Processo n.º 579/2016
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 26/Janeiro/2017
ASSUNTOS:
- Prova pericial
SUMÁRIO :
Será prudente proceder a uma nova prova pericial se o resultado da perícia, em relação a uma questão fulcral, relativa a uma contra-indicação da prescrição de um medicamento, em relação a uma mulher grávida, onde se concluiu que o medicamento tomado não foi causa das lesões verificadas; se o documento relativo à bula farmacêutica diz exactamente o contrário, isto é, que a toma do referido medicamento é susceptível de causar aquelas lesões; se da perícia médica, integrada por dois médicos que não falam português, resulta que esse documento, escrito nessa língua, ou outro, com base noutra fonte, relativamente ao medicamento ministrado, não foi levado em conta, situação, aliás, acautelada, desde logo por esses mesmos Senhores Peritos.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 579/2016
(Recurso Civil)
Data : 26/Janeiro/2017
Recorrente : Recurso Final / Recuros Interlocutório
- A
Recorrida : - B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. A, Autora, notificada do despacho de admissão do recurso, interposto de um despacho interlocutório que não admitiu a produção de nova prova pericial, vem apresentar as suas ALEGAÇÕES DE RECURSO, o que faz, em síntese conclusiva:
A. O despacho recorrido padece de ilegalidade é deve ser revogado, por, ao manter como válido e como suficiente, um relatório pericial formulado em condições de manifesta incapacidade de dois dos peritos em elaborá-lo, violar Ao não invalidar a perícia e ordenar nova perícia ou, no mínimo, ao não ordenar segunda perícia, o despacho recorrido viola os arts. 491°, 496°/4, 502°, 503°/1, 504°/1, 510°/1 do CPC.
B. Dois dos três peritos não tiveram acesso ao conteúdo de grande parte dos documentos médicos enviados pelo Tribunal (por não dominarem a língua em que estavam escritos), relativos à informação e à histórica clínicas da recorrente, tendo declarado que não os tomaram em consideração na discussão e na elaboração do relatório.
C. Os peritos acrescentaram que não podem garantir que, por esse facto, não podem garantir um conteúdo correcto e sem erros.
D. A incapacidade para conhecer o conteúdo da informação clínica deveria ter sido causa de escusa e impedimento, nos termos do art. 493° do CPC, pois sem conhecerem tais documentos os Ex.mos peritos não poderiam agir com a diligência exigida pelo art. 491°/1 (aplicáveis via art. 496°/4 também do CPC).
E. Estava ao dispor dos Ex.mos peritos solicitar as diligências necessárias junto do Tribunal: art. 504°/1 do CPC, as quais não foram solicitadas.
F. Acresce que os peritos formularam um juízo que contraria um facto de conhecimento geral: que relativamente ao "Bactrim DS não está contra-indicada a sua toma durante a gravidez, incluindo a fase inicial." Isto não é verdade, pois o folheto informativo do remédio diz que o mesmo está contra-indicado para grávidas.
G. O Tribunal deveria ter invalidado a primeira perícia e ordenado nova perícia, nos termos dos arts. 510° e ss. do CPC, ou, no mínimo, ordenar segunda perícia, como foi requerido.
H. O documento de fls. 975 é inválido, pois é assinado somente por dois médicos, não pelos três médicos que formaram o colectivo de peritos.
I. Nesse documento, os dois peritos esclarecem que "Os dois médicos não sabem português, não conseguem entender os documentos enviados pelo Tribunal, tanto o despacho judicial, como a história clínica" e que "Neste processo, não conseguimos garantir um entendimento correcto sem erros do conteúdo do documento …".
J. Ao não invalidar a perícia e ordenar nova perícia, bem como ao não ordenar segunda perícia, o despacho recorrido viola os arts. 491°, 496°/4, 502°, 503°/1, 504°/1, 510°/1 do CPC.
2. Este recurso não foi contra-alegado.
3. A, Autora, notificada do despacho de admissão do recurso, interposto da sentença proferida a final, vem apresentar as suas ALEGAÇÕES DE RECURSO, o que faz, em síntese final:
A. A Sentença assentou a sua decisão no relatório pericial.
B. A Recorrente havia já alegado a invalidade do relatório pericial como meio de prova, tendo interposto recurso, que foi admitido com subida diferida, o qual deverá subir com o recurso da sentença.
C. A recorrente interpôs recurso da sentença, o qual foi admitido. Os motivos pelos quais a recorrente discorda da Sentença consistem no facto de o Tribunal ter tomado em consideração o relatório pericial. Assim, este recurso tem objecto similar ao anteriormente interposto, para onde se remete e se considera aqui integralmente reproduzido.
D. Não se trata de uma situação prevista no art. 602°/2 do CPC, pelo que o recurso deve subir para que o Tribunal de Segunda Instância conheça do recurso de 12/03/2015.
E. Os motivos pelos quais o relatório pericial não poderia servir de prova constam das alíneas seguintes destas conclusões.
F. A incapacidade para conhecer o conteúdo da informação clínica deveria ter sido causa de escusa e impedimento, nos termos do art. 493° do CPC, pois sem conhecerem tais documentos os Ex.mos peritos não poderiam agir com a diligência exigida pelo art. 491°/1 (aplicáveis via art. 496°/4 também do CPC).
G. Estava ao dispor dos Ex.mos peritos solicitar as diligências necessárias junto do Tribunal: art. 504°/1 do CPC, as quais não foram solicitadas.
H. Acresce que os peritos formularam um juízo que contraria um facto de conhecimento geral: que relativamente ao "Bactrim DS não está contra-indicada a sua toma durante a gravidez, incluindo a fase inicial." Isto não é verdade, pois o folheto informativo do remédio diz que o mesmo está contra-indicado para grávidas.
I. O Tribunal deveria ter invalidado a primeira perícia e ordenado nova perícia, nos termos dos arts. 510° e ss. do CPC, ou, no mínimo, ordenar segunda perícia, como foi requerido.
J. O documento de fls. 975 é inválido, pois é assinado somente por dois médicos, não pelos três médicos que formaram o colectivo de peritos.
K. Nesse documento, os dois peritos esclarecem que "Os dois médicos não sabem português, não conseguem entender os documentos enviados pelo Tribunal, tanto o despacho judicial, como a história clínica" e que "Neste processo, não conseguimos garantir um entendimento correcto sem erros do conteúdo do documento ... ".
L. Ao não invalidar a perícia e ordenar nova perícia, bem como ao não ordenar segunda perícia, o despacho recorrido viola os arts. 491°, 496°/4, 502°, 503°/1, 504°/1, 510°/1 do CPC.
4. Também este recurso não foi contra-alegado.
5. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 11 de Maio de 2010, a Autora dirigiu-se ao estabelecimento comercial de C GROUP, com a designação C GROUP; sita na Av. xxx, nºs xx a xx, edf. xxxxx, xº andar x, em Macau. (alínea A) dos factos assentes)
- No atendimento a Autora disse que pretendia realizar um exame pré-natal a fim de saber se encontrava grávida e ser consultada por estar com febre e sentir uma dor lombar no lado esquerdo. (alínea B) dos factos assentes)
- Foi respondido à Autora que lhe podiam ser prestados aqueles serviços. (alínea C) dos factos assentes)
- A seguir chamaram a Autora a um gabinete onde foi atendida pela Dra. D, ora 2ª Ré. (alínea D) dos factos assentes)
- Após a realização de exame à urina da Autora, a 2ª Ré informou-a de que estava efectivamente grávida de 5 semanas e 6 dias. (alínea E) dos factos assentes)
- Relativamente aos outros dois sintomas, a 2º Ré disse à Autora que os mesmos eram resultado de uma infecção urinária. (alínea F) dos factos assentes)
- Para tratamento da infecção referida em F), a 2ª Ré prescreveu à Autora um suplemento vitamínico e Bactrim DS, de 800mg, indicando-lhe que tomasse este medicamento duas vezes por dia, durante 14 dias, num total de 28 comprimidos. (alínea F1) dos factos assentes)
- No dia 24 de Maio a Autora voltou ao estabelecimento de C GROUP onde foi atendida novamente pela 2ª Ré. (alínea G) dos factos assentes)
- A 2ª Ré aconselhou a Autora a ir de imediato aos serviços de urgência de um hospital para ser tratada, tendo escrito uma nota para entregar ao médico que ali a atendesse. (alínea G1) dos factos assentes)
- A Autora decidiu ir de imediato aos Serviços de Urgência do Hospital Conde S. Januário. (alínea G2) dos factos assentes)
- A sair do internamento o Hospital Conde S. Januário apresentou à Autora uma factura pelos serviços prestados, nomedamente análises, taxa de internamento, exames imagiológicos, inspecções e medicamentos, no montante de MOP$61,592.00. (alínea H) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- A Autora iniciou no dia 11 de Maio de 2010 o tratamento prescrito referido na alínea F.1 dos Factos Assentes. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- No dia 23 de Maio de 2010, a Autora voltou a sentir febre e apareceram-lhe manches vermelhas nas faces. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- As manchas alastraram ao pescoço e tornaram-se muito mais visíveis, a febre aumentou, a Autora começou a sentir dores no corpo, a sentir dificuldades em respirar. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Nos serviços de Urgência do Hospital Conde S. Januário, o médico que observou a Autora, prescreveu-lhe diversos medicamentos com indicação de que tinha de os começar a tomar imediatamente. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- De 24 para 25 de Maio as manchas acentuaram-se, o rosto da Autora inchou, estenderam-se a quase todo o corpo e surgiram erupções cutâneas. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- A febre subiu e com dificuldade de respiração. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Com o alastamento da infecção cutânea o olho esquerdo ficou vermelho. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Por isso, deslocou-se novamente ao Serviço de Urgências do Hospital Conde S. Januário nesse mesmo dia 25 de Maio. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- A Autora sofria da Sindroma de Steven-Johnson e que esse seu estado de saúde era consequência de ter tomado o medicamento Bactrim DS. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- A Autora foi internada na Unidade de Cuidados Intensivos onde permaneceu durante 24 dias. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- A pele do corpo queimou, começou a escamar e a descascar e sentia dores muito fortes, o que a impedia de movimentar o corpo, precisando de ajuda das enfermeiras mesmo para mudar de posição. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- Esteve todo o tempo entubada pela boca, com um tubo de alimentação e um cateter, pelo que não conseguiu falar. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- A infecção cutânea alastrou também para o olho direito, no qual apareceu uma bolsa de líquido e um pequeno quisto junto na parte interna da pálpebra superior. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- A Autora teve alta hospitalar em 18 de Junho de 2010. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Após a alta, a Autora continuou a submeter-se às consultas de cirurgia plástica, oftalmologia e dermatologia. (respostas aos quesitos 21º e 26º da base instrutória)
- À data de registo da acção, ainda tem de fazer tratamento à pele, colocando e massajando com diferentes cremes. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- À data de 15/07/2011, a Autora ainda tinha de colocar gotas diárias nos olhos. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Por causa do pequeno quisto no olho direito a Autora veio a fazer uma intervenção cirúrgica em 15/07/2011, que a forçou a um dia de internamento. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- As manchas na pele foram atenuando. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
- A síndroma de Steven-Johnson é uma forma grave e por vezes fatal do eritema multiforme ou poliforme, que atinge todo o revestimento do corpo (tegumento) e as mucosas, nomeadamente a oral e ocular e que pode levar a insuficiência respiratória, complicações palmonares e febre. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- A síndroma de Stevens-Johnson é uma doença rara mas potencialmente fatal, devendo, ser conhecida de todos os médicos. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- Caracteriza-se por lesões descamativas da pele e das mucosas, que surgem normalmente após a exposição a fármacos. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- A erupção cutânea pode ocorrer nos olhos e no trato respiratório, ocasionando processos de necrose a que, como sucedeu com a Autora, pode evoluir para uma forma mais grave, a necrólise epidérmica tóxica (NET), na qual a camada superior da pele se deprende em camadas, sendo o descolamento epidérmico superior a 30%. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- A Autora contraiu a síndroma Steven-Johnson e passou por toda a situação descrita em consequência da toma do Bactrim DS. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- Durante um mês a Autora sentiu-se angustiada com a dúvida e incerteza sobre as consequências da doença, particularmente durante os primeiros meses, sem saber quando terminaria o alastramento da erupção cutânea, que órgãos poderiam vir a ser afectados, se as lesões seriam irreversíveis e sem saber se ficaria cega do olho esquerdo. (resposta ao quesito 32º da base instrutória)
- Sentiu-se também angustiada com a possibilidade de interrupção da gravidez ou de o feto ser afectado pela sua doença e nascer com alguma insuficiência psicomotora. (resposta ao quesito 33º da base instrutória)
- Sentiu uma profunda solidão durante as mais de quatro semanas em que esteve internada e entubada, sem poder falar e sem se poder movimentar. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)
- Sentiu-se e sente-se ainda hoje amargurada. (resposta ao quesito 35º da base instrutória)
- Ao caminhar na rua passou por situações humilhantes, pois as pessoas muitas vezes se afastavam dela por a julgarem portadora de uma doença infecto-contagiosa. (resposta ao quesito 36º da base instrutória)
- A imagem deformada que a Autora teve durante mais de dois anos causou-lhe sofrimento e fez-lhe perder a auto-estima e confiança. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- Que a Autora despendeu em consultas, análises e exames de rotina, realizados no Hospital Conde. S. Januário, entre 21/06/2010 e 24/06/2011, o montante global total de MOP$820.00. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)
- A Autora despendeu ainda MOP$526.00, no dia 11 de Maio de 2010. (resposta ao quesito 40º da base instrutória)
- A Autora esteve sem poder trabalhar de 11 de Maio de 2010 até 14 de Agosto de 2010, e a sua entidade patronal não lhe pagou os salários de Junho , Julho e primeira quinzena de Agosto. (resposta ao quesito 41º da base instrutória)
- A Autora auferia então, como aufere hoje, um salário mensal de MOP$4,200.00. (resposta ao quesito 42º da base instrutória)
- Ao atentar a Autora a 2ª Ré chegou a questionar sobre a sua história clínica, incluindo se a Autora tinha ou não alergias a medicamentos. (resposta ao quesito 45º da base instrutória)
- Bactrim DS 800mg/160mg é um antibiótico recomendado para combater uma infecção de largo espectro. (resposta ao quesito 46º da base instrutória)
- O antibiótico Bactrim DS 800mg/160mg pode ser tomado no início da gravidez, sempre que os riscos associados à infecção em causa o justifiquem, no caso da grávida que tenha deficiência/insuficiência do ácido fólico, a prescrição do ácido fólico é necessária, sendo que a probabilidade de contrair a síndroma de Steven-Johnson se corresponde a 5-7 por cada milhão. (respostas aos quesitos 47º e 48º da base instrutória)
- A Autora voltou à clínica no dia 18, tendo sido observada pelo Dr. E, não tendo manifestado qualquer reacção alérgica ao medicamento prescrito. (resposta ao quesito 49º da base instrutória)
- No dia 24 de Maio, a 2ª Ré identificou os sinais de reacção, alérgica e informou a Autora que chamaria uma ambulância para a transportar até ao hospital, o que foi rejeitado pela Autora e pelo seu marido. (resposta ao quesito 50º da base instrutória)”
III – FUNDAMENTOS
1. O caso/questões a resolver
O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se se foi legal a perícia médica realizada, seja em termos substantivos, seja em termos formais.
Na presente acção a A. demandava as Rés, formulando um pedido de indemnização por incumprimento dos deveres médicos a que estariam adstritas, na sequência de um tratamento médico a que aquela se sujeitou, em particular por lhe ter sido ministrado pela médica 2º Ré na clínica da 1.ª Ré um medicamento que estaria contra-indicado para as grávidas e susceptível de causar, nesses casos, lesões graves, como terá sido de facto.
Este é o caso que veio a ser julgado improcedente, basicamente por não se ter comprovada a referida contra-indicação, com base em prova perícia realizada.
Foi, desde logo interposto recurso do resultado dessa perícia, depois de se ter alegado, junto do Mmo Juiz que essa perícia desconsiderara a existência da bula médica que reportava aquela contra-indicação, mais se invocando a irregularidade invalidante da resposta a uma reclamação sobre a perícia r estar apenas assinada por dois peritos.
Como está bem de ver, o recurso que foi interposto da decisão final depende em grande medida se não totalmente, do desfecho que tenha o recurso interlocutório, devendo ser necessariamente reponderada a decisão se se concluir diferentemente em termos da prova pericial produzida.
Razão por que vamos começar por analisar o recurso interlocutório relativo à prova pericial.
2. É do seguinte teor o despacho que foi objecto do recurso interlocutório:
“Segundo a resposta dada pelos dois peritos médicos, mesmo que estes não saibam português, conseguem entender a história clínica da Autora mediante a tradução verbal para inglês de uma terceira pessoa, afirmando que isso não constitui um obstáculo para o trabalho da perícia nem prejudica as conclusões chegadas no relatório pericial.
Com efeito, a história clínica de paciente não é sempre um elemento indispensável para a realização da perícia em todos os casos, às vezes, só serve como uma mera referência, cabe aos médicos quem desempenham as funções como peritos médicos decidir a relevância sua no caso concreto, sendo um meio necessário, então, os peritos podem pedir ao Tribunal que lhes sejam facultar uma tradução formal do documento conforme o art. 504, n.º 1 do CPC, no entanto, isso não aconteceu nos presentes autos, se calhar os peritos consideram que já dispõem os elementos suficientes para responder o objecto da perícia, por isso, não se vê qualquer razão para dar sem efeito o relatório pericial em causa.
Quanto ao pedido de realização da segunda perícia, salvo o devido respeito, o Tribunal entende que os fundamentos alegados pela Autora não têm muita substância para justificar a realização da segunda perícia, uma vez que a precaução que consta no folheto do medicamento se trata duma sugestão sobre o uso do medicamento, não se vê só por causa disso a necessidade de proceder à segunda perícia, assim, vai indeferido o requerimento neste aspecto.”
3. A recorrente foi notificada do relatório pericial de fls. 957 e ss..
Na primeira folha do relatório pericial, os Ex.mos peritos referem: "Dois dos médicos sendo chineses não puderam entender a informação clínica dos documentos enviados, dado estarem redigidos em Português. Assim a discussão apenas focou nas questões traduzidas pelo Hospital".
Daqui resulta, desde logo, que houve documentos cujo teor foi desconsiderado, qual fosse o do folheto que refere as contra-indicações de um dado documento que estava escrito em português, língua que dois dos peritos não dominavam.
É de crer que todos os documentos com informação médica enviados pelo Tribunal eram relevantes para o juízo pericial, motivo por que foram enviados, não bastando a história clínica enviada pelo Hospital.
Importava apurar se as lesões sofridas o foram por causa da toma do referido medicamento ministrado pela 2.º Ré na clínica pertença da 1ª.
Antes da prolação do despacho que indeferiu o pedido de repetição da perícia foram feitas diligências, junto dos médicos a fim de indagar da ponderação/avaliação efectuada, tendo dito dois deles – os que não dominavam a língua portuguesa - que "não puderam entender a informação clínica dos documentos enviados".
A recorrente prende-se com este detalhe, o de o esclarecimento ter sido apenas sido assinado por dois médicos, pretendendo-se que o fosse por três, tal como como ocorreu com a perícia médica, mas esse reparo não será de relevar, porquanto se trata apenas de um esclarecimento sobre uma análise que respeitava apenas àqueles dois médicos.
Alega a recorrente que pelo facto de não dominarem a língua portuguesa, em que um dos documentos que deviam ter sido analisados estava escrito em português, tal constituiu a incapacidade para conhecer o conteúdo da informação clínica, pelo que deveria ter sido causa de escusa e impedimento, nos termos do art. 493° do CPC, pois sem conhecerem tais documentos os Ex.mos peritos não poderiam agir com a diligência exigida pelo art. 491°/1 (aplicáveis via art. 496°/4 também do CPC).
Não acompanhamos esta argumentação. O importante não é o de o documento estar em língua portuguesa, ter ou não sido traduzido mediante as diligências que devesse ter sido empreendidas, nomeadamente nos termos do art. art. 504°/1 do CPC, mas sim o de saber se o seu conteúdo ou as disposições ou contra-indicações nele contidas se foram ou não apreciadas. Isto é, o que importa saber é se os senhores peritos médicos levaram em conta a toma do referido medicamento e as suas contra-indicações para um estado de gravidez. Na verdade, bem podia o documento nem sequer estar lá e os senhores peritos saberem ou informar-se sobre as contra-indicações do medicamento em causa. Todos sabemos quão aturadas e prolongados são os testes laboratoriais antes de um medicamento ser lançado no mercado, sendo esse um aspecto que não pode deixar de ser relevado na prescrição médica.
4. Os Senhores Peritos concluíram que relativamente ao "Bactrim DS não está contra-indicada a sua toma durante a gravidez, incluindo a fase inicial" contra o que claramente se contém no folheto deste medicamento, onde consta o seguinte: "Deve evitar-se a utilização de cotrimoxazol na gravidez humana, principalmente no primeiro trimestre"; e ainda "Deve evitar-se a utilização de Bactrim durante a última fase da gravidez".
Tal informação não deixa de estar acessível nos sites e fontes da especialidade, como alega a recorrente, no site da FDA (Food end drug administration: "FDA pregnancy category D. Do not use sulfamethoxazole and trimethoprim if you are pregnant". Essa, salvo melhor opinião, é uma questão de facto: se é contra-indicado ou não - e não uma questão de juízo médico apreciativo da questão.
5. Na incerteza sobre essa ponderação a recorrente requereu nova perícia, tendo deixado à consideração do Tribunal usar os termos previstos nos arts. 510° e ss. do CPC para a segunda perícia (sem prejuízo de ficar sem efeito a primeira perícia), ou ordenar nova primeira perícia em vista do vício assacado à que foi junta aos autos, tudo em vista do facto de dois dos três médicos peritos não compreenderem a informação clínica dos documentos enviados para apreciação, o que poderá ter afectado de forma relevante o juízo pericial solicitado.
Digamos que a parte perde alguma razão quando insiste por uma nova perícia, se na base desse requerimento estava apenas uma discordância quanto ao resultado ou quanto às conclusões formuladas sobre os elementos fornecidos, mas parece que já recupera essa razão se pretende abalar o resultado da perícia com elementos que a deviam integrar e que foram desconsiderados. Especialmente, se numa primeira aparência o teor desses elementos e a informação fornecida parecem desmentir os resultados formulados.
Foi nesse contexto que a recorrente requereu que fosse dada sem efeito a perícia realizada pelos motivos supra alegados e que fosse ordenada a realização de nova perícia, sobre o mesmo objecto, constituída por novos médicos que possam compreender a informação clínica dos documentos enviados para apreciação, deixando à consideração do Tribunal ordenar segunda perícia nos termos dos arts. 510° e ss. do CPC (sem prejuízo de ficar sem efeito a primeira perícia), ou nova primeira perícia em substituição da junta aos autos.
É verdade que o Tribunal recorrido solicitou esclarecimento aos peritos (fls. 972), os quais responderam a fls. 975 e dessa resposta resulta claramente que esse elemento que se afigura essencial – a da contra-indicação do medicamento em mulheres grávidas nos aludidos períodos – não foi levado em linha de conta.
A recorrente insiste com o facto de que qualquer esclarecimento aos peritos tem de ser pedido aos três peritos e ser dado pelos três peritos, não somente pelos médicos que declararam não compreender documentos relativos à história clínica da recorrente, mas, pelas razões acima aduzidas somos a não dar uma grande importância a esse facto, bastando-nos para o que interessa o reconhecimento de que não terá sido ponderado o conteúdo do mesmo ou a prescrição ou proscrição obtida por outra fonte.
Certo é que os Exmos Senhores Peritos referem que "Os dois médicos não sabem português, não conseguem entender os documentos enviados pelo Tribunal, tanto o despacho judicial, como a história clínica, tendo necessitado de tradução verbal para inglês de uma terceira pessoa. Neste processo, não conseguimos garantir um entendimento correcto sem erros do conteúdo do documento transmitido por cada palavra no documento", reafirmando o que já fora dito no relatório pericial.
Nesta conformidade, somos a acompanhar o entendimento de que se dois dos médicos não puderam entender a informação clínica dos documentos enviados e se reconhecem que não conseguem garantir um entendimento correcto e sem erros dos documentos clínicos, e se a conclusão a que chegam na resposta ao quesito 2 é desmentida por um documento que se reveste de tantos estudo e de tão aturada investigação laboral e científica, e estamos crer que a atitude mais segura será a de conferir e confrontar essas díspares proposição e conclusão formulada.
Impor-se-á alguma prudência e procurar sanar essa contradição entre diferentes elementos probatórios.
Afigura-se-nos ter sido aconselhável o deslindamento e a sanação dessas dúvidas, devendo essa superação passar pela realização de uma segunda perícia, tudo visto nos termos dos artigos 510º a 512º do CPC.
Razão por que não se deixa de julgar procedente este recurso interlocutório.
6. Procedendo o recurso interlocutório, havendo necessidade de produção de nova prova, o julgamento não deixará de cair, tanto mais que quanto se decidiu também assentou na produção da prova pericial agora posta em crise.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em julgar procedente o recurso interlocutório interposto, devendo proceder-se à realização de nova prova pericial e, consequentemente, anulando-se o procedimento subsequente, proceder-se a novo julgamento, pelo que prejudicado se mostra o conhecimento do recurso interposto da sentença proferida a final.
Sem custas, vista a posição da parte contrária em ambos os recursos.
Macau, 26 de Janeiro de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
579/2016 19/19