Processo nº 142/2016 Data: 12.01.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “emissão de cheque sem provisão”.
Contradição insanável da fundamentação.
Reenvio.
SUMÁRIO
Existe contradição insanável da fundamentação quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em suma, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém “posições antagónicas”, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 142/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A MACAU S.A. (A澳門股份有限公司), assistente e demandante civil, vem recorrer do Acórdão proferido pelo T.J.B. que absolveu o arguido B da prática de 1 crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214° do C.P.M., pelo qual se encontrava pronunciado, assim como do pedido de indemnização civil enxertado nos autos.
Em sede das suas conclusões, afirma que:
“1. O objecto do presente recurso ordinário é o teor do acórdão proferido contra a ora Recorrente, constante de fls. 170 e ss. dos Autos (em diante o “Acórdão”), acórdão esse que absolveu o Arguido B (doravante o “Recorrido”) do crime de emissão de cheque sem provisão (p. e p. por via do artigo 214° do Código Penal) pelo qual vinha pronunciado, bem como determinou a absolvição do mesmo Arguido/Demandado Cível do pedido de indemnização civil contra si formulado.
2. Em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento, atendendo aos factos dados como provados e às questões de direito subjacentes ao caso em apreço, não obstante o devido respeito (que é muito) pelo Tribunal a quo, considera a ora Recorrente que este Tribunal, ao não condenar o Recorrido: a) pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, e b) no pedido de indemnização civil oportunamente deduzido pela Recorrente, violou as disposições constantes dos artigos 214° e 121° do Código Penal, bem como incorreu em contradição insanável da fundamentação, nos termos previstos na alínea c), do n.° 2, do artigo 400° do Código de Processo Penal.
3. Recorrendo às palavras do douto Tribunal de Segunda Instância, ora Tribunal ad quem: “o «vício de contradição insanável da fundamentação» apenas ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão” (cfr. Acórdão do TSI de 26/02/2009, proferido no âmbito do Processo n.° 7/2009, a título meramente exemplificativo).
4. Ora, não obstante os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, considerou este mesmo Tribunal que não se tinha provado que, aquando do preenchimento do cheque, o Recorrido já sabia que na respectiva conta não haveria fundos suficientes aquando da sua apresentação a pagamento.
5. Assim como considerou que também que não havia ficado demonstrado que o Recorrido tenha sido informado da data do preenchimento do cheque e da sua entrega ao banco sacado.
6. Motivos pelos quais o Tribunal a quo entendeu que não havia ficado provada a consciência da falta ou insuficiência de fundos na data em que o cheque efectivamente foi apresentado a pagamento.
7. Porém, em face dos factos dados como provados pelo mesmo Tribunal, tal conclusão encontra-se em contradição insanável com os mesmos.
8. No caso dos presentes Autos, de acordo com a factualidade em causa, verifica-se que se está perante um denominado “cheque em branco”, emitido pelo Recorrido a favor da Recorrente, com vista à garantia de liquidação de uma determinada quantia em dívida, cheque em branco esse que foi emitido e assinado pelo Recorrido, ao abrigo de um contrato firmado de forma livre, consciente e informada entre a Recorrente e o Recorrido, algo que foi dado como provado pelo Tribunal a quo.
9. Nos termos desse mesmo contrato, constava um pacto de preenchimento do cheque emitido e assinado pelo Recorrido, mais concretamente na sua cláusula 14ª, algo que também foi dado como provado pelo Tribunal a quo.
10. O Tribunal a quo considera como provado que o Recorrido bem sabia que era devedor da quantia ora em apreço, assim como bem sabia que havia providenciado à Recorrente um cheque em branco, como garantia do cumprimento da sua dívida, que poderia ser utilizado por esta a qualquer altura, desde que respeitado o respectivo pacto de preenchimento e o prazo de vencimento da dívida estabelecido contratualmente.
11. No caso sub judice, verifica-se que o Recorrido incumpriu a sua obrigação para com a Recorrente, pelo que esta deu cumprimento ao estabelecido entre as partes na Cláusula 14ª do contrato supra citado.
12. Atendendo aos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, outra consideração não se poderá extrair que não a de que o Recorrido sabia, de facto, que desde o momento em que emitiu o cheque em benefício da Assistente, este poderia ser legitimamente apresentado a pagamento para liquidação de quaisquer quantias que pudesse ter em dívida para com esta, pelo que não se afigura necessário que o Recorrido tivesse sido informado da efectiva data de preenchimento e de apresentação a pagamento do cheque.
13. O mesmo raciocínio vale, mutatis mutandis, no que concerne à quantia no cheque aposta pela Recorrente.
14. Motivo pelo qual, no entender da Recorrente, as conclusões em sede de matéria factual dada como provada encontram-se em contradição insanável com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
15. O n.° 1 do artigo 214° do Código Penal estatui que: “quem emitir um cheque que, apresentado a pagamento nos termos e no prazo legalmente fixados, não for integralmente pago por falta de provisão é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
16. No caso dos presentes Autos, de acordo com a factualidade em causa, verifica-se que se está perante um denominado “cheque em branco”, emitido e assinado pelo Recorrido a favor da Recorrente, com vista à garantia de liquidação de uma determinada quantia em dívida.
17. Cheque esse que foi preenchido pela Recorrente nos precisos termos do pacto de preenchimento firmado entre Recorrido e Recorrente.
18. Esse pacto de preenchimento encontra-se ínsito na Cláusula 14ª do A Macau Limited Credit Aplication – Documento 2, oportunamente junto com a queixa-crime.
19. Tanto a lei expressa, como a doutrina e a jurisprudência, univocamente convergem na existência da modalidade de cheques em branco, a serem preenchidos a posteriori, desde que o correspondente pacto de preenchimento seja respeitado.
20. O Recorrido, ao autorizar expressamente o preenchimento do valor do cheque e a respectiva aposição de data pela ora Recorrente, autorização essa que foi realizada de forma livre, consciente e informada, tendo assinado e entregue à Assistente o cheque sacado sobre o The Hong Kong and Shanghai Banking Corporation Limited, tinha perfeito conhecimento que o mesmo poderia ser utilizado pela Recorrente, nos termos do pacto de preenchimento firmado entre as partes.
21. O conceito de “falta de provisão”, contido no n.° 1, do artigo 214° do Código Penal, não encontra previsão ou concretização expressa na lei.
22. O Tribunal de Segunda Instância entendeu que: «A “falta de provisão” é um conceito normativo e pode ser integrado por quaisquer expressões com o mesmo significado, designadamente “falta ou insuficiência de fundos”, “falta de quantia disponível”, “falta de depósito disponível”, “falta de cobertura”, “conta encerrada, saldada, liquidada ou cancelada”» (cfr. Acórdão de 27.04.2012, proferido no âmbito do Processo de Recurso Penal n.° 825/2011, entre outros).
23. No caso em apreço nos presentes Autos, verifica-se que o cheque emitido e assinado pelo Recorrido foi devolvido sem que houvesse sido pago, com fundamento em “refer to drawer” (cfr. Documentos 6 e 7, juntos com a queixa-crime).
24. A menção “refer to drawer” significa, na sua tradução literal, “fazer referência ao sacador”.
25. Ora, ainda que não se consiga efectivamente determinar qual a específica causa que determinou a falta de pagamento do cheque em causa nos presentes Autos, resulta claro que a mesma teve como génese um motivo imputável ao sacador, ora Recorrido, designadamente por falta de fundos.
26. Citando novamente o douto Tribunal de Segunda Instância, mais concretamente o seu Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 464/2012: “(…) afigura-se-nos de considerar igualmente que a expressão “fazer referência ao sacador”, (de legalidade duvidosa, pois que o banco ou paga o cheque ou recusa o pagamento, informando do seu motivo), é também muitas vezes pelos bancos empregue para proteger o seu emitente em casos de “falta ou insuficiência de fundos””.
27. Considerando a construção típica ínsita no artigo 214° do Código Penal, verifica-se que o legislador concebeu este tipo de crime como sendo um crime de perigo, mais concretamente como um crime de perigo abstracto.
28. O preenchimento do elemento subjectivo do tipo em questão basta-se com a existência de um dolo genérico por parte do agente, ou seja, basta-se com a verificação da intenção do agente de praticar o facto que constitui crime, sabendo que tal facto consubstancia uma prática punível criminalmente.
29. Verifica-se que foi por motivo imputável ao Recorrido que o banco sacado não pagou o cheque, o que se demonstra através da expressão utilizada pelo mesmo: “refer to drawer”.
30. Assim sendo, no entender da Recorrente, encontra-se preenchido o elemento subjectivo do crime de emissão de cheque sem provisão.
31. Por outro lado, e recorrendo desta feita à aplicação das mais elementares regras da experiência, em face dos elementos probatórios constantes dos Autos, outra conclusão não se poderá retirar que o Recorrido sabia que tal conduta era punível criminalmente, tendo perfeito conhecimento da ilicitude do seu acto.
32. O Recorrido deverá ser considerado como responsável pelo não pagamento do cheque ora em apreço, conduta essa que, nos termos supra expostos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser subsumível à prática do crime de emissão de cheque sem provisão, nos termos e para os efeitos do artigo 214° do Código Penal, havendo lugar à qualificação da conduta típica por via da conjugação da al. a), do n.° 2, do artigo 214° e da al. b), do artigo 196° do mesmo diploma legal.
33. Do mesmo modo, em virtude dos danos causados com a sua conduta criminosa e por aplicação ao caso sub judice do artigo 121° do Código Penal, deverá ainda o Recorrido ser condenado no pedido de indemnização cível oportunamente deduzido pela Recorrente”; (cfr., fls. 300 a 328 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Respondeu o Ministério Público, pugnando pela confirmação do decidido; (cfr., fls. 333 a 336).
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Oportunamente, foram os autos remetidos a este T.S.I. onde se deu observância ao estatuído ao art. 406° do C.P.P.M..
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Em sede de vista, apresentou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer opinando também no sentido da improcedência do recuso; (cfr., fls. 366 a 367-v).
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Junto que foi o douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, procedeu-se a exame preliminar nos termos do art. 407° do C.P.P.M., prosseguindo depois os autos para visto dos Mmos Juízes-Adjuntos.
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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 293 a 294-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a assistente e demandante civil dos presentes autos recorrer do Acórdão absolutório pelo T.J.B. proferido e que atrás já se fez referência.
Em síntese, é de opinião que incorreu o T.J.B. em “contradição insanável da fundamentação” e “erro na aplicação do direito”.
–– Como nos parece lógico – pois que sem uma boa decisão da matéria de facto inviável será uma boa decisão de direito – comecemos pelo assacado vício de “contradição insanável da fundamentação”.
Pois bem, repetidamente tem este T.S.I. considerado que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.07.2016, Proc. n.° 418/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 550/2016 e de 20.10.2016, Proc. n.° 633/2016).
Em suma, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém “posições antagónicas”, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
E, no caso, evidente é que o vício existe.
Com efeito, in casu, verifica-se que o Colectivo a quo deu o mesmo “facto 12” – onde consta que “O arguido bem sabia que era devedor da quantia ora em apreço, assim como bem sabia que havia providenciado à assistente um cheque em branco, como garantia do cumprimento da sua dívida, que poderia ser utilizado por esta a qualquer altura, desde que respeitado o respectivo pacto de preenchimento e o prazo de vencimento da dívida estabelecido contratualmente” – como “provado” e (simultaneamente) “não provado”; (cfr., fls. 294, pág. 7 do Acórdão recorrido, notando-se também que, em sede de fundamentação, tece observações referentes a tal matéria que igualmente não permitem concluir pela existência de lapso manifesto, passível de eventual correcção em qualquer dos sentidos).
Ora, o assim decidido, constitui uma “situação típica” da verificação do imputado vício, (“incompatibilidade insanável entre os factos provados e não provados”), o que, (dado que insanável), não pode deixar de implicar o “reenvio dos autos para novo julgamento”, (cfr., art. 418° do C.P.P.M.), no qual se deve também apreciar e proferir nova decisão sobre a matéria ínsita nos “factos enumerados com os nos 13 e 14” da pronúncia – respeitantes ao “dolo” e “consciência da ilicitude” – que se deram como “não provados”, e se terá de considerar “afectada” em consequência da referida “contradição”.
Dest’arte, e prejudicada ficando a apreciação de qualquer outra questão suscitada, resta pois decidir pela procedência do recurso e pelo reenvio dos presentes autos nos exactos termos consignados.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, decreta-se o reenvio dos presentes autos ao T.J.B. para novo julgamento e decisão.
Custas pelo arguido com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 12 de Janeiro de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 142/2016 Pág. 16
Proc. 142/2016 Pág. 15