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Processo n.º 871/2016 Data do acórdão: 2016-12-7 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– auxílio à imigração clandestina
– crime de auxílio e sua consumação
– art.º 14.º da Lei n.º 6/2004
– anteriores áreas marítimas de Macau
– entrada efectiva na RAEM
– número de crimes
– art.º 2.º da Lei n.º 6/2004
S U M Á R I O
1. A jurisdição penal de Macau sobre as “anteriores áreas marítimas de Macau” tem ficado sempre avalizada por força do conteúdo do Anexo do Decreto n.º 275 do Conselho de Estado da República Popular da China, publicado no Boletim Oficial da RAEM, I Série, N.º 2, de 27 de Dezembro de 1999, mesmo antes da publicação do Decreto n.º 665 do Conselho de Estado da República Popular da China.
2. Da norma incriminadora do art.º 14.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na parte em que se diz que “Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º […]”, se retira, sob a égide do cânone de hermenêutica plasmado no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, a solução do Legislador de punir penalmente quem dolosamente, e por qualquer forma (por exemplo, por “transportar”, ou por “promover o transporte”, ou por “fornecer auxílio material”), concorrer para a entrada clandestina de outrem na RAEM, pelo que a efectiva entrada na terra da RAEM não é condição sine qua non para a consumação do crime de auxílio em questão.
3. Da leitura dos art.os 2.º e 14.º, n.o 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, não resulta que na valoração de interesses feita pelo Legislador na criação do tipo legal de crime de auxílio (à imigração clandestina), seja indiferente o número de imigrantes clandestinos “auxiliados” pelo agente do crime. Pelo contrário, obtendo cada um dos imigrantes clandestinos assim “auxiliados” o benefício de concorrer para a entrada, de modo clandestino, na RAEM, é de entender que, em prol do fim inegável de combate contra a imigração clandestina, são tantos crimes de auxílio quantos os imigrantes clandestinos “auxiliados” pelo agente.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 871/2016
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 183 a 189v do Processo Comum Colectivo n.º CR4-16-0124-PCC do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o 2.º arguido A pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de auxílio (qualificado), p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de cinco anos e seis meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos e seis meses de prisão.
Inconformado, veio recorrer esse arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a sua absolvição (dado que à falta de delimitação concreta, na data dos factos, de quais as “anteriores áreas marítimas de Macau”, o que fazia duvidar, aliás, se o sítio onde ele foi interceptado pelo pessoal alfandegário fiscalizador pertenceria ao âmbito dessas “anteriores áreas marítimas”, incorreu o Tribunal sentenciador no erro de interpretação da norma incriminadora do auxílio à imigração clandestina), ou a sua condenação apenas pela prática de um crime de auxílio qualificado à imigração clandestina (por a conduta, em causa, de transportar ao mesmo tempo quatro pessoas traduzir, quando objectivamente vista, um só acto de transportação, por um lado, e, por outro, representar, fosse como fosse, uma só resolução criminosa ou uma só finalidade na prática dessa conduta) (cfr. o teor da motivação de fls. 201 a 210 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 222 a 227v) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, emitiu o Digno Procurador-Adjunto junto deste TSI parecer (a fls. 240 a 241), pugnando pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, e vencido finalmente o M.mo Juiz Relator do presente processo recursório na solução do recurso, cumpre decidir do mesmo através deste acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos em observância do art.º 417.º, n.º 1, do CPP.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a suas fls. 183 a 189v, cujo teor integral, que inclui a fundamentação fáctica e jurídica do veredicto final condenatório aí feito, se dá por aqui intergralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo.
Desde já, da questão principal posta no recurso:
Salvo o devido respeito por toda a opinião diversa, a razão não está no lado do arguido recorrente, porquanto:
– a montante, a jurisdição penal de Macau sobre as “anteriores áreas marítimas de Macau” tem ficado sempre avalizada por força do conteúdo do Anexo do Decreto n.º 275 do Conselho de Estado da República Popular da China, publicado no Boletim Oficial da RAEM, I Série, N.º 2, de 27 de Dezembro de 1999, mesmo antes da publicação do Decreto n.º 665 do Conselho de Estado da República Popular da China;
– e, a justante, mesmo lateralmente notando, e tal como já foi veiculado no acórdão deste TSI, de 2 de Julho de 2015, no Processo n.º 571/2015, da redacção da norma incriminadora do art.º 14.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na parte em que se diz que “Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º […]”, se retira, sob a égide do cânone de hermenêutica plasmado no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, a solução do Legislador de punir penalmente quem dolosamente, e por qualquer forma (por exemplo, por “transportar”, ou por “promover o transporte”, ou por “fornecer auxílio material”), concorrer para a entrada clandestina de outrem na RAEM, pelo que a efectiva entrada na terra da RAEM não é condição sine qua non para a consumação do crime de auxílio em questão.
Dest’arte, a matéria de facto já provada e como tal descrita no texto do acórdão ora recorrido dá para sustentar sobejamente a já consumação, dentro das “anteriores áreas marítimas de Macau” (referidas no acima referencidado Anexo do Decreto n.º 275 do Conselho de Estado da República Popular da China), da conduta, penalmente relevante, de auxílio à imigração clandestina.
Resta, pois, abordar a segunda questão posta no recurso, atinente ao número de crime(s) de auxílio à imigração clandestina.
A resposta a isto também fica a descontento do recorrente, visto que sobre idêntica questão jurídica já decidiu este TSI no acórdão de 2 de Junho de 2016 do Processo n.º 210/2016, que:
Da leitura dos art.os 2.º e 14.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, não resulta que na valoração de interesses então feita pelo Legislador na criação do tipo legal de crime de auxílio (à imigração clandestina), seja indiferente o número de imigrantes clandestinos “auxiliados” pelo agente do crime de auxílio. Pelo contrário, obtendo cada um dos imigrantes clandestinos assim “auxiliados” o benefício de concorrer para a entrada, de modo clandestino, na RAEM, é de entender que, em prol do fim inegável de combate contra a imigração clandestina, são tantos crimes de auxílio quantos os imigrantes clandestinos “auxiliados” pelo agente.
Termos em que fica correctamente condenado, já em primeira instância, o recorrente pela prática de quatro (e não apenas um) crimes de auxílio (qualificado) à imigração clandestina.
Naufraga o recurso in totum, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido recorrente as custas do recurso, com quatro UC de taxa de justiça e mil e seiscentas patacas de honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 7 de Dezembro de 2016.
__________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro juiz-adjunto)
__________________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
__________________________ (Vencido, segue declaração de voto.)
José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)

Processo nº 871/2016
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Vencido, pois que, dando como integralmente reproduzido o teor do Ac. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.° 46/2016, que relatei, (e como igualmente considerei na declaração de voto que anexei ao recente Ac. de 10.11.2016, Proc. n.° 598/2016), entendo padecer o Acórdão recorrido de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, dado que o Tribunal a quo não especificou – como podia e devia – a “concreta localização” do barco conduzido pelo arguido quando visto e posteriormente interceptado pelos agentes dos Serviços de Alfândega.

Com efeito, importa atentar que o comando do art. 14° da Lei n.° 6/2004, (que pune o crime de “auxílio”), não deixa de remeter para “as situações previstas no artigo 2°”, onde definindo as pessoas em situação de imigração ilegal, considera como tal as que se encontrem na R.A.E.M., não estando autorizadas a permanecer ou residir, e as que tenham “entrado fora dos postos de imigração, (…)”.

Em relação ao “número de crimes” cometidos, e da reflexão que sobre a questão me foi possível efectuar, afigura-se-me que, na situação dos autos, e atentos os valores tutelados pela norma do aludido art. 14° da Lei n.° 6/2004 – em nossa opinião, não (tão) enfocados no interesse pessoal e particular de cada “auxiliado” à imigração, mas antes, no interesse geral da comunidade, traduzido em que a imigração se processe de forma regular e de acordo com as normas de interesse público que a regula – melhor seria uma decisão no sentido de se considerar estar-se perante uma “unidade criminosa”, e assim, que apenas se tinha cometido 1 só crime de “auxílio”.

Macau, aos 07 de Dezembro de 2016
José Maria Dias Azedo




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