida que bem andou a sentença recorrida, a qual consagra uma correcta interpretação e aplicação do disposto no art. 653.º, al. f), em conjugação com os arts. 180º, n.º 6, 197.º, n.º 1 e 51.º, n.º 1, todos do C.P.C., no que diz respeito à alegada falta de citação do Recorrente, bem como do disposto no art. 653.º, al. c) do CPC, em conjugação com o disposto no art. 14.º do DL n.º 3/94/M, de 17/01, no que diz respeito à junção superveniente de documento que, só por si, fosse susceptível para alterar a decisão revidenda.».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 – Na sentença proferida no TJB no Proc. CV2-06-0020-CAO, foi dada como provada a seguinte factualidade:
«Existe um prédio com n.º 29 da Rua dos Clérigos, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 4836, a fls. 184 do Livro B21, sendo que o domínio directo do mesmo se encontra inscrito na referida Conservatória sob o n.º 284, a folhas 90 do livro FK1, a favor da Região Administrativa Especial de Macau (alínea A) dos factos assentes).
O imóvel referido em A) encontra-se inscrito na matriz predial de Macau sob o artigo 40381 com o valor matricial de MOP$2.780,00 em nome de E (alínea B) dos factos assentes).
Em data não apurada, pelos menos antes de 1978, E vendeu o prédio a F (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
E entregou-lhe o prédio (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
F passou a habitar aí (resposta ao quesito da 3º da base instrutória)
Após o falecimento de F, a Autora passou a residir sozinha no prédio em causa (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
E desde essa data efectuou obras de conservação e reparação que foram sendo necessárias e pagou essas despesas (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
Pagou as contribuições prediais que entretanto se venceram (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
Ao praticar estes actos, a Autora agiu sempre na convicção de que era proprietária do imóvel (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
À vista de toda a gente (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
Sem recurso a violência e coacção moral ou física e sem oposição de terceiros (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
A Autora esteve sempre convencida de que a sua posse não lesava direitos de terceiros (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
Em 2005, em virtude do estado de decadência do prédio, foi o mesmo demolido (resposta ao quesito da 10º A da base instrutória).
A possa da Autora passou a incidir, desde então, sobre o terreno onde o prédio se encontrava implantado e continua a ser exercida, nos mesmos termos, até hoje (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
Por escritura de 2 de Abril de 1893, o domínio útil do prédio referido em A) foi concedido ao enfiteuta identificado na inscrição n.º 284, a fls. 90 do Livro FK1, nos termos indicados na certidão de registo predial junto a fls. 271 a 275 dos presentes autos (resposta ao quesito da 12º da base instrutória).»
2 - Tal sentença, já transitada, reconheceu à ali autora C, ora recorrida, o domínio útil sobre o prédio referido na alínea A), dos factos assentes com fundamento em usucapião.
3 - Em 26/10/2012 foi registada a aquisição do domínio útil do referido prédio a favor de G, por o ter adquirido àquela através de escritura pública de 16/10/2012 (fls. 100-108 dos presentes autos).
4 - Em 24/07/2015 G requereu à Conservatória do Registo Predial o averbamento por alteração do número policial do prédio de 29 para 34, com base numa certidão emitida pelo IACM (fls. 101 dos presentes autos).
5 - Antes de 1935 o prédio com o nº 29, que estava omisso na Conservatória do Registo Predial, tinha o n. 30 (doc. fls. 109-113 dos presentes autos).
6 - Por deliberação de 11/12/1936 da Câmara Municipal das Ilhas, no âmbito da alteração geral dos números de polícia da Rua dos Clérigos, o nº 29 passou para 34 (doc. fls. 109-113 dos presentes autos).
***
III – O Direito
1 – Como fundamento para o recurso de revisão, o ora recorrente apresenta duas razões:
- Não foi citado nos referidos autos, apesar de ser legítimo possuidor do prédio com o nº 34, bem como o já tinha sido o seu pai desde 1935 até ao seu falecimento em 24/04/2010. É um fundamento que cai sob a alçada do art. 653º, al. f), do CPC.
- Está dotado de documentos capazes de fazerem modificar a decisão em sentido que lhe deva ser favorável, nos termos do art. 653º, al. c), do CPC.
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2 – O que asseverou a sentença impugnada?
2.1 - A decisão em apreço concluiu que o recorrente, ao ter sido citado editalmente como interessado incerto, adquiriu por essa via a qualidade de parte. Nessa medida, reconheceu-lhe um interesse legitimador para a sua intervenção no presente recurso extraordinário de revisão.
Contudo, discorrendo sobre a sua posição de parte, não acha que ele pudesse agora vir arguir a falta de citação (pessoal). E isto porque, se bem entendemos a argumentação, a citação edital do ora recorrente como interessado incerto (como réu incerto) o fez entrar na relação jurídica processual. Acrescenta, para finalizar, que foram citadas para a acção as pessoas que a autora indicou, sendo que o processo não dispunha de mais elementos de que o tribunal se pudesse socorrer para mandar citar pessoalmente o ora recorrente.
E por assim ser, deu por inexistente o fundamento da alínea f), do art. 653º do CPC.
*
2.2 - Entrando na análise do requisito da alínea c), do citado art. 653º, a mesma decisão chegou a uma dupla conclusão:
- O recorrente, por ter sido citado editalmente, não pôde juntar na acção os documentos agora apresentados;
- Contudo, eles não são absolutamente decisivos para fazer alterar o dispositivo decisório da sentença lavrada na acção, agora em sentido favorável ao recorrente.
*
3 - No presente recurso jurisdicional o recorrente insiste que não foi citado pessoalmente para a referida acção, o que em sua opinião dá corpo à “falta de citação” a que alude o art. 141º, al. a), do CPC e preenche a hipótese do fundamento recursivo da alínea f), do art. 653º do CPC.
Ao mesmo tempo, insurge-se contra a decisão ora sindicada, por considerar que os elementos ora juntos são claros e suficientes para inverter o sentido da decisão revidenda a seu favor.
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4 – Apreciando.
Como é sabido, a instância inicia-se pela propositura da acção (art. 211º, nº1, do CPC), ainda que essa propositura apenas produza efeitos (que são os do art. 401º do CPC) em relação ao réu a partir da citação (arts. 175º e 211º, nº2, do CPC).
Ora, a citação pode ser pessoal (art. 180º, nºs 1 e 2) ou edital, esta aplicável, entre outras situações, no caso de serem incertos os interessados a citar (art. 180º, n. 1 e 6 e 182º, do CPC).
Posto isto, a figura de interessado incerto representa uma noção abstracta e dogmática de parte processual a partir do momento em que é citado dessa maneira e enquanto tal: é réu na acção em que é demandado. É parte no sentido em que a relação processual se estabelece entre o autor e ele (a mesma relação processual pode ser plural e abranger outros réus conhecidos e citados pessoalmente, e tal foi o caso).
Contudo, só o próprio interessado que possa vir a ser afectado com a decisão desse processo é que pode arrogar-se essa qualidade concreta, uma vez que o autor (quando está de boa fé) e o tribunal desconhecem as pessoas capazes de reunirem todas as características específicas que as tornem interessados efectivos. Pode, portanto, haver um universo maior ou menor de pessoas que podem vir ao processo defender a sua posição jurídica ou o seu direito subjectivo, só que o tribunal não as conhece em virtude de o autor as ignorar também e por isso as não demanda com a indicação da sua identidade. De modo que a reunião da qualidade abstracta com a qualidade concreta de parte processual só se verifica no momento em que ele vai ao processo assumir a posição de sujeito do processo.
O conceito de parte a atribuir ao interessado incerto é aqui tomado, em suma, numa óptica formal, o que significa que não deixa de ter essa qualidade formal de parte processual mesmo quem não é sujeito da relação material litigiosa e controvertida. Ou seja, é parte mesmo sem ser necessário que de antemão se saiba que o direito material exista realmente na esfera de cada um dos interessados (A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, reimpressão, pág. 107, nota 1).
Acontece que, quando o art. 653º, alínea c), do CPC, permite que a parte interponha um recurso de revisão, está a partir de um pressuposto implícito, que é o de que a parte processual, como sujeito do processo, interveio efectivamente na acção sem, porém, ter podido fazer uso de um documento capaz de modificar a decisão em sentido que lhe seria favorável. Ou seja, tem por imanente a ideia de que o réu foi citado (pessoalmente, por exemplo) e que interveio nos autos em condições de poder valer os seus direitos e interesses, defendendo-se como pôde (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, pág. 363), mas em que já depois da sentença teve acesso a um documento, o qual, se pudesse ter sido junto antes, implicaria um diferente rumo decisório.
Ou seja, este fundamento não suporta uma ideia de parte meramente formal, como é a que resulta de uma simples citação edital enquanto interessado incerto. Pela lógica das coisas, o ora recorrente só não interveio no processo na devida altura por não saber da acção, i.é., por desconhecer os próprios éditos, pois caso contrário poderia ter intervindo na respectiva acção e apresentar os documentos em referência.
Quer isto dizer, por conseguinte, que não era possível apreciar neste caso se os documentos em causa podiam ser utilizados e apreciados à sombra do art. 653, al. c), do CPC (isto sem prejuízo de os termos tomado em consideração na matéria de facto assente, mas somente para confirmarmos a legitimidade do ora recorrente, como também para firmarmos a opinião acerca da sua posição jurídica na relação material controvertida).
Assim, mesmo que por razões diferentes das invocadas na sentença recorrida, improcede o recurso quanto a este aspecto.
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5 – Vejamos agora se procede o fundamento que a sentença ora em crise julgou improcedente.
A pergunta é: Estaremos nós perante um caso em que se possa dizer ter faltado a citação do aqui recorrente naquela acção?
O art. 653º, al. f), está intimamente ligado ao art. 142º, ambos do CPC. E este preceito reza que se o réu intervier no processo sem arguir logo a sua falta da sua citação considera-se sanada a nulidade.
Alberto dos Reis sublinhava que estava ali patente a presunção iuris et de iure de que o réu só teve conhecimento do processo e da falta da sua citação no momento em que intervém, ainda que este momento esteja a grande distância do início da acção (ob. cit., pág. 384). Por este prisma, o réu pode sempre intervir invocando este argumento da falta de citação até ao trânsito em julgado da sentença.
Após o trânsito dessa sentença, fornece-lhe o legislador o meio impugnatório jurisdicional em que presentemente nos encontramos (recurso de revisão), podendo então suscitar a falta ao abrigo da referida alínea, sem que a parte contrária possa alegar que a revisão é inadmissível porque o réu teve conhecimento real da existência do processo enquanto este esteve pendente e que nele não interveio porque não quis (Alberto dos Reis, ob. e loc. cit.).
Ora bem. Quando se pode dizer que há falta de citação? São várias as circunstâncias em que a falta de citação pode verificar-se (ver art. 141º, do CPC). Interessam-nos, porém, apenas as da alínea a) e c).
Como é evidente, a da alínea a) (“quando o acto tenha sido completamente omitido”) não ocorre, pois que teve lugar a citação edital dos interessados incertos.
Quanto à alínea c), tem-se entendido que o emprego da citação edital, quando deveria ter sido pessoal, consubstancia a situação ali prevista. É o que sucede quando, por exemplo, se citam por éditos, a título de serem incertas, pessoas que são certas e conhecidas (Alberto dos Reis, ob. cit., I, 3ª ed., pág. 312).
Ora bem. A autora, ora recorrida, remeteu-se ao silêncio na petição da acção no tocante à correspondência entre o alegado número de polícia do prédio em causa (29) e o actual (34) e, também no que se refere a D ou aos seus eventuais herdeiros, o que incluiria o ora recorrente, tal como decorre dos elementos dos autos.
A este respeito vale a pena sublinhar que a resposta ao quesito 12º da BI se limitou a referir que por escritura de 2 de Abril de 1893 o domínio útil do prédio foi concedido ao enfiteuta identificado na inscrição nº 284, a fls. 90, do livro FK1, nos termos indicados na certidão de registo predial (fls. 279 dos autos principais).
E também é mister frisar a circunstância de a sentença que se seguiu ao julgamento daquela matéria de facto ter referido expressamente que a autora não demandou o enfiteuta, mas que, apesar disso, isto é, apesar de reconhecer que a autora e esse enfiteuta são necessariamente os sujeitos da relação material controvertida, não havia ilegitimidade dos demandados, porque da certidão de fls. 271 a 275 - para a qual remete a resposta ao quesito 12º - “não se consegue decifrar o nome exacto do enfiteuta inscrito” (cfr. fls. 283 dos autos principais).
Entendemos, todavia, que o tribunal podia:
- Ter feito uso das suas prerrogativas inquisitivas e oficiar directamente à Conservatória e pedir-lhe a indicação de uma nova cópia da qual pudesse fazer-se uma melhor leitura do referido elemento registral.
- Pedir à Conservatória uma outra qualquer colaboração no sentido de que lhe fosse informado o nome exacto do enfiteuta. Por certo a Conservatória não teria dificuldade de leitura do referido elemento registral escrito, podendo até dispor de outros dados que pudessem levar à descoberta do nome alegadamente pouco perceptível.
- Em último caso, pedir a ajuda à Polícia Judiciária para através do departamento do Laboratório da Polícia Científica tentar alcançar a identificação do nome enfiteuta manuscrito na certidão registral com os meios próprios de que dispõe para leitura de documentos de difícil percepção (à semelhança do que, por processos de raios x, infravermelhos ou ultravioleta, se faz na descoberta de esboços ou mesmo de pinturas diferentes que existem em camadas inferiores da camada final da tela de um quadro). Os tribunais devem aproveitar a tecnologia existente em cada tempo do mundo para a colocar ao serviço da justiça.
Quanto à autora, no mínimo o que podemos dizer é que também ela não se deu ao cuidado de promover ou realizar diligência prévia no sentido de obter melhores elementos sobre o assunto antes de instaurar a acção. Uma tal omissão terá sido intencional ou dolosa por parte da autora? Se sim, estaremos perante uma formidável má fé, provavelmente com contornos de actividade criminal. Se não, tudo parece apontar para um tremendo equívoco. De qualquer maneira, o tribunal não pode ficar indiferente e deixar escapar a oportunidade de repor a verdade material e de a agasalhar com a manta da lei.
Repare-se:
Em vez de se conceder o domínio útil (se provados fossem os respectivos elementos) sobre o prédio urbano com o actual nº 29, que antes de 1935 parece que correspondia ao numero de policia nº 30, em nome de E, (fls. 29 dos presentes autos), ----
Ter-se-á concedido um domínio útil sobre um prédio com o antigo número de polícia 29, apesar de tudo levar a crer que em 11/12/1935 esse mesmo prédio urbano passou a ser o nº 34 (cfr. fls. 25 e 28 dos presentes autos) a que correspondia a descrição registral nº 4386, de que alguém era enfiteuta (fls. 273 do processo apenso).
E quem era esse enfiteuta? O recorrente diz que era D seu pai. Ora, se nos dermos ao cuidado de olhar com atenção para o documento registral de fls. 272-273, não é com grande dificuldade que se alcança que, sob um ou dois ligeiros traços de borrão numa camada superior, parece estar escrito o nome de D: nem mais, nem menos. Basta seguir as linhas de cada letra das duas palavras.
Ou seja, tudo nos encaminha para o apoio da tese do recorrente.
Mas, como é claro, ainda isso mais será de relevar se tivermos em apreço o facto alegado (a provar em sede própria) no art. 9º do articulado de revisão (fls. 5 dos presentes autos), onde se esclarece que a autora não podia desconhecer este facto se a autora e o réu, e sua família, viveram na mesma rua (bem estreita, de escassos metros de largura), uns em frente aos outros durante mais de vinte anos. Mas, como é evidente, só no momento e fase próprias do processo é que tudo isto será tido na devida ponderação e esclarecido.
Estes elementos devidamente compaginados poderão levar à revelação do tremendo equívoco de que falávamos há pouco.
Sendo assim, está certa a afirmação da sentença ora recorrida de que o recorrente faz parte da relação material controvertida (fls. 158 dos autos). Mas, então, e mais pelo que atrás se disse, deveria o recorrente ter sido citado pessoalmente para a acção, em vez de ter sido citado por éditos na qualidade de interessado incerto.
Eis, pois, como na nossa óptica está feita, “à posteriori”, a demonstração da situação prevista na alínea c), do art. 141º do CPC, o que implica a nulidade de tudo o que se tenha processado depois da petição inicial, salvando-se apenas esta (art. 140º, al. a), do CPC).
Ora, dizer isto é o mesmo que reconhecer a procedência do fundamento inscrito na alínea f), do art. 653º do CPC, o que implica a observância do disposto no art. 662º do mesmo Código.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso de revisão, em consequência do que:
- Se revoga a decisão recorrida;
- Se anulam os termos do processo CVB2-06-0020-CAO posteriores à citação edital (fls. 24 dos referidos autos), mantendo-se porém, a da RAEM, e ---
- Se determina a remessa dos autos à primeira instância a fim de se ordenar que o aqui recorrente seja citado pessoalmente como réu para os termos da referida causa.
Custas pela recorrida.
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Para os efeitos que tiver por convenientes, envie certidão do presente acórdão com nota de trânsito, ao Ministério Público, nos termos do art. 225º, nº1, al. b), do CPP.
TSI, 07 de Dezembro de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong



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