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Processo nº 814/2016
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 24 de Novembro de 2016
Recorrente: A (Ré)
Recorrido: B

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I - RELATÓRIO
  Por sentença de 30/06/2016, julgou-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou-se a Ré A a pagar ao Autor B a quantia de MOP$32,746.80, acrescida de juros moratórios à taxa legal.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
a) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
b) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
c) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
d) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
e) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
f) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3° e 9°;
g) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
h) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
i) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como "contratos de prestação de serviços";
j) Deles é possível extrair que a Sociedade "contratou" trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
k) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
l) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
m) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contra prestação de obrigações;
n) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
o) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
p) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
q) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
r) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
s) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, n° 2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest);
t) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
u) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
v) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
w) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
x) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, n° 2 e 437º do Código Civil;
y) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer "condições mais favoráveis" emergentes destes contratos;
z) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
aa) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
bb) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação;
cc) Acresce que não se provou nos autos qual o número de dias de trabalho efectivo prestados pelo A. à R.;
dd) Ao decidir no sentido em que o fez, o Tribunal recorrido incorreu em errada interpretação da estipulação dos Contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228°, n° 1 do Código Civil;
ee) Por outro lado, o contrato de prestação de serviços nº 1/1, aplicável à relação laboral do A., estipula que a atribuição de subsídios, incluindo o de alimentação, deveria ser objecto de acordo individual entre a R. e os trabalhadores em causa;
ff) Sendo que o A. nada alegou ou provou a respeito de um tal acordo;
gg) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (A)
2) Desde o ano de 1992, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior», entre outros. (B)
3) Entre 15/01/1993 e 19/02/2003, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”. (C)
4) O Autor foi recrutado pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré ao abrigo do Contrato de prestação de serviços n.º 06/93, aprovado pelo Despacho do SAEF de 29/01/93 (cfr. doc. 1). (D)
5) Posteriormente, o Contrato de Prestação de Serviços n.º 06/93 foi substituído pelo Contrato de Prestação de Serviços n.º 1/1: (E)
- aprovado pelo Despacho n.º 02420/IMO/SEF/2000, de 30/11/2000, com efeitos a partir de 15/01/2001 a 18/01/2002 (Cfr. Doc. 2);
- foi substituído pelo Despacho n.º 03010/IMO/SEF/2001, de 16/10/2001, com efeitos a partir de 18/01/2002 a 18/01/2003 (Cfr. Doc. 3);
- foi substituído pelo Despacho n.º 03487/IMO/SEF/2002, de 11/11/2002, válido até 15/01/2004 (Cfr. Doc. 4).
6) Durante todo o período da relação de trabalho, a Ré nunca atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, tendo sido remunerado pela Ré com o valor de uma retribuição diária, em singelo. (F)
7) Durante todo o período da relação de trabalho, o Autor auferiu da Ré, a título de salário anual e de salário normal diário, as quantias que abaixo se discrimina (Cfr. doc. 5, Certidão de Rendimentos – Imposto Profissional): (G)
ano
Salário anual
salário normal diário (A)
1995
41596
116
1996
58672
163
1997
55864
155
1998
56743
158
1999
58752
163
2000
55348
154
2001
42781
119
2002
37140
103
8) O Autor exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré, ininterruptamente, ao abrigo dos contratos aludidos em D) e E). (1º)
9) Resulta do Contrato de Prestação de Serviço n.º 06/93 que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir a quantia de MOP$15.00 diárias, a título de subsídio de alimentação. (2º)
10) Ao longo de toda a relação de trabalho até 19 de Fevereiro de 2003, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (4º)
11) Resulta do Contrato de Prestação de Serviço n.º 06/93 (aplicável ao Autor de 03/07/1995 a 15/01/2001), que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço. (5º)
12) Resulta igualmente do Contrato de Prestação de Serviço nº1/1, aprovado pelo Despacho 0240/IMO/SEF/2000 (aplicável ao Autor até 18/01/2002) que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço. (6º)
13) Entre 16 de Outubro de 2000 e 15 de Janeiro de 2002, nunca o Autor – sem conhecimento e autorização prévia pela Ré – deu qualquer falta ao trabalho. (7º)
14) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (8º)
15) Resulta do conteúdo dos «Contrato de Prestação de Serviço» n.º 06/93, aprovado pela DSTE, que os trabalhadores não-residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir, no mínimo, a quantia de MOP$90.00 por dia, por 8 horas de trabalho diárias, o que perfaz a quantia de MOP$2,700.00 por mês. (9º)
16) Entre Julho de 1995 e Setembro de 1995 a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$1,500.00, mensais. (10º)
17) Entre Outubro de 1995 e Junho de 1997, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$1,700.00, mensais. (11º)
18) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$1,800.00, mensais. (12º)
19) Entre Abril de 1998 e 15 de Janeiro de 2001, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (13º)
20) Entre 15 de Janeiro de 1993 e 15 de Janeiro de 2001, o Autor trabalhou em turnos de 10 horas de trabalho por dia, o que corresponde à prestação por parte do Autor de 2 horas de trabalho extraordinário por dia. (14º)
21) Durante aquele período de tempo, a Ré sempre remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$9.30 por hora. (15º)
22) Durante todo o período da relação de trabalho, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal, com excepção de 24 dias no ano 2001 e 16 dias no ano 2002. (16º)
23) A Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor o gozo de um outro dia de descanso compensatório em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal. (18º)
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III – FUNDAMENTAÇÃO
1. Da imperatividade do Despacho nº 12/GM/88 e da natureza dos Contratos de Prestação de Serviço
Sobre as questões em causa, este Tribunal já se pronunciou de forma reiterada e unânime em vários processos do mesmo género (a título exemplificativo: cfr. Procs. nºs 722/2010, 876/2010, 805/2010, 837/2010, 574/2010, 774/2010, 838/2010, 396/2012 e 322/2013, de 07/07/2011, 02/06/2011, 30/06/2011, 16/06/2011, 12/05/2011, 19/05/2011, 16/06/2011, 13/09/2012 e 25/07/2013, respectivamente), tendo concluído pela improcedência dos referidos argumentos do recurso.
Com a devida vénia e a propósito de situações iguais às que ora nos ocupam, consideramos aqui por reproduzidos os fundamentos já exarados nos arestos acima referidos, dispensando-se da respectiva transcrição, por ser uma jurisprudência já bem conhecida, especialmente por parte da Ré.
2. Das diferenças salariais, do trabalho extraordinário e do subsídio de efectividade
Com a improcedência dos argumentos do recurso referidos no ponto 1, não temos qualquer margem de dúvida em afirmar que o Autor tem direito a receber da Ré as quantias condenadas àqueles títulos.
3. Do subsídio de alimentação
Para além de invocar a ineficácia do Despacho nº 12/GM/88 e dos Contratos de Prestação de Serviço para atribuir ao Autor o direito a este subsídio (matéria esta que já foi julgada improcedente nos termos anteriores), alega ainda a Ré que:
1- A atribuição do subsídio em referência depende de uma efectividade de serviço, pelo que não estando provados os dias em que o trabalho foi efectivamente prestado, não podia a sentença tê-la condenado no pagamento de todos os dias conforme pedido pelo Autor; e
2- A atribuição do subsídio carece de um acordo individual entre as partes nos termos do Contrato de Prestação de Serviço nº 1/1, cuja existência não foi alegada nem provada nos autos.
Em relação ao segundo argumento, adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
É certo que após a vigência do Contrato de Prestação de Serviço nº 1/1, a atribuição do referido subsídio depende do acordo individual entre as partes cuja existência não foi alegada nem provada nos autos. No entanto, tal Contrato de Prestação de Serviço apenas produz efeitos a partir de 15/01/2001 (cfr. facto provado nº 5) e a condenação do pagamento reporta-se ao período entre 16/10/2000 a 15/01/2001, altura em que ainda vigorava o Contrato de Prestação de Serviço nº 06/93, segundo o qual os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam o direito de auferir a quantia de MOP$15,00 diárias, a título de subsídio de alimentação (cfr. facto provado nº 9).
Em relação ao primeiro argumento, este Tribunal tem entendido em processos congéneres no sentido de que a atribuição do referido subsídio depende da prestação efectiva do serviço (cfr. Ac. do TSI, de 25/07/2013, Proc. nº 322/2013).
No caso em apreço, não se sabe o número de dias de trabalho efectivo, mas isto não determina a absolvição da Ré tal como é pretendida, uma vez que não temos qualquer dúvida de que a Ré tem a obrigação de pagar naquele período (16/10/2000 – 15/01/2001), só que não sabemos, por falta de elementos nos autos, qual a sua quantia exacta.
Nesta conformidade e tendo em conta o disposto do nº 2 do artº 564º do CPCM, ex vi do artº 1º do CPT, a Ré deve ser condenada no que se liquidar em execução da sentença.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- conceder parcial provimento ao recurso da Ré, revogando a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$8,880.00, a título de subsídio de alimentação, passando a condenar a Ré a pagar ao Autor o montante que vier a liquidar-se em execução de sentença; e
- confirmar a sentença na parte restante.
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Custas pelas partes em ambas as instâncias na proporção do decaimento.
Notifique e D.N.
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RAEM, aos 24 de Novembro de 2016.
Ho Wai Neng
Jose Candido de Pinho
Tong Hio Fong




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814/2016