Processo nº 72/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 12/Janeiro/2017
Assunto: Simulação
SUMÁRIO
Se, num contrato de compra e venda de imóvel, o vendedor não tinha a vontade de vender a outra parte, nem esta a vontade de lhe comprar o bem, mas ambos tiveram tão só a intenção de ajudar o seu verdadeiro proprietário a conseguir um empréstimo bancário, esse acto consubstancia um negócio jurídico simulado.
O negócio simulado é nulo.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 72/2016
(Autos de recurso civil)
Data: 12/Janeiro/2017
Recorrente:
- A (Autora)
Recorridos:
- B e C (Réus)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, Autora da acção declarativa sob forma ordinária que corre termos no Tribunal Judicial de Base, inconformada com a sentença final que absolveu os Réus B e C do pedido, dela interpôs o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou exuberantemente as conclusões constantes de fls. 369 a 387.
Conclui, pedindo a revogação da sentença recorrida e, em consequência, a condenação dos Réus nos pedidos deduzidos na petição inicial.
*
Ao recurso responderam os recorridos, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“1. Vêm os RR. apresentar as contra-alegações ao recurso interposto pela A. da sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os RR. dos pedidos.
2. As longas e confusas conclusões da Recorrente (de dezanove páginas) são, salvo o devido respeito, “copy” e “paste” das alegações de recurso.
3. Não devem valer como conclusões arrazoadas longas e confusas em que se não discriminam com facilidade as questões invocadas.
4. Porque a recorrente não cumpriu o ónus que é imposto pelo n.º 1 do art.º 598º (concluir, de forma sintética), a douta sentença merece confirmação.
5. Não houve violação do princípio do dispositivo.
6. O poder de ampliar a matéria de facto atendendo oficiosamente a factos não articulados, é um poder inquisitório que incumbe ao juiz da causa e que ele apenas pode exercitar no decurso da audiência de julgamento, por sugestão da parte interessada ou por iniciativa própria, em função dos elementos que resultem da instrução e discussão da causa e da sua pertinência para a decisão jurídica e com vista ao apuramento da verdade material e da justa composição do litígio.
7. Andou bem a Meritíssima Juíza ao decretar a ampliação da matéria de facto.
8. Da incorrecção da inquirição da testemunha D.
9. Se a A. sentiu necessidade de que a testemunha fizesse parte na acção deveria ter, em tempo, demandado a testemunha juntamente com os Réus uma vez que ficou provado à saciedade que A. e testemunha se conheciam e negociaram a transmissão do imóvel.
10. Existência de Simulação e existência de Abuso de Direito.
11. Aquando da apresentação da sua contestação em 25/10/2012, os RR. impugnando os factos trazidos pela A. juntaram o Doc. n.º 4, que prova um acordo datado de 20 de Maio de 2010, realizado entre a A. e E, tio de D e familiar dos RR. em que:
a) A A. se compromete a transferir a propriedade reivindicada para o nome de E;
b) Em que E se compromete a pagar as prestações relativas ao empréstimo bancário assim como a todas as despesas e emolumentos legais;
c) Em que a A. admite ter recebido MOP$6.000,00 (seis mil patacas) da parte de E e aceita vir a receber mais MOP$10.000,00 (dez mil patacas) quando fizer a transferência da propriedade que agora reivindica;
d) Juntaram ainda os RR. mais dois documentos (cfr. Doc. 5 e 6) relativos a contratos de promessa de compra e venda celebrados entre a A. e E em, 12 de Agosto de 2010, e a A. e C, 2ª Ré em, 27 de Dezembro de 2010.
12. Autora, que compra mas não paga o preço (cfr. prova documental trazida pela A. relativa a cópia da caderneta bancária relativa à conta n.º … junto do BCM (Banco Comercial de Macau, S.A.) com data de 17 de Março de 2011) não obstante se afirmar proprietária, desde 13 de Abril de 2010 na sua petição inicial.
13. De onde flui o abuso de direito da A., uma vez que além de nunca ter pago qualquer quantia de aquisição da fracção autónoma reivindicada, a não ser as prestações do empréstimo a partir do momento em que o sobrinho o deixou de fazer e tendo do seu lado a presunção da titularidade do direito por via do registo, resolveu reivindicar um direito que sabe não ser titular.
14. Da Matéria De Facto: Quesito 1º
Não se vê em que é que os factos assentes E. e F vêm a contradizer a resposta dada ao quesito 1º.
15. Os Réus ocupavam a fracção e foram interpelados para a libertarem, não obstante serem os verdadeiros proprietários uma vez que foram quem pagou o preço.
16. Quanto às respostas aos quesitos 3º, 4º e 5º: Contrariamente ao que vem dito pela A., consta do registo de gravação do testemunho de E, ouvido na sessão de 06.11.2014, gravação 141@0!8G05011270.WAV às 40.00 a 43.00 “que havia um acordo para aquisição de propriedade entre o RR. B e o irmão mais velho, F, pagavam entre eles, aliás. O irmão mais velho é F… compravam para investir em Macau para o sobrinho D obter a residência em Macau, havendo a testemunha identificado correctamente a fracção em causa” na referida sessão de 06.11.2014, gravação 141@0!8G05011270.WAV às 45.00 a 46.20.
17. Quanto às respostas aos quesitos 7º a 17º a A. não indicou as passagens da gravação em que funda o seu recurso, fazendo uma vaga alusão “em consonância com o acima exposto em A) e B) em sede de impugnação de matéria de direito”, devendo ser de rejeitar nessa parte de acordo com o n.º 2 do art.º 599º Código de Processo Civil.
18. Quanto às respostas aos quesitos 18º a 20º a mãe da A., G, em declarações ao tribunal começou por responder às instância da Advogada da A. na sessão de 10.12.2014, gravação 156D6((W05811270)WAV às 14:42 a 18:20 que não sabia quando a filha comprou o imóvel, antes da compra pediram às agências imobiliárias para lhes apresentarem casas … pediram informações em duas agências, depois chegou a encontrar uma casa que gostou, pediu à filha, ora A., para ir lá ver, mas ela disse que não era necessário porque ela já tinha comprado. Filha disse que já tinha comprado com o namorado. No início não sabia, não me contou … perguntei se já tinha visitado a fracção e ela disse que não porque alguém estava lá a viver, disse que o namorado conhecia bem D e não era necessária a visita.
19. É a própria mãe de A. que ao relatar os factos revela que a atitude da A. não é consentânea com a atitude de alguém que acabou de comprar uma casa e que pretende habitá-la certificando-se, nomeadamente, se está livre de ónus e encargos e pronta a habitar.
20. Quando a mãe perguntou à filha se chegou a visitar a casa e ela disse que não, deixa escapar alguma indignação e surpresa pela atitude da filha.
21. Quanto à resposta ao quesito 22º não se vê porque razão de ciência é que o testemunho de D, pessoa que melhor sabe da história, não possa ser tido em conta para a prova deste quesito.
22. Quanto à resposta ao quesito 21º e 23º mais uma vez, a A. não indicou as passagens da gravação em que funda o seu recurso devendo ser de rejeitar nessa parte de acordo com o n.º 2 do art.º 599º do Código de Processo Civil.”
Conclui, pugnando pela negação de provimento ao recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Por apresentação de 28/04/2010, a autora tem inscrita a seu favor a aquisição, por compra a H, da fracção autónoma designada por “L1” do 1º andar “L” do prédio sito em Macau…, denominado por “Edifício …”, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … (alínea A) dos factos assentes).
Por escritura pública de 18 de Dezembro de 2009, H adquiriu à Companhia de Fomento Predial X Limitada a fracção autónoma reivindicada (alínea A)1 dos factos assentes).
Por apresentação de 08/01/2010, H inscreveu a seu favor a aquisição da mesma fracção autónoma, por compra a Companhia de Fomento Predial X Limitada (alínea B) dos factos assentes).
Em 6 de Maio de 2009, D celebrou um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma reivindicada com a Companhia de Fomento Predial X, Limitada, o qual foi inscrito provisoriamente por natureza sob a inscrição nº … (alínea B)1 dos factos assentes).
Essa inscrição tornou-se definitiva por força da escritura pública de compra e venda celebrada em 23 de Setembro de 2009 (alínea B)2 dos factos assentes).
Por apresentação de 07/05/2009, a Companhia de Fomento Predial X Limitada inscreveu a seu favor a aquisição da mesma fracção autónoma, por compra a D (alínea C) dos factos assentes).
Por apresentação de 14/05/2002, foi inscrita a favor de D a aquisição, por compra a I, da mesma fracção autónoma (alínea D) dos factos assentes).
Os réus ocupam a fracção em causa (alínea E) dos factos assentes).
Os réus, apesar de diversas vezes interpelados para o efeito, recusam-se, até hoje, a proceder à desocupação do referido imóvel (alínea F) dos factos assentes).
O que o valor médio de mercado das rendas da fracção reivindicada é de cerca de MOP$4.000,00 (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
Os Réus compraram a I a fracção autónoma reivindicada, tendo os réus pago o preço e tendo na escritura de 23 de Abril de 2002, celebrada no Notário Privado Luís Reigadas, a fls. … do livro …, ficado a constar como comprador o sobrinho dos Réus, D (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
O escopo dos Réus era ajudar o sobrinho D, natural do Interior da China, a fixar residência em Macau através de investimento imobiliário (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
Ficou estipulado entre os Réus e o sobrinho D que, não obstante, constar como comprador no contrato de compra e venda depois levado a registo, os proprietários eram quem pagou o preço (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
Em 2009, D começou a ter problemas de dívidas de jogo (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
Para lhes fazer face, D celebrou o contrato-promessa referido em B)1 dos factos assentes a fim de pagar as dívidas de jogo (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
A Companhia de Fomento Predial X, Limitada prometeu revender o imóvel a D se lhe fosse pedido (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
Posteriormente, D pretendia readquirir a fracção autónoma a Companhia de Fomento Predial X, Limitada mas não tinha dinheiro nem conseguia empréstimo bancário para o efeito (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
Por isso, pediu ajuda a H (resposta ao quesito da 12º da base instrutória).
Para o efeito, H aceitou emprestar dinheiro a D para a reaquisição (resposta ao quesito da 13º da base instrutória).
H fixou o prazo de 3 a 6 meses para a restituição do dinheiro (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
Mais combinaram que H pagaria o preço da reaquisição à Companhia de Fomento Predial X, Limitada e figuraria no contrato de compra e venda como comprador sendo D o verdadeiro comprador (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
H prometeu vender a fracção ao D ou a quem este indicar para figurar no contrato como comprador, quando D lhe devolvesse o dinheiro emprestado (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
Na sequência dos factos constantes das respostas aos quesitos 11º a 16º, H e Companhia de Fomento Predial X, Limitada celebraram a escritura referida em A)1 dos factos assentes (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
Como D não tinha dinheiro nem conseguia empréstimo bancário para cumprir o acordado com H, pediu ajuda à Autora (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
D pediu à Autora para figurar no contrato de compra e venda referido em A) dos factos assentes como compradora e contrair um empréstimo bancário hipotecando a fracção autónoma reivindicada sendo D o verdadeiro comprador e a pessoa que iria pagar o empréstimo bancário contraído e as demais despesas (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
A Autora aceitou o pedido de D e celebrou o contrato de compra e venda referido em A) dos factos assentes (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
D pagou todas as despesas inerentes ao contrato de compra e venda referida em A) dos factos assentes e as primeiras onze prestações do empréstimo bancário, deixando de o fazer em relação às prestações posteriores (resposta ao quesito da 21º da base instrutória).
Quando foi celebrado o contrato de compra e venda referido em A), H tinha conhecimento dos factos constantes das respostas aos quesitos 18º a 20º (resposta ao quesito da 22º da base instrutória).
A Autora nunca pagou qualquer quantia pela aquisição da fracção autónoma reivindicada, a Autora apenas começou a pagar as prestações do empréstimo bancário quando o D deixou de o fazer (resposta ao quesito da 23º da base instrutória).
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Da alegada violação do princípio do dispositivo e das normas ínsitas nos artigos 5º e 553º, nº 2, alínea f) do CPC
Alega a recorrente que, tendo o Tribunal a quo aditado oficiosamente 17 quesitos à base instrutória, trazendo para o processo factos essenciais não alegados por nenhuma das partes, houve violação do princípio do dispositivo, não devendo, na opinião dela, ser admissível tal aditamento, pedindo que se eliminasse os quesitos 7º a 23º oficiosamente aditados pelo Tribunal a quo.
É verdade que o princípio do dispositivo é o princípio fundamental do direito de processo civil, na medida em que o tribunal não pode conhecer de questões não trazidas pelas partes ao processo, salvo matéria de conhecimento oficioso.
Diz a recorrente que o Tribunal a quo estava impedido de aditar oficiosamente factos não trazidos pelas partes.
Ora bem, revendo os autos, podemos verificar que no decurso da audiência, e após ouvidas as testemunhas, o Tribunal usou da faculdade prevista na alínea f) do nº 2 do artigo 553º do CPC e procedeu ao aditamento de 17 quesitos à base instrutória.
Tendo sido notificadas ambas as partes para querendo apresentarem prova sobre os factos aditados, as mesmas vieram reclamar contra a ampliação da base instrutória, com fundamento em excesso e em deficiência, respectivamente, bem como apresentaram prova para o efeito.
De acordo com o princípio do dispositivo, as partes têm o ónus de alegar os factos essenciais, isto é, os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (artigo 5º, nº 1 do CPC).
O mesmo já não acontece em relação aos factos instrumentais e complementares.
Ao abrigo do nº 2 do artigo 5º do CPC, o juiz deve considerar oficiosamente os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
Diz-se factos instrumentais aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos factos.1
Por outro lado, dispõe o nº 3 do mesmo artigo que devem ainda ser considerados na decisão os factos complementares, os quais são igualmente factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas e que sejam complemento ou concretização de outros que as partes tenham oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que seja dada à parte interessada a possibilidade de sobre eles se pronunciar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
Em boa verdade, esses factos complementares continuam a ser factos essenciais e relevantes para a decisão da causa, por serem constitutivos do direito invocado pelo autor ou impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito, mas destinam-se a complementar ou concretizar os outros factos essenciais oportunamente alegados pelas partes.
Como observam Cândida Pires e Viriato de Lima2, “não parece exigir-se que a parte interessada manifeste vontade de se aproveitar dos factos (digamos complementares), nem que tenha de formular requerimento para tal. A intenção do legislador de Macau terá sido a de levar mais longe que o legislador português a limitação ao princípio dispositivo, podendo o juiz considerar oficiosamente facto essencial não alegado, bastando que à parte interessada seja dada a possibilidade de se pronunciar” – sublinhado nosso.
De um modo geral, tratando-se de causa de pedir complexa, e tendo-se alegado vários factos, mas se omitiram outros, nada obsta a que o juiz que preside o julgamento, no uso da faculdade prevista na alínea f) do nº 2 do artigo 553º do CPC, providenciar pela ampliação da base instrutória, desde que sejam factos instrumentais ou complementares.
Trata-se de um aspecto inovador, o qual constitui uma limitação ao princípio do dispositivo, na medida em que, se o juiz entender haver necessidade de aditar factos, e desde que os factos relacionem com a mesma causa de pedir oportunamente invocada pelas partes, o juiz pode conhecê-los oficiosamente.
Ora bem, analisados os vários quesitos aditados pelo Colectivo de primeira instância, dúvidas de maior não restam de que a matéria aditada consubstancia factos instrumentais e complementares, melhor dizendo, são factos que integram a mesma causa de pedir e que visam complementar os factos oportunamente alegados pelas partes, pelo que, desde que seja cumprido o contraditório e que não haja oposição do respectivo interessado, podem ser considerados pelo Tribunal.
Defende ainda a recorrente que o tribunal não lhe facultou o direito de se pronunciar sobre o aditamento de tais factos, havendo, no seu entender, violação do princípio do contraditório.
Ora bem, salvo o devido respeito por melhor opinião, não se nos afigura violação do tal princípio, antes pelo contrário foi cumprido o contraditório, uma vez que as partes foram devidamente notificadas para apresentarem prova e que na sua produção foi respeitado o respectivo contraditório.
Nestes termos, improcedem as razões da recorrente nesta parte.
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Da alegada incorrecção da inquirição D como testemunha no que diz respeito à matéria da ampliação da base instrutória
Entende a recorrente que atenta a relação material controvertida tal como configurada inicialmente pelas partes e, depois, pelo Tribunal a quo ao determinar a ampliação oficiosa da matéria de facto, o indivíduo D não poderia ser testemunha quanto à matéria da ampliação, na medida em que, no rigor dos princípios, tem implicação e interesse directo na causa.
E considerando que o aditamento dos factos à base instrutória ocorreu no decurso da audiência de julgamento, entende a recorrente que o Tribunal a quo não poderia ter tomado em consideração as declarações de D no que diz respeito à matéria da ampliação da base instrutória.
In casu, verifica-se que após ter sido proferido despacho de aditamento de factos à base instrutória, foram as partes notificadas para apresentarem provas, tendo os recorridos pedido que fossem ouvidos, entre outros, D como testemunha.
Ora bem, preceitua-se no artigo 518º do CPC que estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes.
Salvo o devido respeito, não se nos afigura possuir o indivíduo em causa a qualidade de parte.
Se se verificasse essa situação na audiência, teria a recorrente certamente suscitado o incidente de impugnação logo no interrogatório preliminar (artigo 537º e 538º do CPC). Mas não foi o caso.
Nem depois de finda a produção da prova logrou provar essa qualidade, considerando que apenas ficou provado que entre os Réus e o seu sobrinho, ora testemunha D, foi estipulado que, não obstante constar este último como comprador no contrato de compra e venda depois levado a registo, aqueles é que eram os verdadeiros proprietários da fracção em causa.
De facto, só depois de a testemunha D começar a ter problemas relacionados com dívidas de jogo, é que este celebrou contrato-promessa de compra e venda da fracção em causa com pessoa terceira, com vista a obter empréstimo para fazer face a essas dívidas.
Tudo isto para apontar que D não era parte, podendo ele depor como testemunha.
Improcedem, assim, as razões da recorrente.
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Da impugnação da matéria de facto
A autora ora recorrente vem impugnar a decisão da matéria de facto dada pelo Tribunal a quo, defendendo que os quesitos 1º, 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º e 23º da base instrutória foram incorrectamente julgados, nomeadamente:
- deveria dar como provado que por causa da ocupação da fracção reivindicada por parte dos réus ora recorridos, a autora ora recorrente deixou de auferir rendas daquela fracção (resposta ao quesito 1º);
- não deveria dar como provado que na sequência do acordo estabelecido entre D e os réus, a casa objecto dos autos tivesse ficado em seu nome, a fim de ele adquirir residência em Macau (resposta aos quesitos 3º a 5º);
- não deveria dar como provadas as razões das anteriores transmissões do imóvel, por não ter sido ouvidos H ou ninguém da Companhia de Fomento Predial X (resposta aos quesitos 7º a 17º);
- não deveria dar como provado o acordo estabelecido entre a recorrente e D (resposta aos quesitos 18º a 20º);
- não deveria dar como provado que H tinha conhecimento dos factos ocorridos entre a recorrente e D (resposta ao quesito 22º); e
- é insuficiente a resposta aos quesitos (resposta aos quesitos 21º a 23º)
Dispõe o artigo 629º, nº 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, nos termos do nº 2, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, para tal atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, que têm o ónus de identificar os depoimentos, ou parte deles, que invocam para infirmar ou sustentar a decisão de 1ª instância.(…), na verdade, o alegado erro de julgamento normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo facto, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.3
Estatui-se nos termos do artigo 558º do CPC o seguinte:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012 (Processo 551/2012), “este princípio da livre apreciação da prova não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Todos sabemos isso muito bem.
Mas, por outro lado, nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (artº 436º do CPC), do ónus da prova (artº 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (artº 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (artº 557º do CPC), da livre apreciação das provas (artº 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo.”
Mais se especificou naquele mesmo Acórdão que “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599º, nºs 1 e 2 do CPC.”
No mesmo sentido, decidiu-se no Acórdão deste TSI, no Processo nº 332/2015 o seguinte:
“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC.
E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu (neste sentido, v.g., Ac. do TSI, de 19/10/2006, Proc. nº 439/2006).”
Analisada a prova produzida na primeira instância, nomeadamente atendendo aos depoimentos de todas as testemunhas na audiência de julgamento e à prova documental junta aos autos, entendemos que não somos capazes de dar razão à recorrente, por que os dados permitem chegar à mesma conclusão a que o Tribunal a quo chegou, não se vislumbrando qualquer erro grosseiro e visível por parte do Tribunal recorrido na análise da prova.
De facto, embora a versão da recorrente tenha sido sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas não deixa de ser contrariada pelo depoimento de outras.
Daí que, não sendo o caso de prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
E não se pode deixa de aplaudir que o colectivo de primeira instância fez a análise de todos os dados e deu a explanação pormenorizada dos fundamentos decisivos para a sua convicção, com a qual concordamos na íntegra e que a seguir se transcreve:
“A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permitiu formar uma síntese quanto aos apontados factos.
No que diz respeito à forma como o imóvel foi registado em nome da Autora, da prova produzida resulta tudo teve início em 2009, altura em que D começou a ter problemas de jogo.
Com efeito, as provas indicam uma situação anormal de aquisição do imóvel por parte da Autora: a Autora não visitou o imóvel antes da compra e, sabendo que o imóvel estava ocupado, não se preocupou em estabelecer uma data de entrega do imóvel quando, segundo os pais da mesma, a fracção autónoma era para habitação própria; a Autora não apresentou um único documento que demonstra a sua intervenção na aquisição, designadamente um contrato-promessa de compra e venda, acordo que é muito comum celebrar-se perviamente à compra e venda definitiva, os recibos de pagamento das despesas inerentes à compra e venda tais como o do imposto de selo e dos emolumentos da escritura pública e do registo predial, etc; a Autora não demonstrou que tinha pago qualquer sinal ou, pelo menos, a primeira prestação em vista da compra definitiva; segundo os documentos juntos a fls 233 a 246 e 250 a 252, foi D quem pagou as primeiras prestações do empréstimo bancário em vez da Autora; os documentos juntos a fls. 66 a 68 demonstram que apenas um mês depois da aquisição feita pela Autora, esta aceitou revender o imóvel aos familiares de D tendo estes apenas que suportar o pagamento do remanescente do empréstimo bancário contraído pela Autora e as demais despesas da transmissão e relativamente à prestação a que a Autora teria direito, ficou apenas estipulado que receberia imediatamente HK$6.000,00 e depois MOP$10.000,00; o documento junto a fls. 217 demonstra que apenas 10 meses depois da aquisição é que a Autora conseguiu acordar com D sobre a saída dos Réus da fracção autónoma reivindicada; o documento junto a fls. 69 demonstra que apenas em quase 1 ano e 4 meses depois da aquisição é que os Réus viram grande pressão para saírem do imóvel.
É verdade que a mãe da Autora veio apresentar a razão por que a Autora aceitou abrir mão do imóvel: recusa de saída dos Réus com ameaças de suicídio e intenção de comprar uma casa recorrendo novamente à bonificação de juros de crédito para a aquisição de habitação própria. No entanto, nenhuma prova mais consistente foi apresentada para suportar essa versão. Aliás, não se vislumbra como um comprador desista tão facilmente do seu direito a um imóvel comprado apenas há um mês mesmo que tenha tido grandes dificuldades na desocupação do mesmo. Também por força desse curto espaço de tempo, não se considerou credível que a Autora tivesse pedido a entrega do imóvel como declararam os seus pais.
Daí que o tribunal deu como boa a versão apresentada por D no que se refere ao motivo que o levara a vender à Companhia de Fomento Predial X, Limitada e à razão das sucessivas transmissões.
A isso acresce o documento de fls. 63. Com efeito, desse documento se vê que em 16 de Dezembro de 2009, já depois de D vender o imóvel definitivamente à Companhia de Fomento Predial X, Limitada e antes de esta sociedade vender a H, D promete vender o imóvel a H. Ora, como é que alguém depois de vender definitivamente o bem com registo já feito, promete vender o mesmo bem a outrem? Esse documento demonstra claramente o acordo existente entre D e a Companhia de Fomento Predial X, Limitada o que torna plausíveis os factos constantes dos quesitos 7º a 9º e 10º a 23º.
Nesse contexto, o documento de fls. 217, em vez de demonstrar a versão apresentada pela mãe da Autora, reforça a versão apresentada por D. Pois, no contexto das alienações feitas, tudo indica que o acordo constante desse documento não passa de um outro acto irresponsável de D a fim de obter dinheiro para satisfazer o seu vício de jogo.
Foi, portanto, na conjugação de todo o expendido que o tribunal deu credibilidade a essa parte das declarações de D.
Em relação à aquisição registada em nome de D em 2002, o tribunal deu como provada a versão apresentada pelos Réus de que quem pagara o preço de aquisição do móvel foram os Réus. É que se D fosse realmente a pessoa que pagou o preço de aquisição do imóvel não tendo os Réus nada a ver com a propriedade do mesmo mas tão só por bondade de D e do pai deste é que os Réus viveram na fracção autónoma reivindicada, não se compreende a revolta dos Réus. Aliás, dada a estreita relação familiar existente entre os Réus e D e do pai deste, podiam os Réus apenas defender afirmando que o imóvel era de D, que foram autorizados por este a residir nele e a restante versão constante da contestação que D veio reproduzir na sua essencialidade durante a audiência de discussão e julgamento.
Foi da conjugação desses aspectos que o tribunal avaliou a conduta do Réu indiciada na queixa-crime e pelos documentos que apresentou ao Ministério Público (documentos de fls. 69 a 81), o depoimento da testemunha D e do seu pai, o depoimento das demais testemunhas, bem como os documentos juntos a fls. 66 a 68 donde demonstra a intervenção activa e permanente dos Réus nas tentativas de recuperação do imóvel.
Pelo que, sobre a questão de saber quem foi o verdadeiro comprador do imóvel em 2002, o tribunal acolheu a versão apresentada pelos Réus como boa.”
Nesta conformidade, por não se vislumbrar qualquer erro na apreciação da matéria de facto, improcede o recurso nesta parte.
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Da alegada simulação
Alega a recorrente que não estão preenchidos os requisitos de que depende a verificação de simulação.
Salvo o devido respeito, entendemos não assistir razão à recorrente.
Por uma questão de economia processual, cita-se a seguinte parte da sentença recorrida cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos:
“No entanto, foram dados como provados outros factos que demonstram que a Autora, não obstante, a celebração do contrato de compra e venda, não adquiriu a propriedade do imóvel.
Com efeito, relativamente aos 3 sucessivos contratos acima citados, está provado o seguinte:
1. O sobrinho dos Réus teve problemas de dívidas de jogo razão por que celebrou um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma a que se seguiu um contrato de compra e venda para pagar as dívidas de jogo tendo o promitente-comprador/comprador, a Companhia de Fomento Predial X, Limitada, aceitado revender ao sobrinho o imóvel se assim o sobrinho quisesse.
2. O sobrinho, apesar de não ter dinheiro para o efeito, quis readquirir o imóvel. Assim, pediu dinheiro emprestado a H que seria restituído no prazo de 3 a 6 meses, para pagar à Companhia de Fomento Predial X, Limitada. No entanto, H e o sobrinho acordaram que aquele figurasse no contrato de compra e venda como comprador mas que este é que era o verdadeiro comprador devendo H revender a fracção autónoma ao sobrinho ou a quem este indicar quando o dinheiro lhe é devolvido.
3. Posteriormente o sobrinho, porque não tinha dinheiro nem conseguia qualquer empréstimo bancário para pagar a dívida ao H, pediu ajuda à Autora no sentido de esta figurar no contrato de compra e venda a celebrar com H a fim de poder contrair um empréstimo bancário hipotecando o imóvel sendo o sobrinho o verdadeiro comprador e a pessoa que iria pagar o empréstimo bancário.
4. H tinha conhecimento do acordo estabelecido entre a Autora e o sobrinho.
Desses factos vê-se que nem o H tinha vontade de vender o bem à Autora nem esta tinha a vontade de a comprar.
Da parte do H, como o mesmo nunca teve intenção de verdadeiramente comprar o imóvel, isto aquando da compra e venda feita por esta junto da Companhia de Fomento Predial X, Limitada, mas tão só para garantir o pagamento do empréstimo concedido ao sobrinho, o mesmo também não tinha intenção de vender o imóvel à Autora. Com efeito, ao celebrar o contrato de compra e venda com a Autora, o que H pretendia era abrir mão do bem oferecido como garantia do empréstimo porque lhe foi devolvido o dinheiro que emprestara ao sobrinho.
Da parte da Autora, o que a mesma fez era ajudar o sobrinho a conseguir um empréstimo bancário a fim de este poder pagar a dívida que tinha junto de H sendo a compra e venda feita uma falsa aparência para conseguir o empréstimo bancário que o sobrinho necessitava mas que, em nome próprio, não conseguia.
Portanto, nem H queria vender o imóvel e nem a Autora queria comprar o imóvel. No entanto, declararam que vendia e comprava para enganar o banco onde foi contraído o empréstimo.
Nos termos do artigo 232º do CC “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.”
Tendo em conta os factos dados por assentes e a norma acima transcrita, a compra e venda feitas entre a Autora e H, em 13 de Abril de 2010, não pode deixar de ser considerada simulada e, como tal, nula.
Sendo a compra e venda nula, a mesma não pode produzir os efeitos pretendidos: a transmissão da propriedade para a Autora.”
Em nossa opinião, concordamos inteiramente com os argumentos e a solução nela consignados, aliás é o que resulta da matéria dada como provada nos quesitos 18º a 20º e 23º da base instrutória.
Apenas mais umas asserções.
Se a recorrente tivesse intenção de comprar a casa, mal se compreenderia a razão de ela ter aceite revender o imóvel (ainda dentro de um mês) aos familiares de D tendo estes apenas que suportar o pagamento do remanescente do empréstimo bancário contraído pela recorrente, das demais despesas da transmissão, e enquanto à prestação a que a recorrente teria direito, ficou apenas estipulado que receberia imediatamente HKD$6.000,00 e depois MOP$10.000,00 (cfr. doc. 4 junto com a contestação).
Por outro lado, apesar de a recorrente ter passado a proceder ao pagamento do empréstimo bancário a partir de Março de 2011, ou seja, quando o D deixou de o fazer, isso não significa necessariamente que a recorrente era a verdadeira compradora do imóvel, pois provado está que o acordo inicial firmado entre D e a recorrente foi no sentido de esta apenas figurar na escritura pública como compradora, enquanto aquele é que é o verdadeiro comprador, razão pela qual a recorrente não pagou qualquer quantia pela aquisição da fracção autónoma reivindicada. De facto, não sabemos a razão de ela ter procedido ao pagamento do empréstimo bancário a partir de Março de 2011.
Pelo que se julga improcedente o recurso quanto a esta parte.
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Do alegado abuso de direito
Alega a recorrente que ela assumiu a verdadeira qualidade de proprietária do imóvel e que pagou, bem como se encontra a pagar o respectivo preço, não se vislumbrando que a sua conduta de reclamar judicialmente o imóvel possa consubstanciar qualquer abuso de direito.
Quanto a essa questão, subscrevemos inteiramente os argumentos detalhadamente explicitados na decisão recorrida, que a seguir se transcreve:
“Além de estar demonstrado que a compra e venda em que a Autora participou era fictícia, provou-se que o sobrinho pagara todas as despesas inerentes a este contrato e as primeiras onze prestações do empréstimo bancário, deixando de o fazer em relação às prestações posteriores; e a Autora nunca pagou qualquer quantia pela aquisição da fracção autónoma reivindicada a não ser as prestações do empréstimo bancário a partir do momento em que o sobrinho deixou de o fazer.
Preceitua o artigo 326º do CC que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e actualizada, pg 300, citando Castanheira Neves, Questões de facto – Questões de direito, I, pg 513 e ss, “O abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus podres. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contesto em que ele deve ser exercido.”
No presente caso, são duas as razões para se concluir pelo abuso de direito por parte da Autora.
Em primeiro lugar, apenas por razões técnico-jurídicas é que a qualidade de proprietária da Autora não pode ser atacada nestes autos. A permitir-se o exercício das faculdades inerentes ao direito de proprietária não deixa de se estar a permitir o abuso de um direito que, em termos substantivos, não pode prevalecer.
Em segundo lugar, está provado que a Autora nada contribuiu para a aquisição senão a partir de cerca de Março de 2011, altura em que começou a pagar o empréstimo bancário. Não consta dos autos as razões que a levaram a proceder a esse pagamento sendo certo que o acordado inicial entre a mesma e o sobrinho era o de este ser o verdadeiro comprador e de a Autora figurar apenas como compradora na escritura pública e nada indica que o sobrinho e a Autora acordaram posteriormente na transmissão efectiva do bem a esta. Antes, os documentos juntos a fls. 66 a 68 demonstram que a Autora aceitou revender o imóvel primeiro ao tio do sobrinho dos Réus em 20 de Maio de 2010 mediante a contrapartida de apenas MOP$10.000,00 e depois à 2ª Ré em 27 de Dezembro de 2010.
Articulando esses factos com os que precederam a celebração do contrato de compra e venda em que participou a Autora vê-se que esta reconheceu que o imóvel não lhe pertencia e aceitou abrir mão do mesmo pelo mero valor de MOP$10.000,00. No entanto, 5 meses depois, interpôs a presente acção arrogando-se de uma qualidade que sabe que não tem para pedir precisamente o reconhecimento desta qualidade, a restituição de um bem que sabe que não é seu e uma indemnização pela ocupação de algo que sabe que não é seu.
Trata-se de uma actuação que consubstancia um autêntico venere contra factum proprium.
Por força dessas considerações, é ilegítimo o exercício da faculdade de reivindicação prevista no artigo 1235º do CC bem como a de pedir indemnização pela ocupação do imóvel.
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Posto isto, urge aquilatar as consequências do exercício abusivo do direito acima referido.
De acordo com citado por Abílio Neto, Código Civil Antotado, 14ª edição actualizada, 2004, pág. 304, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, de 18 de Abril de 2002, Rev. nº 827-02-2ª: Sumários, 4/2002, “O art. 334º do Cód. Civil (o correspondente ao artigo 326º do CC de Macau), consubstancia um verdadeiro princípio geral de direito aplicável também no âmbito do processo civil, cujas consequências devem ser determinadas caso a caso em ordem a que, em obediência ao princípio da proporcionalidade, seja garantida a oba marcha do processo.”
No presente caso, o que pretende a Autora é o reconhecimento da qualidade de proprietária que alega ter sobre o imóvel, a restituição da mesma e a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização pela ocupação do imóvel.
Flui do acima exposto que o exercício das faculdades previstas no artigo 1235º do CC é ilegítimo, ou seja, os pedidos de reconhecimento e de restituição são ilegítimos.
Sendo assim, devem ser julgados improcedentes.”
Decidiu-se no Acórdão deste TSI no Processo nº 147/2014, no que à questão de abuso de direito se refere, que “é preciso realçar que o abuso de direito pressupõe um direito exercido com excesso manifesto e clamoroso, ou um exercício inadmissível de posições jurídicas. É necessário que esse exercício seja intolerável à ideia de uma actuação justa, de um sentimento ético-jurídico(…) A censurabilidade do abuso não resulta do direito em si mesmo, mas de critérios superiores de equidade e de moralidade, mostrando que a juridicidade do abuso advém da interioridade ou imanência ao direito subjectivo do valor pelo qual o comportamento do sujeito se orienta. Nessa análise, o acto abusivo carece de um direito subjectivo pré-existente na esfera de quem o exerce abusivamente.”
Ora bem, provado nos autos que não obstante a recorrente figurar como proprietária na escritura pública, mas na verdade nunca assumiu ser dona do imóvel em causa. De facto, ela ajudou por esta forma D a contrair empréstimo junto de instituição bancária que este não conseguia em nome próprio, e que também era essa pessoa quem pagava o empréstimo bancário. E por razões que se desconhece, só a partir do momento em que D deixou de o fazer, é que a recorrente passou a proceder ao pagamento das prestações do empréstimo ao banco.
Pelo exposto, somos a entender que agiu assim a recorrente em manifesta violação do princípio da boa-fé que consubstancia no abuso do direito, na medida em que pretendia aproveitar-se do “pretenso direito” figurado na escritura pública para obter para si interesses ilegítimos em detrimento do verdadeiro proprietário do bem imóvel.
Aqui chegados, outra alternativa não resta senão julgar improcedentes as razões da recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Fixa-se em MOP$2.500,00, a título de honorários da patrona oficiosa dos recorridos, suportadas pelo GPTUI.
Registe e notifique.
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RAEM, 12 de Janeiro de 2017
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Manuel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 70
2 Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Código de Processo Civil de Macau, Anotado e Comentado, Volume I, 2006, pág. 46
3 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, pág. 96 e 97
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Recurso Civil 72/2016 Página 37