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1. O arguido interpôs recurso de uma decisão do Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de Macau, que o está a julgar em primeira instância pela prática de crimes praticados no exercício de funções, nos termos da alínea 6) do n.º 2 do art. 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária.
A decisão impugnada não se refere ao fundo da causa, isto é, à absolvição ou condenação do arguido, mas apenas a matérias de ordem processual.

2. No nosso sistema jurídico o recurso é um pedido de reponderação de certa decisão judicial, apresentado a um órgão judiciariamente superior.
Em processo penal, a regra geral é a da recorribilidade das decisões judiciais. A irrecorribilidade é a excepção (art. 389.º do Código de Processo Penal).
Não obstante, há decisões em processo penal que não admitem recurso. Os arts. 390.º, 31.º, n.º 1, 128.º, n.º 7, 140.º, n.º 3, 263.º, n.º 5, 273.º, n.º 2, 292.º e 371.º, n.º 2 do Código de Processo Penal expressamente estatuem sobre decisões que não são passíveis de recurso. Mas há outros casos de irrecorribilidade, como aqueles em que a lei dispõe que a decisão é definitiva (v. g. os arts. 36.º, n.º 2, 43.º, n.º 2, 395.º, n.º 4 e 415.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

3. Das decisões proferidas pelo Tribunal de Última Instância não cabe recurso, por força de um princípio de direito processual óbvio, segundo o qual não é admissível recurso das decisões proferidas pelo tribunal supremo de uma dada organização judiciária, por não haver para quem interpor o recurso.
Na verdade, o Tribunal de Última Instância não só é o tribunal supremo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) (art. 84.º, 2.º parágrafo da Lei Básica da RAEM, doravante designada apenas por Lei Básica), como também a RAEM goza de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância (art. 19.º, 1.º parágrafo da Lei Básica).
Ora, daqui decorre que o Tribunal de Última Instância tem a última palavra nos casos que lhe sejam submetidos. As suas decisões são definitivas. Não há, portanto, recurso de nenhuma das decisões do Tribunal de Última Instância para outro órgão judicial ou político, da RAEM ou nacional, sem prejuízo de o Tribunal de Última Instância não ter jurisdição sobre actos do Estado (art. 19.º da Lei Básica) e de estar sujeito à interpretação da Lei Básica por parte do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, mas apenas nas matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a RAEM (art. 143.º da Lei Básica).
Não estando em causa nenhuma destas matérias, é evidente que as decisões do Tribunal de Última Instância são definitivas.
É certo que no caso de uniformização de jurisprudência, isto é naqueles casos em que existem duas decisões contraditórias do Tribunal de Última Instância ou quando o Tribunal de Segunda Instância contradiz uma decisão do Tribunal de Última Instância, sobre a mesma questão de direito, pode haver um recurso para o Tribunal de Última Instância. Este intervém com uma formação alargada excepcional de cinco juízes, sendo para tal chamados o presidente e o juiz mais antigo do Tribunal de Segunda Instância, que acrescem aos três juízes do Tribunal de Última Instância [arts. 44.º, n.º 2, alínea 1) e 46.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e 419.º e 425.º do Código de Processo Penal].
E compreende-se esta opção do legislador, designadamente quando as duas decisões contraditórias são do Tribunal de Última Instância. Como este é o Tribunal Supremo da RAEM prevê-se um recurso, mas ainda para o Tribunal de Última Instância, a que são chamados juízes de outro Tribunal Superior, para resolver o conflito de jurisprudência.
Mas na lei só existe esta possibilidade de um recurso de uma decisão do Tribunal de Última Instância para o Tribunal de Última Instância. E mais nenhuma. E só o legislador pode estabelecer a possibilidade de recursos e criar tribunais.

4. Nem se diga que o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aplicável em Macau por força do art. 40.º da Lei Básica, prevê sempre a possibilidade de recurso em processo penal. Não é assim, como se verá.
Dispõe o art. 14.º. n.º 5 deste Pacto:
“Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei”.
Ora, a norma só estabelece um duplo grau de jurisdição quanto às sentenças condenatórias em processo penal, mas não em relação a quaisquer outras decisões tomadas por um tribunal num processo de natureza criminal, como é o caso das decisões que o arguido pretende impugnar. É o que ensina A. RIBEIRO MENDES1: “Neste Pacto estabelece-se a garantia do duplo grau de jurisdição apenas em processo penal, quanto às sentenças condenatórias”. E também vai no mesmo sentido IRENEU CABRAL BARRETO2 em anotação a disposição semelhante, do art. 2.º do Protocolo n.º 7 Adicional à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa 3: “ O condenado em processo penal tem o direito de recorrer para um tribunal superior que examinará a declaração de culpabilidade ou a condenação; pressupõe, por isso, uma decisão condenatória, pelo que este artigo é inaplicável a um processo que não contenha uma decisão sobre o bem-fundado de uma acusação em matéria penal”.
O art. 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos é, portanto, estranho à questão da recorribilidade da decisão ora em causa, que não condenou o arguido pela prática de qualquer crime.

5. De qualquer maneira, adiantamos já, mesmo que a decisão do Tribunal de Última Instância fosse uma sentença de condenação do arguido pela prática de crime, também não seria passível de recurso pelas razões já indicadas.
As decisões do Tribunal de Última Instância são definitivas e não admitem recurso.
Em nossa opinião não há, no sistema legal da RAEM, qualquer violação do art. 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que prevê genericamente um recurso das sentenças condenatórias penais, em primeira instância.
Vejamos porquê.
Por via de regra, os tribunais superiores, o Tribunal de Última Instância e o Tribunal de Segunda Instância não julgam em primeira instância. Mas, por vezes, fazem-no [Cfr. os arts. 44.º, n.º 2, alíneas 5), 6), 7), 8), 11) e 36.º alíneas 2), 3), 4), 5), 8), da Lei de Bases da Organização Judiciária].
O legislador, ao estatuir no art. 44.º, n.º 2, alínea 6) da Lei de Bases da Organização Judiciária que o Tribunal de Última Instância é o Tribunal competente para “Excepto disposição da lei em contrário, julgar processos por crimes e contravenções cometidos no exercício das suas funções pelo Chefe do Executivo, pelo Presidente da Assembleia Legislativa e pelos Secretários”, certamente teve em conta que este Tribunal, sendo o mais elevado da Hierarquia da RAEM, tem os Juízes mais preparados e experientes, como se deve presumir. E por isso, não lhe repugnou que, decidindo em primeira instância, decide em última instância.
Por outro lado, como escrevem ANDRÉS DE LA OLIVA e MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ 4, citados por FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA5, “a primeira instância nasce com clara vocação de definitividade, inclui todas as actuações processuais que garantem a justiça da decisão, e está regulada pensando na possibilidade de ser a única que se efective”.
É que, ao contrário do que se pode pensar, o estabelecimento de uma ou mais instâncias de recurso, não tem como sua fundamentação a ideia de que se não se ganhou à primeira, vamos fazer mais uma tentativa, para ver se ganhamos. Não é disso que se trata. Ou melhor, não deve ser disso que se trata.
Como explica MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA6 “A impugnação da decisão perante um tribunal de hierarquia superior ... assenta no pressuposto de que aquele tribunal se encontra em melhores condições de apreciar o caso sub iudice do que o tribunal recorrido. Tal deve-se, entre outros factores, quer à experiência e maturidade dos juízes que o compõem, quer à colegialibilidade dos tribunais superiores, ... quer ainda à concentração dos seus esforços em aspectos específicos da causa”.
Ora, sendo o Tribunal Supremo a julgar em primeira instância, deve entender-se que, neste caso, não só se não se justifica um recurso, como em muitos casos isso não é possível, por o Tribunal não ter número suficiente de juízes. É que num caso de recurso, os juízes que julgam em primeira instância não podem intervir no recurso da sua decisão. E o Tribunal de Última Instância tem apenas três juízes, que intervêm no julgamento em primeira instância. Só uma lei absurda preveria um recurso de decisões do Tribunal de Última Instância para o Tribunal de Segunda Instância... Ora, a lei não pode ser absurda.
Por esta razão, o art. 2.º do Protocolo n.º 7 Adicional à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa, que prevê – como se viu atrás – um recurso das sentenças condenatórias em processo penal, admite no seu n.º 2 que “Este direito pode ser objecto de excepções ... quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição...”.
Trata-se de uma aplicação do principio que atrás explicitámos, segundo qual não é admissível recurso das decisões proferidas pelo tribunal supremo de uma dada organização judiciária, por não haver para quem interpor o recurso.
É certo que o art. 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos não prevê expressamente esta excepção, o que, provavelmente se deve ao facto de ser uma Convenção já de 1966, enquanto o mencionado Protocolo é bastante mais recente, de 1984, portanto, mais actualizado.
Mas isto não invalida o facto de o mencionado art. 14.º, n.º 5 ter de ser interpretado como o fazemos. Isto é, não há violação do art. 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos quando o tribunal que julga em primeira instância é o Tribunal de Última Instância.
De resto, se se considerasse que as leis da RAEM violavam este Pacto, daí não resultaria a necessidade de admitir um recurso de quaisquer decisões tomadas pelo Tribunal de Última Instância, em primeira instância, em processo penal, que a lei não prevê, mas apenas de extrair as consequências que o Direito Internacional prevê para a violação de tratados: a eventual responsabilidade internacional7.
Em conclusão, face às normas vigentes em Macau, não é possível recorrer das decisões tomadas pelo Tribunal de Última Instância, em primeira instância, em processo penal, salvo nos casos previstos na lei.

6. Apenas um comentário final, a título marginal.
Segundo certa tese, o legislador poderia e deveria aprovar uma lei para permitir o recurso das decisões do Tribunal de Última Instância, neste processo, a fim de evitar a violação do art. 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Para além de não vislumbrar qualquer violação desta norma pelas leis da RAEM, como referi anteriormente, qualquer nova solução legislativa teria de passar por um recurso para o próprio Tribunal, com uma formação mais alargada, o que implicaria chamar para intervir apenas juízes de instâncias inferiores, já que os três juízes do Tribunal e o Presidente do Tribunal de Segunda Instância estariam impedidos de intervir no recurso. O que seria, sem dúvida, uma originalidade em termos de sistemas judiciários comparados ...
Mas para além desta razão – que suponho tem algum peso - haveria, salvo melhor opinião, um obstáculo de monta.
É que o art. 22.º da Lei de Bases da Organização Judiciária estatui:
“Artigo 22.º
Proibição do desaforamento
  1. Excepto quando especialmente previsto na lei, nenhum processo pode ser deslocado do tribunal competente para outro.
  2. Nenhum processo de natureza penal pode ser subtraído ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
Trata-se da consagração do juiz natural ou do juiz legal, que proíbe a criação de tribunais ad hoc para o julgamento de processos crimes determinados ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime.
Como referem, a propósito, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA8, este princípio comporta, como dimensões fundamentais: (a) “exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca”; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa...”.
E acrescentam “Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais)”.
À luz destas ideias, parece que criação pela lei de um novo tribunal de recurso para apreciar eventuais recursos em processo penal pendente violaria o princípio do juiz legal ou natural.
Certo que a lei poderia revogar o princípio constante do art. 22.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, mas afigura-se-me que o art. 14.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, vigente na RAEM, ao dizer que “Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida ... por um tribunal competente ... estabelecido pela lei...” - e que não pode ser afastado por simples lei da Assembleia Legislativa, mas apenas pela Lei Básica, de acordo com a jurisprudência do Tribunal - proíbe a criação de tribunais ad hoc para o julgamento de casos determinados. É o que defendem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS9 quanto ao mencionado art. 14.º, n.º 1.
O mesmo entende IRENEU CABRAL BARRETO10 em relação a norma paralela não vigente em Macau (o art. 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
Ora, criar um tribunal devido a um processo pendente determinado, que teria a última palavra nesse mesmo processo crime pendente feriria, em meu entender, o mencionado 14.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

7. Pelo exposto, não admito o recurso.
   Macau, 12 de Dezembro de 2007.
   
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 A. RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa, Lex, 1994, 2.ª edição, p. 100, nota (1)
2 IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2005, p. 377.
3 O art. 2.º, n.º 1 do Protocolo é do seguinte teor: “Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei”.
4 ANDRÉS DE LA OLIVA e MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ, Derecho Procesal Civil, II, 4.ª edição, p. 534.
5 FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2000, p. 55.
6 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, 2.ª edição, p. 376.
7 NGUYEN QUOC DINH, PATRICK DAILLIER e ALAIN PELLET, Direito Internacional Público, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 204, 205, 679 e seg. e JOAQUIM SILVA CUNHA, Manual de Direito Internacional Público, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 2004, p. 703 e seg.
8 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra editora, 2007, 4.ª ed., I vol., p. 525.
9 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, I vol., p. 362.
10 IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção..., p. 161.
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12
Processo n.º 36/2007