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Proc. nº 157/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Janeiro de 2016
Descritores:
-Anulação do casamento
-Casamento putativo
-Boa fé dos cônjuges

SUMÁRIO:

I. Na acção tendente à anulação do casamento, o art. 1519º do CC não impõe ao julgador o dever de declarar a boa fé de nenhum dos cônjuges se nenhum deles lhe formular o correspondente pedido, seja na petição inicial, seja em sede de reconvenção.

II. Qualquer dos interessados pode intentar uma acção de apreciação positiva pedindo o reconhecimento da boa fé para efeito de extrair os correspondentes efeitos do casamento putativo.

III. De qualquer maneira, o cônjuge interessado, sempre que esteja em causa uma situação material concreta de cuja posição jurídica substantiva queira extrair os efeitos do casamento putativo, poderá em acção própria invocar a sua boa fé.


Proc. nº 157/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, do sexo feminino, casada, da nacionalidade filipina, portadora do BIR permanente n.º XXX emitido pelo órgão competente de Hong Kong aos 18 de Setembro de 2004, residente no XXX, Hong Kong instaurou no TJB (Proc. nº FM1-14-0015-CAO acção com a forma de processo ordinário contra:
B, do sexo masculino, casado, da nacionalidade chinesa, portador do BIR permanente n.º XXX emitido pelo órgão competente de Hong Kong aos 26 de Novembro de 2008, residente no XXX, Hong Kong; e
C, do sexo feminino, casada, da nacionalidade chinesa, portadora do BIRM permanente n.º XXX, residente em XXX, Província Guangdong, China, ---
Pedindo a anulação do casamento entre os RR e a comunicação da decisão ao Registo Civil para efeitos de anulação do registo do casamento.
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Foi na oportunidade proferida sentença que julgou procedente a acção, decretando em consequência a anulação do casamento dos RR.
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É contra essa sentença que ora vem interposto pela 2ª ré o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. O tribunal recorrido entende que como estão satisfeitos os requisitos de substância para anular o casamento, declara-se anular o casamento entre o 1.º réu B e a recorrente, mas entende que como a recorrente não apresentou pedido reconvencional, não precisa conhecer da questão de boa- ou má-fé do casamento anulado.
II. Salvo devido respeito pelo entendimento diverso, a recorrente entende que, como o tribunal recorrido deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, existe o vício de “omissão de conhecimento”, previsto no art.º 571, n.º 1, alínea d) do CPC, a decisão em causa é nula.
III. A recorrente própria também espera apresentar a pretensão acima referida através da forma de pedido reconvencional; mas no caso do presente processo, não está satisfeita a admissibilidade de pedido reconvencional prevista pelo art.º 218.º do CPC.
IV. A recorrente também pretende que deva ser anulado verdadeiramente o casamento, ou seja, está satisfeito o previsto no art.º 218.º, n.º 2, alínea c) do CPC, “tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”; no entanto, “o seu benefício” da recorrente foi a pretensão de o tribunal julgar que ela era a única parte de boa-fé no casamento anulado, para poder ser beneficiada pelo art.º 1519.º, n.º 2 do CC.
V. Por outras palavras, a recorrente pretendia que o 1.º réu fosse a parte de má-fé no casamento anulado. Assim sendo, o objecto de pedido reconvencional só podia ser o 1.º réu, em vez da autora.
VI. Assim, nos termos do requisito previsto pelo art.º 218.º, n.º 1 do CPC, a recorrente só podia apresentar pedido em relação à autora.
VII. Portanto, ao indicar que como a recorrente não tinha apresentado pedido reconvencional, não seria julgada a questão em causa de boa- ou má-fé, o tribunal recorrido explicou erradamente a disposição legal acima referida.
VIII. Mesmo que tenha ou não apresentado pedido reconvencional, nos termos do art.º 1519.º, n.º 1 do CC, o casamento anulado produz os seus efeitos em relação a ambas as partes dos cônjuges e a terceiros até ao trânsito em julgado da respectiva sentença. Por outras palavras, este regime de anulação não tem efeito retroactivo, e começa a produzir efeitos desde a data do trânsito em julgado da sentença. O n.º 2 do mesmo artigo também dispõe em termos claros que apenas a parte de boa-fé tem o direito de arrogar-se os benefícios do estado matrimonial e opô-los a terceiros.
IX. Como a partir da data do trânsito em julgado da sentença, a anulação do casamento começa a produzir efeitos em relação a ambas as partes e a terceiros, e boa- ou má-fé faz com que os efeitos sejam diferentes, então, deve-se tratar da questão de boa ou má-fé ao mesmo tempo que se decide anular o casamento. Se não, existirão casos de não concertação e atraso em termos de tempo, e de que os direitos e interesses da parte de boa-fé e dos terceiros não são integralmente garantidos.
X. Imagina-se que a autora, como parte no casamento efectivo (intencionalmente ou não) não pretende que o tribunal julgue sobre boa ou má-fé (tal como no caso do presente processo), as partes no casamento anulado não podem apresentar pedido reconvencional por não está satisfeito o requisito. Se por fim o tribunal não julga oficiosamente sobre a questão de boa- ou má-fé, então, inevitavelmente, a partir da data quando a decisão da anulação do casamento transita em julgado, as partes no casamento anulado produzem imediatamente efeitos de anulação com o pressuposto de ambas as partes serem de boa-fé.
XI. Apesar da possibilidade de que as partes no casamento anulado podem intentar acção à parte para tratar desta questão, este modo de operação obviamente vai contra o princípio da economia processual, além disso e mais importante, isso faz com que, antes da declaração de que a decisão sobre boa- ou má-fé transitou em julgado, eles estejam ainda sujeitos aos efeitos da decisão da anulação do casamento, já transitado em julgado em primeiro lugar.
XII. Ou seja, os direitos e interesses das partes do casamento anulado não são integralmente garantidos; além disso, antes da declaração de que a decisão sobre a questão de boa- ou má-fé transitou em julgado, os direitos e interesses em causa podem já ter sofrido danos irreversíveis, e leva finalmente a que a decisão do processo se tome nula.
XIII. Portanto, nestes termos, apesar do art.º 563.º, n.º 3 do CPC, “O juiz ocupa-se apenas das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”; no entanto, a questão de boa- ou má-fé ou não em causa neste processo não está sujeita a este “princípio dispositivo”.
XIV. Dito de outra forma, o tribunal recorrido devia ter conhecido oficiosamente mas não o fez, portanto existe neste processo a “omissão de conhecimento” prevista pela art.º 571.º, n.º 1, alínea d) do CPC, e é uma decisão nula; e nos termos do art.º 630.º, n.º 2 do CPC, pede-se ao TSI revogar a decisão do tribunal recorrido e mudar a decisão para: anular o casamento entre a recorrente e o 1.º réu, e declarar que a recorrente é a única parte de boa-fé neste casamento putativo.
Nestes termos, pede à Mm.ª Juíza dar procedência a todos os fundamentos de facto e de direito constantes das presentes alegações de recurso. E com base nisso, revogar a decisão do tribunal recorrido e julgar novamente que, anula-se o casamento entre a recorrente e o 1.º réu, e declara-se que a recorrente é a única parte de boa-fé neste casamento putativo.”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença recorrida deu por provada a seguinte factualidade:
“Aos 13 de Fevereiro de 1982, a autora A e o 1.º réu B casaram-se nos termos legais filipinos na República das Filipinas (resposta ao n.º 1 da base instrutória)
O contrato de casamento acima mencionado foi o original do “contrato de casamento” autenticado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Filipinos, confirmado que foi emitido pelo pessoal competente, e confirmado pelo Consulado Geral das Filipinas em Macau que tinha sido autenticado pelo pessoal competente do Ministério dos Negócios Estrangeiros Filipinos. (resposta ao n.º 2 da base instrutória)
Antes de a autora casar-se com o 1.º réu, o 1.º réu já tem um filho D, com E; o filho nasceu aos 6 de Novembro de 1980 em Hong Kong. (resposta ao n.º 3 da base instrutória)
No entanto, aos 13 de Fevereiro de 1982 quando a autora e o 1.º réu se casaram, esta foi a primeira vez que se casaram, para ambas as partes. (resposta ao n.º 4 da base instrutória)
Depois do casamento, a autora e o 1.º réu trabalharam e viveram nas Filipinas. (resposta ao n.º 5 da base instrutória)
Aos 24 de Novembro de 1982, F nasceu nas Filipinas; o pai é o 1.º réu, a mãe é a autora. (resposta ao n.º 6 da base instrutória)
Foi assim até 1984, quando a autora seguiu o 1.º réu para viver conjuntamente em Hong Kong; entre 1984 e 1988, o 1.º réu também trabalhou em Hong Kong. (resposta ao n.º 7 da base instrutória)
A autora obteve o BIR HK em Outubro de 1984, e trabalhou em Hong Kong. (resposta ao n.º 8 da base instrutória)
Aos 15 de Outubro de 1984, o 1.º réu B casou-se com a 2.ª ré C em Macau. (resposta ao n.º 8-A da base instrutória)
Aos 4 de Agosto de 1987 G nasceu em Hong Kong; o pai é o 1.º réu, a mãe é a autora. (resposta ao n.º 9 da base instrutória)
A autora vivia sempre com o 1.º réu na qualidade de cônjuge; o casamento entre os dois mantinha-se. (resposta ao n.º 10 da base instrutória)
O filho D do 1.º réu não foi dado à luz pela autora; no entanto, quando era pequeno, vivia com a autora e o 1.º réu em Hong Kong; e foi a autora que tomava conta dele. (resposta ao n.º 11 da base instrutória)
As despesas familiares da autora e do 1.º réu, também eram sustentadas pela autora e pelo 1.º réu conjuntamente. (resposta ao n.º 12 da base instrutória)
Quando a relação matrimonial entre a autora e o 1.º réu ainda existia, o 1.º réu casou-se com a 2.ª ré. (resposta ao n.º 13 da base instrutória)
Aos 2 de Março de 1987, a 2.ª ré deu à luz uma outra filha, H, do 1.º réu. (resposta ao n.º 14 da base instrutória)
Ainda não há decisão de divórcio no processo de divórcio litigioso (FM1-13-0165-CDL), deduzido pela 2.ª ré contra o 1.º réu. (resposta ao n.º 15 da base instrutória)
A 2.ª ré só tomou conhecimento do casamento entre o 1.º réu e a autora no processo de divórcio litigioso acima referido (resposta ao n.º 16 da base instrutória)
A 2.ª ré estava sempre convencida de que o casamento entre ela e o 1.º réu era válido e legal. (resposta ao n.º 17 da base instrutória) ”
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III – O Direito
1 – Atente-se que a acção foi movida por quem se diz ainda mulher do 1º réu. E foi, aliás, por se achar matrimoniada com ele, através de um casamento celebrado nas Filipinas, que pediu a anulação do casamento posterior celebrado em Macau pelo seu marido (1º réu) com a 2ª ré.
O fundamento, esse, foi alicerçado nos arts. 1504º e 1479º, al. c), do CC.
Na sua contestação a segunda ré concordou com a anulação. Disse, porém, que sempre esteve de boa fé nesse casamento e, por assim ser, a respectiva matéria foi levada à Base Instrutória, tendo merecido resposta afirmativa.
O tribunal decretou a anulação do casamento dos RR, sem qualquer pronúncia, porém, acerca da boa fé da 2ª ré.
No recurso, a ré defende que o tribunal - sob pena de nulidade, que invoca - deveria ter-se pronunciado sobre essa questão (a sua boa-fé), face ao disposto no art. 1519º, nº 2, do CC, mesmo sem ter deduzido reconvenção.
Esta é, pois, a questão a decidir.
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2 – Vejamos.
A ré na sua contestação1 (se a tradução efectuada a partir do texto em chinês é fiel ao seu pensamento), além de pedir a “rejeição” do pedido da autora, requereu ainda, “como pedido subsidiário” e ao abrigo do art. 1520º, nº2, do CC, que ela fosse declarada como única cônjuge de boa fé.
Em audiência de discussão, foi perguntado à ré se aquele pedido devia ser tomado como pedido reconvencional, ao que foi respondido que não, que essa não era a sua intenção.
E por ser assim, o tribunal não tomou posição sobre esta questão da boa fé invocada pela contestante, ora recorrente.
Estaremos, então, perante a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC, tal como o defende a recorrente?
Não cremos.
É certo que numa situação, diríamos, normal a sentença anulatória reconhecerá a boa fé de ambos ou somente de um dos cônjuges (Antunes Varela, Direito da Família, I, vol., 5ª ed., Livraria Petrony, pág. 305). Mas essa parece ser a situação comum em que o autor, além da anulação do casamento, pede o reconhecimento da sua boa fé. É uma situação em que as partes do casamento anulável, ou estão do mesmo lado da barricada, ou são sujeitos processuais com posições antagónicas, mas capazes de pugnarem pela defesa das suas posições jurídicas substantivas, seja pela via do pedido da acção, seja pela via do pedido reconvencional. Tais pretensões, paralelas ou cruzadas, irão ser por certo avaliadas na sentença que se pronunciar sobre os motivos da invocada invalidade, de modo que um ou ambos sejam atingidos por elas e em que a boa fé seja reconhecida a um ou aos dois.
Mas este caso parece divergir do habitual, na medida em que quem na acção pede a anulação não é a segunda esposa, mas sim a primeira. Na parte passiva está a 2ª ré numa acção de anulação do casamento pedida pela 1ª esposa e em que o causador disto tudo (o 1º réu) está igualmente na posição passiva da demanda. Ou seja, não parece ser possível decretar-se a boa fé exclusiva da 2ª ré até porque o 1º réu seria atingido por uma tal sentença sem ter a possibilidade de se defender de uma tal pretensão.
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3 - Sabemos muito bem que a boa fé neste caso se presume, nos termos abstractos do art. 1520º do CC. E é certo que nos autos ninguém contrariou tal presunção, tendo a ré conseguido demonstrar a ignorância do vício causador da anulação (resposta aos quesitos 16º e 17º). À partida, por conseguinte, nenhum obstáculo haveria a que se declarasse a sua boa fé.
Só que aquela matéria de facto, por si só, não pode relevar sem que pudesse ser impugnada pelo 1º réu. E ele não o pôde fazer!
De resto, a declaração de boa fé da 2ª ré não faz parte do dever de decisão do tribunal, se ninguém lhe formulou nenhum pedido formal nesse sentido. Realmente, do art. 1519º do CC nada resulta que imponha ao julgador o dever de declarar oficiosamente a boa fé dos cônjuges do casamento anulado. Mas, estando na disponibilidade da 2ª ré o ter interposto a acção, bem podia ela cumular com o pedido principal de declaração dos efeitos do casamento putativo (no direito comparado, Ac. STJ, de 15/03/1988, Proc. nº 076048).
Ora, se o pedido inicial da acção era apenas a anulação do casamento, não podia oficiosamente o tribunal conhecer dos seus efeitos putativos (no direito comparado, Ac. RL, de 7/5/1987, in CJ, 1987, III, pág. 78).
É certo que a ré/recorrente pediu na sua peça contestatória que fosse reconhecida a sua boa fé. Todavia, não o fez em termos processualmente operantes. Quer dizer, parece que não bastaria à ré pedir o reconhecimento como se este pedido fosse algo que fizesse parte de um poder potestativo que vinculasse o julgador e não fosse tido como uma mera pretensão como outra qualquer que pudesse merecer uma oposição das partes interessadas e, finalmente, não fizesse parte de uma avaliação jurisdicional.
Contudo, se em tais termos esse pedido não podia relevar na hipótese concreta, também não podia valer pela via da reconvenção até porque a 2ª ré disse expressamente, como já vimos, que não pretendeu arguir a reconvenção.
De qualquer maneira, também nos parece que a reconvenção estaria fora de causa. É que a reconvenção só poderia ser uma contra-acção contra a autora e não contra o co-réu dos autos (cfr. art. 218º, nº1, do CPC). E sendo assim, que efeitos podia ter uma tal sentença contra o co-réu que apreciasse a pretensão reconvencional apenas contra a autora, apesar de o co-réu ser um dos mais importantes interessados na resolução dessa questão?!
Pensamos, então, que o reconhecimento da boa fé haverá de ser feito em acção de apreciação positiva intentada pela 2ª ré contra o 1º réu e, segundo parece, também contra a aqui autora, mas não no âmbito dos presentes autos.
Ou seja, e em suma, se a boa fé é um instituto que só é útil à 2ª ré enquanto fundamento para conferir eficácia ao casamento putativo, somos a pensar que, ou ela formula o pedido em acção própria contra a autora e o 1º réu com esse exclusivo propósito (caso em que futuramente, e dotada de uma sentença favorável, poderá fazê-la valer contra terceiros com a força ou autoridade de caso julgado), ou então em acção destinada a obter os efeitos putativos específicos do casamento anulado numa situação material concreta onde defenda os direitos próprios de uma situação jurídica substantiva que acuda aos seus intentos enquanto cônjuge (putativa) de boa fé.
Entendemos, pois, que não foi cometida nenhuma nulidade, nem ofendida qualquer regra processual ou substantiva nesta matéria.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 19 de Janeiro de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 O 1º réu, marido da autora, casado também com a 2ª ré.
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