Processo nº 498/2016 Data: 12.01.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “abuso de confiança”.
Crime de “burla”.
Erro notório.
Contradição insanável.
Pena.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. Só existe contradição insanável da fundamentação quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em suma, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém “posições antagónicas”, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
3. Encontrando-se as penas, parcelares e única, junto dos seus respectivos mínimos legais – a nove meses destes e a vários anos dos seus máximos – e inexistindo qualquer erro grosseiro na sua determinação, visto está que devem ser confirmadas.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 498/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “abuso de confiança (agravado)”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b) do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, e 1 outro de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do mesmo Código, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão, assim como a pagar ao ofendido B, a quantia total de HKD$115.000,00 a título de indemnização; (cfr., fls. 301 a 311-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu.
Na sua motivação de recurso e em sede das conclusões que aí produziu, assaca ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, considerando, subsidiáriamente, excessiva a pena aplicada; (cfr., fls. 322 a 344).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 346 a 352).
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Neste T.S.I., deu-se observância ao estatuído no art. 406° do C.P.P.M..
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer pugnando, também, pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 368 a 370-v).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 303 a 305-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a arguida recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “abuso de confiança (agravado)” e 1 outro de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelos art°s 199°, n.° 4, al. b) e 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., e, em cúmulo jurídico, a pena única de 3 anos e 3 meses de prisão, condenando ainda a arguida a pagar ao ofendido uma indemnização total de HKD$115.000,00.
E, como se deixou relatado, imputa à decisão recorrida os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, pedindo subsidiáriamente, uma redução da pena que lhe foi fixada.
–– Vejamos, começando pelos assacados “vícios da decisão da matéria de facto”.
Pois bem, repetidamente tem este T.S.I. considerado que o vício de “erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 22.09.2016, Proc. n.° 562/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 465/2016 e de 03.11.2016, Proc. n.° 759/2016).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016, de 22.09.2016, Proc. n.° 528/2016 e de 29.09.2016, Proc. n.° 630/2016).
Por sua vez, em relação ao vício de “contradição insanável da fundamentação”, o mesmo tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.07.2016, Proc. n.° 418/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 550/2016 e de 20.10.2016, Proc. n.° 633/2016).
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém posições antagónicas, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
No caso dos autos, e sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, não vemos como, onde ou em que termos tenha o Colectivo a quo incorrido dos ditos vícios.
A decisão em questão apresenta-se-nos em conformidade com o estatuído no art. 114° do C.P.P.M., onde se consagra o “princípio da livre apreciação da prova”, tendo o Colectivo a quo decidido (como o expôs em fundamentação) com base nos depoimentos prestados em audiência de julgamento e atento o teor dos documentos juntos aos autos, afigurando-se-nos uma decisão clara e lógica, não se vislumbrando qualquer violação às regras sobre o valor das provas tarifadas ou legais, regras de experiência ou legis artis, não se surpreendendo igualmente nela qualquer “incompatibilidade” ou “oposição”, (muito menos “insanável”), havendo assim que se julgar improcedente o recurso na parte em questão.
–– Passemos agora para a “pena”.
Antes de mais, cabe dizer que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 22.09.2016, Proc. n.° 561/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 628/2016 e de 07.12.2016, Proc. n.° 177/2016).
Como se deixou relatado, foi a ora recorrente condenada como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “abuso de confiança (agravado)”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b) do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, e 1 outro de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do mesmo Código, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, e em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão.
Como sabido é, ao crime de “abuso de confiança” em questão cabe a pena de 1 a 8 anos de prisão, e ao de “burla” a de 2 a 10 anos de prisão.
Atenta a matéria de facto dada como provada, a moldura penal em questão e o estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M., cremos que inexiste margem para qualquer redução das penas parcelares e única fixadas.
Com efeito as penas parcelares situam-se (tão só) a 9 meses dos seus respectivos limites mínimos, (encontrando-se ainda bem longe dos respectivos máximos), nenhum motivo havendo para se reduzir (e aproximá-las, ainda mais, dos ditos mínimos).
No que toca à “pena única” resultante do cúmulo jurídico, a mesma se apresenta a solução.
De facto, atento o estatuído no art. 71° do C.P.M., e confrontando-nos com uma moldura penal com um mínimo de 2 anos e 9 meses de prisão e um máximo de 4 anos e 6 meses de prisão, não se vê como considerar a pena de 3 anos e 3 meses de prisão excessiva ou inflaccionada.
Com efeito, e como decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 22.09.2016, Proc. n.° 562/2016, de 07.12.2016, Proc. n.° 177/2016 e de 13.12.2016, Proc. n.° 258/2016).
Também, recentemente, decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
Por fim, e quanto à suspensão da execução da pena, à vista está que inviável se apresenta tal pretensão, pois que a pena única é “superior a 3 anos de prisão”, aplicável não sendo o art. 48° do C.P.M..
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça de 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 12 de Janeiro de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 498/2016 Pág. 14
Proc. 498/2016 Pág. 15