Processo nº 549/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (A), com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática em concurso real de 1 crime de “abuso de poder” e 1 outro de “danificação ou subtracção de documento”, p. e p. pelos art°s 347° e 248° do C.P.M., fixando-lhe o Colectivo as penas parcelares de 1 ano e 6 meses e 1 ano e 3 meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos; (cfr., fls. 202 a 207-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado, veio o arguido recorrer, imputando ao Acórdão recorrido os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação”, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito” (no que toca a “qualificação jurídico-penal da sua conduta”); (cfr., fls. 217 a 234-v).
*
Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso merece provimento considerando haver contradição insanável da fundamentação; (cfr., fls. 236 a 243).
*
Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.217 a 234v. dos autos, o recorrente solicitou a absolvição da acusação, arrogando todos os vícios prescritos no n.°2 do art.400° do CPP e a violação da relação de absorção entre o crime de abuso de poder e o de danificação ou subtracção de documento ou notação técnica, nos quais o recorrente/arguido foi condenado.
*
Repare-se que o ora recorrente/arguido foi o único indivíduo quem referiu que a ofendida de nome B (B) lhe exigira o pagamento da quantia de $3,000.00 patacas como recompensa de actos sexuais. Por sua vez, a ofendida B (B) negou, de cabo a nabo, a exigência desta quantia, e nenhuma das testemunhas apoiaram a posição do recorrente.
Sucede que o Tribunal a quo chegou à conclusão de ser sufística e incrível as explicações do recorrente, e mostrar conforme com a razão normal bem como e com a regra de experiência o depoimento da referida ofendida como testemunha. (經綜合嫌犯的聲明及證人的證言再結合載於卷宗內的書證及扣押物,包括在庭上審閱了扣押於卷宗的錄影光碟的相關插圖,合議庭認為嫌犯的解釋牽強及不可信,相反證人的證言較吻合且較符合常理及經驗法則,故已能讓合議庭排除所有合理懷疑以足夠的肯定認定嫌犯確曾實施了控訴書向其歸責的事實。)
A nosso ver, a dita conclusão do tribunal a quo na fundamentação é, em bom rigor, deficiente e pouco congruente com os factos constantes nos 1° e 5° factos provados, sendo respectivamente de que «期間,B向嫌犯表示願意以三千元向其提供性服務,嫌犯表示同意» e «且嫌犯亦未有向B交付約定的三千元», porém, tal da fundamentação deficiência não chega a germinar nenhum dos vícios consignados no n.°2 do art.400° do CPP.
Com efeito, convém frisar-se que o Tribunal a quo apontou que o recorrente tinha procedido à confissão parcial dos factos imputados a si na acusação. (首先,嫌犯在庭上對被指控的犯罪事實作出部分承認,聲稱確曾持有他人證件,目的因當時為求保障自己。表示案發當日,透過手提電話程式(陌陌)認識了被害人B,被害人向其聲稱可提供性服務,價錢為3,000元,其同意後,便於當晚到達C酒店xxxx號房間與被害人會面,及後兩人發生性行為。後來,有人按鈴,被害人應門,目睹證人D及E進入房間內,由於害怕對方會對自己不利及把事情鬧大,故向彼等出示警員證及表明其警員身份,且取去被害人放在檯面上的中國護照以保障自己。……及後兩人懷疑其警員身份,要求到附近的警局核實,故便將被害人的護照放進褲袋內,與他們一起前往警局,途中證人E及被害人B相繼離去並不知所踪。)
Perante a referência à confissão parcial supra transcrita, a sobredita conclusão do tribunal a quo pode e deve ser interpretada no sentido de que: por um lado, este não creu as explicações (do recorrente) destinadas a eximir a sua responsabilidade, não duvidando da confissão quanto à exigência pela ofendida da dita quantia; e por outro lado, o tribunal a quo acreditou no depoimento da ofendida, salva a sua negação respeitante à sua exigência daquela quantia ao recorrente como recompensa.
Ora bem, com tal interpretação fundada no aresto recorrido na sua totalidade, a deficiência e a insuficiente congruência da fundamentação processada tribunal a quo tornam-se ultrapassáveis, pelo que não podem der encaixada na contradição insanável de fundamentação.
A esta modesta interpretação nossa, acrescemos que: em primeiro lugar, antes do encontro referido no 1° facto provado no aresto recorrido, o recorrente e a ofendida nunca tinham havido contacto, relacionamento ou amizade, pelo que a negação pela ofendida de exigir o pagamento da quantia de $3,000.00 ao recorrente mostra inacreditável à luz da regra de experiência; e em segundo, a declaração de arguido ou a prova testemunhal ficam sujeitos à livre apreciação do tribunal (art.114° do CPP), e não há norma legal que impeça o tribunal de acreditar só uma parte dos depoimentos de arguido ou de testemunha.
Nesta linha de ponderação, e em esteira das jurisprudências e doutrinas adquiridas sem necessidade de citação específica, colhemos que o Acórdão em escrutínio não enferma da contradição insanável da fundamentação nem do erro notório da apreciação de prova.
E nestes termos, a matéria de facto provada é suficiente e adequada para sustentar a decisão de condenar o recorrente em ter praticado, como autor material e na forma consumada, o crime de abuso de poder e o de danificação ou subtracção de documento ou notação técnica. Daí resulta a improcedência do recurso em apreço.
*
Importa ter presente a sensata advertência do Venerando TUI (Acórdão no seu Processo n.°23/2016): «Os vícios referidos nas várias alíneas do n.°2 do art.°400.° do Código de Processo Penal, mesmo verificados, devem ser decisivos e pertinentes para a decisão do caso concreto, caso contrário serão irrelevantes e não implicarão as consequências legais.»
Em homenagem desta douta orientação jurisprudencial, inclinamos a entender que são irrelevantes o eventual erro notório na apreciação da prova e a hipotética contradição insanável, dado que mesmo seja verdade que a ofendida não exigiu a quantia de $3,000.00 ao recorrente, isto não abala a firmeza do Acórdão posto em crise.
Com efeito, a ofendida afirmou, perante os agentes policiais e na declaração para memória futura, que «在房內期間,嫌犯尚要求證人拿出貴重的財物及要求證人打開房內的保管箱,證人當時堅決拒絕,及後證人的朋友來到房間,嫌犯便著證人需帶同貴重物品下樓,以便乘坐警車返回警局,起初證人不答應,嫌犯見狀便說如果證人不按其指示下樓,便會叫警察同僚將證人押返警局。» Ora, o tribunal a quo menciona, no acórdão em causa, tal afirmação da ofendida.
Do seu lado, o recorrente reconheceu, durante a audiência, que ele manifestara a sua qualidade de agente policial e retivera o passaporte da ofendida a propósito de evitar a ser alvo de queixa e, assim, de eximir da correspondente responsabilidade disciplinar.
Tudo isto assegura suficientemente que ao manifestar a qualidade de agente policial e reter o passaporte da ofendida, o recorrente agiu com a intenção de obter benefício ilegítimo para si próprio, mesmo seja verdade que a ofendida não exigisse a quantia de $3,000.00 como recompensa.
Nesta maneira de vista, parece-nos que mesmo fosse verdade que a ofendida não exigiu o valor de $3,000.00 ao recorrente, isto não pode pôr em dúvida a sua intenção de obter benefício ilegítimo para si, nem a suficiência da matéria de facto provada para sustentar a decisão.
*
Ora, são substancialmente diferentes os elementos constitutivos do crime de abuso de poder e do de danificação ou subtracção de documento ou notação técnica. E, de igual modo, são essencialmente diferentes os bens jurídicos subjacentes destes dois crimes.
No vertente caso, o facto de o recorrente/arguido manifestar a sua qualidade agente policial não é instrumento necessário ou indispensável para ele reter o passaporte da ofendida, tratando-se de duas condutas dele reciprocamente autónomas.
Sendo assim, colhemos que a condenação do recorrente no crime de danificação ou subtracção de documento ou notação técnica não pode absorver a ilicitude dos factos integrantes no crime de abuso de poder, e este crime não perde a autonomia por subsunção naquele crime.
Daí decorre que, na nossa óptica, as 41 a 44 conclusões inseridas na Motivação do recurso ficam insubsistentes, pelo que ele não pode ser condenado apenas no crime de danificação ou subtracção de documento ou notação técnica.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 265 a 267-v).
*
Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 203-v a 205, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (nenhum facto tendo ficado por provar).
Do direito
3. Insurge-se o arguido contra a decisão proferida com o Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor da prática de 1 crime de “abuso de poder” e 1 outro de “danificação ou subtracção de documento”, p. e p. pelos art°s 347° e 248° do C.P.M., fixando-lhe o T.J.B. as penas parcelares de 1 ano e 6 meses e 1 ano e 3 meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos
E, como se deixou relatado, assaca ao aresto recorrido os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação”, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”.
Vejamos.
–– Comecemos pelos assacados “vícios da decisão da matéria de facto”.
Como repetidamente temos afirmado:
O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015, de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016 e de 02.06.2016, Proc. n.° 1062/2015).
O vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.07.2016, Proc. n.° 418/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 550/2016 e de 20.10.2016, Proc. n.° 633/2016).
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém posições antagónicas, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
Por sua vez, o erro notório na apreciação da prova apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 22.09.2016, Proc. n.° 562/2016, de 29.09.2016, Proc. n.° 465/2016 e de 03.11.2016, Proc. n.° 759/2016).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016, de 22.09.2016, Proc. n.° 528/2016 e de 29.09.2016, Proc. n.° 630/2016).
Mostrando-se-nos de manter o assim entendido, cremos que, na parte em questão, não merece a decisão recorrida censura.
Com efeito, o Colectivo do T.J.B. emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, no caso, dando como provada toda a matéria de facto constante da acusação, (e outra, respeitante à situação económica e familiar do arguido), adequado não sendo de considerar que incorreu no imputado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.
O mesmo sucede com os restantes vícios de “contradição” e “erro”, já que, em nossa opinião, o ora recorrente limita-se a controverter alguns aspectos da fundamentação pelo Colectivo a quo exposta no seu Acórdão, que (por serem irrelevantes) não colhe, afrontando, também, a livre apreciação da prova pelo Tribunal, que, como igualmente se apresenta evidente, não procede.
Importa pois frisar que nenhuma “contradição” ou “erro” existe (ou pode existir) pelo facto de o Tribunal atribuir crédito a um determinado depoimento – no caso, ao da ofendida e testemunhas – em detrimento de outro – do arguido.
No caso dos autos, há que tomar em consideração que a ofendida e outras testemunhas presenciais do sucedido prestaram “declarações para memória futura” – cfr., fls. 110 a 118 – que foram lidas em plena audiência de julgamento – cfr., fls. 200 – e que a estas declarações se refere expressamente o Tribunal Colectivo a quo na exposição da sua convicção, sendo de se considerar que estes elementos probatórios suportam, perfeitamente, a decisão proferida.
Não se vislumbrando qualquer dos imputados vícios, há que julgar improcedente o recurso na parte em questão.
–– Continuemos, passando agora para a questão da “errada aplicação de direito”.
Aqui, o inconformismo do ora recorrente reside na “qualificação jurídico-penal da sua conduta”.
Porém, cremos que, também aqui, carece de razão.
Como se deixou relatado foi o arguido condenado como autor da prática em concurso real de 1 crime de “abuso de poder” e 1 outro de “danificação ou subtracção de documento”, p. e p. pelos art°s 347° e 248° do C.P.M..
Nos termos do art. 347° do C.P.M.:
“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Por sua vez, preceitua o art. 248° do mesmo C.P.M. que:
“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, destruir, danificar, tornar não utilizável, fizer desaparecer, dissimular, subtrair ou retiver documento ou notação técnica de que não pode ou não pode exclusivamente dispor, ou de que outra pessoa pode legalmente exigir a entrega ou apresentação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 246.º
4. Quando o ofendido for particular, o procedimento penal depende de queixa”.
Em síntese, está provado que o arguido, agente da P.S.P., acordou em ter relações sexuais com a ofendida a troco do pagamento a esta de MOP$3.000,00, que após aquelas acabou por não pagar, e que, invocando a sua qualidade de agente da P.S.P., ordenou à ofendida que lhe entregasse o seu Passaporte que acabou por manter na sua posse, agindo livre e voluntáriamente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida.
E, parente isto, que dizer?
Ora, cremos que face ao que se expôs, (totalmente) improcedente se apresenta o recurso.
Com efeito, em face do que provado está, sem esforço se nos mostra de considerar que a conduta do arguido se subsume ao preceituado nos art°s 347° e 248° do C.P.M., motivos não se vislumbrando para não ser condenado pela prática dos crimes de “abuso de poder” e de “subtracção – no caso, retenção – de documento” em “concurso real” como decidido foi pelo T.J.B..
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido 6 UCs de taxa de justiça.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 19 de Janeiro de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 549/2016 Pág. 18
Proc. 549/2016 Pág. 19