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Proc. nº 816/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 26 de Janeiro de 2017
Descritores:
- Marcas
- Caducidade
- Utilização séria
- Justo motivo

SUMÁRIO:

I. Nos termos do art. 231º do RJPI o registo de marca caduca por falta de utilização séria durante três anos consecutivos, salvo ocorrendo justo motivo.

II. Existe “justo motivo” quando o não uso não provém da vontade do titular do registo, nem lhe é imputável a título de mera culpa. Tal não é o caso quando um determinado interessado não faz deliberadamente o uso da marca enquanto não os tribunais não decidem os diversos conflitos marcários que o opõem a outro em disputas de marcas semelhantes.




Proc. nº 816/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
“A Limited”, sociedade comercial com sede social em XX, XX Tower, XX, Central, Hong Kong, (doravante a “Recorrente”), interpôs recurso judicial do despacho n.º 486/DPI, de 2015-11-27, da Chefe do Departamento de Propriedade Intelectual dos Serviços de Economia, ---
Que declarou a caducidade por falta de utilização da marca nominativa correspondente a B que tomou o número N/4XXX8, para assinalar serviços incluídos na classe 43, apresentado por ---
C Limitada, com sede em Macau, Rua XX n.º XX, XX, XX.º andar.
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Na oportunidade foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso.
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É contra essa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente “A Limited”, formulou as seguintes conclusões:
“i) O Tribunal a quo considerou que o não uso da marca constituiu uma decisão decorrente da vontade livre e esclarecida da Recorrente, dado nada impedia a Recorrente de utilizar a marca.
ii) Tal conclusão não está correcta, não se coadunando com a realidade dos factos que levaram ao não uso da marca pela Recorrente.
iii) Abre-se uma excepção para uma marca que não seja utilizada durante 3 anos seguidos, qual seja que o não uso derive da existência de justo motivo, conforme parte final do art. 232º do RJPI.
iv) A jurisprudência e doutrina mais avalizada ou autorizada, considera que o justo motivo para o não uso constituem motivos que se reportem a “obstáculos que tenham uma relação directa com o não uso dessa marca e que tornem impossível ou pouco razoável o seu uso, igualmente que sejam independentes da vontade do titular” - Cfr. Couto Gonçalves in Manual de Direito Industrial, 4ª Ed., p.316 e Ac. do TJ de 14.06.2007, aí citado.
v) O Tribunal a quo entendeu que “a razão alegada pela Recorrente (...), independentemente de tal razão se considerar provada, não impede que a falta de uso da marca seja imputável e imputada à própria Recorrente. (...) Juridicamente, o critério normativo do justo motivo não está verificado.”.
vi) Porém, a Recorrente viu-se forçada a suspender o início da sua actividade em Macau sob a marca “D” devido a obstáculos colocados pela Parte Contrária que surgiram após o registo desta marca em seu nome e que com ela se relacionam directamente.
vii) Como resulta do registo da marca que se juntou como Doc. 3 nos autos de primeira instância, a Recorrente solicitou o registo da marca em causa em 17-06-2010 e o mesmo foi-lhe concedido em 25-10-2010.
viii) Entretanto, a Parte Contrária deu início a uma série de processos administrativos e judiciais onde se discute a titularidade dos caracteres “D” incluídos na marca em apreço e que, por conseguinte, conduziram ao adiamento do início da utilização da marca em Macau pela Recorrente.
ix) Desde o início do processo de registo da marca da Recorrente em Macau, que a questão da titularidade dos caracteres “D”, que integram a marca impugnada e constituem a sua parte preponderante, está a ser discutida nas instâncias administrativas e judiciais, na Direcção dos Serviços de Economia e nos Tribunais de Base e de Segunda Instância de Macau.
x) O que significa que desde a entrada da acção judicial supra referida, intentada pela Parte Contrária em 3-05-2011, que as partes se encontram suspensas de decisões administrativas e judiciais que determinem quem pode, legitimamente, usar e registar em Macau marcas que incluam os caracteres “D”.
xi) Por conseguinte, a pendência dos referidos litígios judiciais e administrativos, constitui obstáculo com uma relação directa, ao não uso da marca e que torna impossível ou pouco razoável o seu uso e igualmente independente da vontade da Recorrente.
xii) De acordo com a sábia doutrina de Américo Silva Carvalho, deve ser considerado justo impedimento o motivo que não tenha permitido o uso da marca a “uma pessoa normal, diligente e devidamente informada e cuidadosa no cumprimento das obrigações que impendem sobre ela.” (destaque nosso)
xiii) No mesmo sentido, decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia, em acórdão de 14 de Junho de 2007, no Processo C-246/05 (Armin Häupl v. Lidl Stiftung & Co. KG), que estabeleceu que também pode ser considerado como justo motivo para a não utilização séria de uma marca “os obstáculos (...) que tornem impossível ou pouco razoável o seu uso, e que sejam independentes da vontade do titular da referida marca.” (destaque nosso)
xiv) Por sua vez, Luís Couto Gonçalves e António Campinos consideram que a apreciação da aplicação prática deste critério deverá ser feita de modo casuístico (“Código da Propriedade Industrial Anotado”, António Campinos e Luís Couto Gonçalves, Almedina, 2015, 2ª Edição Revista e Actualizada, p. 462), isto é, cada caso deverá ser tratado de modo singular.
xv) Consideração que deverá ser tida em conta no presente caso.
xvi) A decisão de não usar a marca provém de um acto voluntário da Recorrente, mas esta não se absteve de usar a marca apenas porque simplesmente não quis ou não lhe apeteceu!
xvii) Seria muito pouco prudente que a Recorrente usasse a marca impugnada em Macau correndo sério risco de vir a ser responsabilizada pela infração de direitos reivindicados pela Parte Contrária sobre o sinal “D”.
xviii) Sendo de relevar que, como no caso concreto se está perante registo de marca (já concedido), a Recorrente não estaria sequer abrangida pela protecção provisória para efeitos de indemnização consagrada no Art. 7º do RJPI.
xix) A Recorrente agiu também motivada pelo respeito ao Princípio da Boa-fé, o qual estipula, em termos gerais, regras de conduta tendo em conta as legítimas expectativas de terceiros.
xx) Não se afigura justo que a Parte Contrária se possa aproveitar da falta de uso da marca, sendo parte nos litígios pendentes entre as partes e assim vir a apropriar-se dela. Certamente, a aceitar-se esta hipótese, descarateriza-se o regime jurídico da propriedade industrial - parece-nos que este sim é um jogo especulativo dos direitos industriais!
xxi) No caso sub judice não pode entender-se que a Recorrente visa “reservar” o seu lugar à custa de um registo que não usou simplesmente por que não quis! É preciso perceber que a Recorrente não usou a marca de forma plena (note-se que a Recorrente fez uso da marca em jornais com circulação em Macau), devido à existência de motivos justificativos, provocados pela Parte Contrária, que tornaram pouco razoável o uso normal da marca.
xxii) O pedido de declaração de caducidade em nome da Parte Contrária, nas circunstâncias transcritas, subverte o próprio sistema de protecção de marcas.
xxiii) A pendência dos processos mencionados, nos quais a Parte Contrária é parte, constitui obstáculo ao exercício, em pleno, da actividade da Recorrente e são o único motivo (exterior à Recorrente) que a leva a que não use ab initio a marca impugnada na sua actividade comercial em Macau - notando-se, no entanto, que ela é usada em Hong Kong, território onde está sediada e onde é proprietária de vários e famosos estabelecimentos.
xxiv) Motivo este que não é imputável à Recorrente, visto que decorre da existência de uma intensa disputa de direitos de propriedade industrial entre as partes não só em Macau, mas também em Hong Kong e Zhuhai.
xxv) Em situações como esta, o período de tempo necessário para a conclusão e a resolução dos processos pendentes não deve beneficiar nenhuma das partes e não deve relevar para a contagem do prazo de 3 anos para o cancelamento do registo da marca, previsto no art. 231º al. b) do nº 1 do RJPI.
xxvi) Não se pode olvidar que a principal beneficiária da declaração da caducidade do registo de marca em preço é a Parte Contrária. Por conseguinte, o pedido de declaração de caducidade pela Parte Contrária deve ser entendido como o resultado da intenção contrária aos usos honestos do comércio, visando apropriar-se de uma marca reconhecida não só em Hong Kong como em Macau, pois é utilizada em produtos acessíveis aos seus residentes, causando no consumidor a sensação de que se trata de produtos e serviços da Recorrente em Macau, confundindo-o quanto à sua proveniência.
xxvii) Não obstante o Princípio da Territorialidade (que estipula que o uso da marca tenha de ocorrer no âmbito territorial onde o registo lhe confere protecção), não se deve negligenciar a proximidade territorial entre as duas regiões o que, juntamente com a notoriedade das marcas da Recorrente em Hong Kong, leva a que o consumidor de Macau julgue que os produtos da Parte Contrária pertencem à Recorrente.
xxviii) Especialmente porque os produtos de pastelaria da marca E da Recorrente são vendidos ao público em embalagens que apresentam, todas elas, as marcas E e “D”, e porque, de acordo com a douta jurisprudência deste Tribunal, o conceito de consumidor de Macau não se deve restringir aos residentes de Macau, devendo igualmente abranger os turistas oriundos, nomeadamente, de Taiwan, de Hong Kong e do interior da China.
xxix) Acresce que, por tudo o vertido, nos processos pendentes, é a Parte Contrária que age de má-fé desde o início, ao utilizar marcas várias que pertencem à Recorrente e que a Parte Contrária abusivamente começou a utilizar e cujo registo veio a requerer em Macau.
xxx) No pedido de caducidade apresentado à DSE, a Parte Contrária refere que pretende usar a marca em apreço para identificar os mesmos serviços, mas não possui interesse legítimo para o fazer...
xxxi) Como os produtos da Parte Contrária são produzidos em Macau, suscita-se a questão de esta marca, ao ser por si utilizada, ser enganosa quanto à origem dos produtos (o que não é aplicável a Recorrente, pois esta é uma empresa de Hong Kong e muito conhecida dos residentes de Macau), pois o público consumidor poderá julgar que tais produtos pertencem à Recorrente, considerando a sua forte presença em Hong Kong.
xxxii) Do que se conclui que o presente pedido de declaração de caducidade não é mais do que o único meio que a Parte Contrária encontrou para obter registo da marca em Macau, assim obstaculizando ao exercício da actividade da Recorrente neste território, pois à mesma não assiste interesse legítimo para requerer a caducidade do registo da marca em apreço.
xxxiii) É por demais evidente que a Parte Contrária recorre a todos os meios para impedir que a Recorrente prossiga com a sua actividade em Macau, deixando antever que age com manifesta má-fé e em concorrência desleal.
xxxiv) Sem prescindir e caso não se entenda que o motivo alegado para a não utilização da marca é atendível, requer-se ao Tribunal que seja tido em consideração para efeitos de uso da marca, como mais acima se mencionou, que a Recorrente tem publicitado os seus produtos e serviços em jornais de Hong Kong (de que são exemplo os jornais F, G e H, juntos como Doc. 4 no processo administrativo) aos quais os residentes de Macau têm acesso.
DO PEDIDO
Nestes termos e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes, requer-se, muito respeitosamente, que seja considerado procedente o presente recurso e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que revogue a declaração de caducidade da DSE, sendo substituído por outro que declare validade da marca objecto do presente recurso”.
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A entidade administrativa não contra-alegou, limitando-se a oferecer o merecimento dos autos.
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A contra-interessada C Limitada respondeu ao recurso, sem formular conclusões, pugnando pelo seu improvimento.
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
1 - A marca N/4XXX8 B da recorrente foi registada em Macau em 25/10/2010 para os serviços da classe 43 “Fornecimentos e preparação de comida para consumo fora de terceiros; restaurante, café e serviços de fornecimento de refeições”.
2 – Durante 3 anos a recorrente não fez uso da referida marca em Macau.
3 – No dia 12/05/2015 a recorrida particular requereu a declaração de caducidade da marca em apreço.
4 – No dia 27/11/2015 na Direcção dos Serviços de Economia, pela técnica assessora foi proferido o seguinte parecer:
“Do pedido
1. A 12/05/2015, a “C, Limitada” em chinês, “C有限公司”, romanizado como “C Iao Han Cong Si, requereu o pedido de declaração de caducidade da marca N/4XXX8 B registada para serviços incluídos na classe 43.ª do Acordo de Nice1 «Fornecimentos e preparação de comida para consumo fora de terceiros; restaurante, café é serviços de fornecimento de refeições;» em nome de “A Limited”, com sede em Hong Kong, Room XX, XX Tower, XX, Central,
2. O pedido de declaração de caducidade foi publicado no BORAEM n.º 24-II Série de 17/06/2015.
3. Através do of n.º 60990/DPI de 19/05/2015, foi notificado, o representante do titular da marca, Dr. João Encarnação, advogado com escritório em Macau, do pedido de declaração de caducidade.
4. A 20/07/2015, a “A Limited” apresenta a sua resposta.
5. A Requerente fundamenta o seu pedido evocando:
(i) A a titularidade de diversos direitos de propriedade industrial, tais como o Nome ou Insígnia de Estabelecimento n.º E/0XXX31, as marcas registadas na classe 30: N/4XX9, N/5XX3 e N/1XXX6 e ainda detém o direito exclusivo à utilização da Firma “C有限公司”, “C LIMITADA”, em Macau, pelo que, tem legitimidade para o presente pedido.
(ii) A “A Limited” nunca usou a marca B para os serviços de Fornecimentos e preparação de comida para consumo fora de terceiros; restaurante, café e serviços de fornecimento de refeições para os quais requereu o registo do sinal.
(iii) Em termos normativos alicerça-se no artigo 213.º do RJPI, alínea b) do n.º 1, segundo o qual “o registo de marca caduca: (...) Pela falta de utilização séria durante 3 anos consecutivos, salvo justo motivo”.
6. Na Resposta ao pedido de declaração de caducidade da marca, alega, a Respondente, ser reconhecida por deter a maior cadeia de restaurantes de pastelarias de Hong Kong desde 1950 e as suas marcas D estão registadas cm várias jurisdições em todo o mundo, incluindo em jurisdições de língua oficial chinesa e em Macau:
- as marcas «D» N/3XXX5, N/3XXX6 e N/3XXX8, encontram-se registadas respectivamente nas classes 16, 30 e 35.
- as marcas «D» N/3XXX9, N/3XXX0 e N/3XXX2, encontram-se registadas respectivamente nas classes 16, 30 e 35.
7. A Respondente confirma e falta de utilização séria da sua marca e alega como justo motivo ter sido forçada a suspender o início da comercialização directa dos seus produtos, sob a marca D devido a obstáculos que surgiram após o registo desta marca em seu nome e que com ela se relacionam directamente, porque a Requerente deu Inicio a uma série de processos administrativos e processos judiciais onde se discute a titularidade dos caracteres «D» incluídos na marca em apreço e que, por conseguinte, conduziram à protelação do inicio da utilização da marca em Macau pela Requerida.
8. Razão pela qual, agindo de boa-fé e com a preocupação de não violar direitos de terceiros, a Requerida não utilizou a marca para prestar os seus serviços em Macau, até a questão da titularidade das marcas, que incluem os caracteres «D» estar definitivamente decidida.
Do Direito
O Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 97/99/M de 13 de Dezembro estabelece o seguinte procedimento:
«Artigo 52.º
(Pedidos de declaração de caducidade)
1. Os pedidos de declaração de caducidade são apresentados na DSE.
2. Salvo quando o fundamento for a renúncia, o titular do registo é notificado do pedido de declaração de caducidade para responder, querendo, no prazo de 2 meses.
3. A requerimento do interessado, apresentado atempadamente, o prazo a que se refere o número anterior pode ser prorrogado por mais 1 mês.
4. Novas prorrogações por períodos iguais só podem ser concedidas sem oposição expressa da Parte Contrária, e justificadas por motivos atendíveis.
5. Decorrido o prazo de resposta, a DSE decide, no prazo de 1 mês, da declaração de caducidade da patente ou do registo.
Artigo 223.º
(Utilização facultativa da marca)
Sem prejuízo do disposto quanto à caducidade do direito à marca, a utilização desta é facultativa, salvo quanto' aos produtos ou serviços em que a utilização de marca registada seja declarada obrigatória por disposição legal.
Artigo 231.º
(Caducidade do registo de marca)
1. O registo de marca caduca:
a) Nos casos previstos no n.º 1 do artigo 51.º;
b) Pela falta de utilização séria durante 3 anos consecutivos, salvo justo motivo;
(…)
Artigo 232.º
(Utilização séria da marca)
1. É considerada utilização séria da marca:
a) A utilização da marca tal como está registada ou que dela não difira senão em elementos que não alterem o seu carácter distintivo, nos termos do presente diploma, feita pelo titular do registo ou por seu licenciado devidamente inscrito;
b) A utilização da marca, tal como definida na alínea anterior, para produtos ou serviços destinados apenas a exportação;
c) A utilização da marca por um terceiro, desde que sob o controlo do titular e para efeitos da manutenção do registo.
2. A utilização séria da marca de associação afere-se por aqueles que dela fazem uso com o consentimento do titular.
3. A utilização séria da marca de certificação afere-se pelas pessoas habilitadas para dela fazerem uso.
4. O início ou reinício da utilização séria nos 3 meses imediatamente anteriores à apresentação de um pedido de caducidade, contados a partir do fim do período ininterrupto de 3 anos de não utilização, não é tomado em consideração se as diligências para o início ou reinício da utilização só ocorrerem depois do titular tomar conheci menta de que pode vir a ser requerido esse pedido de caducidade.
5. Cumpre ao titular do registo ou a seu licenciado, se o houver, provar a utilização da marca, sem o que esta se presume não utilizada.»
A Doutrina
Como refere Oliveira Ascenção, os direitos industriais não servem para jogos especulativos, para meras reservas de lugar, mas têm contrapartida no desempenho de lima função.2
Luís Couto Gonçalves3 diz que, o uso, que tem vindo a perder importância enquanto modo de aquisição do direito de marca, readquire relevância noutro tipo de situações das quais sobressaem a manutenção do direito de marca (...) evitando-se desse modo que os registos de marcas sejam ocupados por “cimiteri e fantasmi di marchi”.
Para evitar essas situações, a lei de Macau impõe um uso sério da marca, sancionado a não utilização durante três anos consecutivos, caso em que o seu titular fica sujeito à caducidade do respectivo registo, salvo se tiver um justo impedimento para esse não uso.
O uso sério deve ser analisado segundo um padrão médio, o uso efectivo, público e continuado, que uma pessoa normal diligente e devidamente informada e cuidadosa, no cumprimento das suas obrigações, faz da marca4
Configura “Justo motivo” para a não utilização séria da marca tudo que diga respeito a causas de força maior ou casos fortuitos e todas as situações não imputáveis ao titular da marca.5
Determina o n.º 5 do artigo 232 que cumpre ao titular do registo ou a seu licenciado, se o houver, provar a utilização da marca, sem o que esta se presume não utilizada.
Estudo do pedido
Como determina a lei o ónus da prova encontra-se do lado do titular da marca a quem incumbe juntar os elementos de prova sem os quais se presume a não utilização da marca.
(i) Documentos comprovativos da “intenção de uso”.
A Respondente juntou algumas publicações de jornais de Hong Kong com circulação em Macau para provar a intenção de uso da marca, mas as publicações referenciadas só atestam a publicidade em Hong Kong dos seus produtos, nada provam em relação ao uso da marca em Macau, porque o uso de marca fora do Território para o qual esta está destinada não é, de direito, relevante para qualificar de sério o uso da mesma, posto que a realidade exigida ao uso sério da marca corresponde a uma actividade empresarial verdadeira, não aparente ou simulada. (…) Sendo Região de ordenamento jurídico independentes, o uso de marca em Hong Kong não produz efeito de considerar por ter utilizado a marca em Macau, mesmo por meio de publicidade nos jornais e programas televisão de Hong Kong em que a maior parte dose cidadãos de Macau tenha acesso.
(ii) A Respondente invoca como “justo motivo” para o não uso da marca ter sido forçada a suspender o início da comercialização directa dos seus produtos, sob a marca D devido a obstáculos que surgiram após o registo desta marca em seu nome e que com ela se relacionam directamente, porque a Requerente deu inicio a uma série de processos administrativos e processos judiciais onde se discute a titularidade dos caracteres «D» incluídos na marca em apreço e que, por conseguinte, conduziram à protelação do inicio da utilização da marca em Macau pela Requerida.
Com efeito, a Requerente e a Respondente deram inicio a lima verdadeira contenda administrativa e judicial em relação as marcas «D» que coexistem, como se pode verificar numa busca ao ficheiro informático, daí não se considerar que a demanda, entre as partes, seja considerado justo motivo para o não uso, a marca encontrava-se registada desde 25/10/2010.
Conclusões
Assim, salvo melhor opinião, não estando provado pela Respondente o uso sério da utilização da marca N/4XXX8, durante 3 anos consecutivos em Macau, para serviços incluídos na classe 43 do Acordo de Nice, deve ser declarada a caducidade da mesma, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 231 e do n.º 5 do artigo 232, do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 11.º 97/99/M, de 13 de Dezembro.
À consideração superior
Departamento da Propriedade Intelectual, aos 27 de Novembro de 2015.
A técnica superior assessora, principal
XX”
5 – A entidade administrativa proferiu o seguinte despacho datado de 27/11/2015:
“Concordo com a presente informação, pelo que, no uso de competência delegada, nos termos do Despacho nº 5/DIR/2015, publicado no nº 19 do B.O. da RAEM de 13/05/2015, declaro a caducidade do registo de marca nº N/4XXX8, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 231 e do n.º 5 do artigo 232, do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 97/99/M, de 13 de Dezembro.
Publicar a decisão no B.O.
Notifique-se as partes”.
***
III – O Direito
O presente recurso judicial vem dirigido contra a sentença do TJB, que apresenta o seguinte teor:
«Dispõe o art. 231º, nº 1, al. b) do RJPI que “o registo de marca caduca pela falta de utilização séria durante 3 anos consecutivos, salvo justo motivo”.
A recorrente não disputa quanto à ausência de utilização. Antes, aceita que não utilizou na RAEM a sua marca durante três anos consecutivos. Diz apenas que teve uma justificação para não a ter utilizado, o que impede que se verifique aquele fundamento de caducidade do registo. O motivo que invocou prende-se com a sua alegada decisão esclarecida e de boa-fé. Por a sua marca conter um sinal6 que é objecto de disputa jurídica e por haver uma acção onde se visava a anulação da sua marca, entendeu a recorrente como adequado esperar que acabasse tal disputa para retomar a utilização da sua marca.
Apesar de a recorrente concluir que se viu forçada a não usar e a esperar, essa forma de alegar deve ser entendida como uma opção motivada e ponderada, pois havia ainda possibilidade de escolher usar, o que é diferente de ser forçada a não usar. A recorrente escolheu o termo “forçada” não com o sentido de coagida, mas de ter optado pela solução que se lhe afigurou melhor depois de ponderar as consequências possíveis das soluções que poderiam ter os litígios existentes. Alegou, pois, em jeito de conclusão e não em jeito de facto, como seria a alegação de um facto causador de medo capaz de tolher a vontade livre. Alegou uma vontade prudente e não uma vontade coagida.
É esta decisão da recorrente de não usar a sua marca que cumpre subsumir ao critério legal. Configurará justo motivo para a não utilização da marca?
O uso da marca é um ónus do seu titular. Se quer garantir a exclusividade que o direito de propriedade industrial lhe proporciona sobre a utilização do sinal distintivo, tem de o usar efectivamente. De outra forma, o sinal deve ficar livre e disponível para assinalar bens e não “preso” ou “ocupado” para que ninguém o use. De facto, os sinais distintivos do comércio têm de estar ao serviço do comércio, a exercer a sua função distintiva, não podendo o registo servir de cemitério ou prisão de sinais. Se o titular do registo não der cumprimento ao ónus que sobre si impende, sofre as legais consequências, deixa de ter a protecção do registo porque este caduca para que o sinal se liberte. Em rigor, o uso do sinal não está na livre disposição do titular do registo respectivo”7. Esta dimensão de ónus do uso sério da marca implica que o incumprimento não importe as normais consequências apenas se não puder ser imputado ao onerado. Isto é, se houver uma razão que o dispense do cumprimento do ónus que sobre si impende - um justo motivo. A imputação do incumprimento ao onerado não deixa dúvidas se esse incumprimento provier da vontade livre e esclarecida do onerado. Por isso se diz que só é justo o motivo do não uso quando o não provém da vontade do titular do registo8 e é alheio a essa vontade ou mesmo contrário a ela. Remonta à teorização dogmática do Direito levada a cabo por Savigny e Jhering a ideia de que a imputação de uma consequência jurídica a um acto de uma pessoa depende da vontade ou do interesse desta em relação ao acto. Assim, por mero exemplo, a vinculação resultante de um contrato funda-se na vontade livre e esclarecida de contratar. E a responsabilidade do comitente pelos actos do comissário funda-se no interesse do comitente em tais actos. O incumprimento não pode ser imputado ao inadimplente nos casos em que lhe era impossível o cumprimento, pois apesar de ter vontade de cumprir, não tem possibilidade. O incumprimento também não pode ser imputado ao inadimplente nos casos em que a este não era exigível que cumprisse, designadamente por erro ou medo que viciam a vontade, o erro porque, espontâneo ou provocado por dolo, impede aquela vontade de ser esclarecida e o medo porque a impede de ser livre. Mas já lhe é imputável nos casos em que se deve à sua vontade livre e esclarecida, ainda que formada a partir de razões nobres e altruístas, bem longínquas do direito da concorrência e da propriedade industrial. Ora, é o próprio Código Civil que dispõe que não constitui coacção a ameaça do exercício normal de um direito (art. 248º, nº 3), pelo que o recurso aos tribunais não deve ser suficiente para tolher a vontade, especialmente das sociedades comerciais onde essa vontade se forma nos seus órgãos próprios, normalmente plurais e, por isso, menos débeis.
Regressando ao caso dos autos, dir-se-á que a razão alegada pela recorrente (esperar pela resolução de conflitos sobre sinais que compõem a sua marca e que visam a anulação desta), independentemente de tal razão se considerar provada, não impede que a falta de uso da marca seja imputável e imputada à própria recorrente. O instrumento fundamental - vontade livre e esclarecida - permite e justifica a imputação da consequência jurídica à actuação omissiva da recorrente. Não podemos esquecer que estamos no campo do jurídico e não no campo da moral ou da cortesia e do trato social. Juridicamente, o critério normativo do justo motivo não está verificado. Se em termos morais e de cortesia a alegada actuação “prudente” da recorrente até poderá merecer louvor, no âmbito do jurídico, a sua decisão de esperar pela resolução de conflitos administrativos e judiciais (alguns deles não directamente relacionados com a sua marca e um que só lhe poderia determinar proibição de uso depois de findo) apenas recebe a consequência do ónus incumprido. Pararia ou abrandaria muito o tráfego comercial se em todos os casos de conflito jurídico a actividade comercial esperasse pela solução daquele. A recorrente decidiu não usar a marca e, sendo totalmente dona da sua decisão livremente ponderada e motivada e esclarecida, sibi imputet. Tem de colher os frutos dessa decisão. Não estava dispensada do uso; Não tinha qualquer proibição de uso; Beneficiava da protecção do registo que lhe permitia usar a marca com exclusão de outrem; Tinha o ónus da utilização da marca; Nada lhe determinava que tivesse medo da pendência de litígios administrativos e judiciais; Nada lhe permitia que esperasse pela solução; Motivou-se livremente optando pelo não uso à espera que se solucionassem os conflitos sobre sinais que compõem a sua marca e sobre a anulabilidade;
A recorrente seguiu uma estratégia comercial, para utilizar a expressão do douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância referido na nota número 6 supra.
Do alegado na motivação do recurso, nada se vê que impeça que seja feito um juízo de imputação do não uso da marca à própria recorrente, por nada ter existido que lhe tolhesse a vontade que permite tal juízo de imputação.
Do que acaba de ser dito conclui-se que não se verifica justo motivo para que a recorrente não tivesse usado a sua marca como podia e devia, pelo que ocorre a caducidade do registo e nenhuma censura merece a decisão recorrida.»
Trata-se de uma fundamentação correcta. Por tal motivo fazemo-la nossa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 631º, nº5, do CPC.
Acrescenta-se, a propósito, ser esta a solução que este TSI já defendeu ao considerar que “…só constitui motivo justo para o não uso aquele motivo que não tenha permitido a uma pessoa normal, diligente e devidamente informada e cuidadosa cumprir as obrigações que impendem sobre ela9. Existe justo motivo quando o não uso não provém da vontade do titular do registo, nem lhe é imputável a título de mera culpa. Dito de outra forma, o justo motivo para o não uso da marca depende da ocorrência de circunstâncias independentes da vontade do titular, como são os casos de força maior (guerras, catástrofes naturais, etc.), ou de medidas de autoridades públicas proibindo a produção ou a comercialização dos respectivos produtos10” (Ac. TSI, de 22/05/2014, Proc. nº 39/2014).
Não existe, pois, “justo motivo” para o não uso quando um determinado interessado não faz o uso da marca alegadamente enquanto os tribunais não decidem os diversos conflitos marcários que o opõem a outro acerca de disputas de marcas semelhantes.
No mesmo sentido do presente aresto, aliás, e com referência à mesma recorrente, ver o Ac. do TSI, Proc. nº 787/2016, da presente data.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 26 de Janeiro de 2017


_________________________
José Cândido de Pinho
_________________________
Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong


1 Aviso do Chefe do Executivo 11.º 10/2009 publicado no BO N.º 20-I série de 2009/05/22.
2 in Direi to Comercial. vol.II, Lisboa, páginas 180 e 181.
3 In Direito de Marcas, 2ª Edição, Março 2003, Almedina, pág. 175.
4 Neste sentido Américo da Silva Carvalho, in Direito das Marcas, Coimbra Editora, 2004, pág. 530 e ss.
5 Obra cit. fls. 177 nota 406
6 D
7 Afigura-se menos apropriado falar em uso obrigatório da marca, embora se tenha tomado comum.
8 Assim, citando Coutinho de Abreu, Curso... , Vol. IV, p. 394, Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 22/05/2014, proferido no processo nº 39/2014, Relator: Dr. Cândido Pinho, acessível em www.court.gov.mo

9 Américo da Silva Carvalho, ob. cit., pág. 533.
10 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., pág. 394.
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