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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Dr. A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, de 24 de Junho de 2005, que aplicou ao recorrente a pena de cassação da licença de notário privado.
Por acórdão de 26 de Julho de 2007, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) deu parcial provimento ao recurso, anulando o acto administrativo com base num dos fundamentos, mas negando provimento aos restantes fundamentos invocados pelo recorrente.
Inconformado, interpõe o Dr. A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
Termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:

  A acusação, o acto administrativo o acórdão recorrido enfermam de erro de direito, resultante de uma incorrecta aplicação e interpretação do disposto nos artigos 254º e 280º do C. Civil e artigos 14º e 87º do C. do Notariado.

  O recorrente não violou a lei nem qualquer princípio ou regra de procedimento, pelo facto de ter realizado a escritura de compra e venda de 19/11/2004, concluindo-se assim não haver qualquer comportamento ilícito da sua parte, como Notário Privado.

  As partes desejaram realizar o negócio jurídico de compra e venda. Sendo este um negócio eventualmente anulável, ele produz, no entanto, os seus efeitos até ao momento em que o tribunal o declare anulado.

  O recorrente, nas funções de Notário Privado, não pode recusar a sua intervenção, com o fundamento de o acto ser anulável ou ineficaz porque não existem razões para a recusa.

  O recorrente só poderia ter recusado a prática do acto notarial que lhe foi requisitado se o acto for nulo; se o acto não couber na sua competência ou ele tiver pessoalmente impedido de o praticar ou se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes" (cfr. artigo 14º do Código de Notariado).

  Nos termos da parte final do n° 1 do art.º 254º do C. Civil, a procuração, face ao amplos poderes em que foi redigida, sempre permitiria a outorga da escritura nos termos em que foi lavrada, porquanto o negócio realizado excluía "... por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses ".

  Por outro lado, sendo a consequência daquela eventual irregularidade a anulabilidade do negócio, entende o recorrente, também, que o registo da transmissão não poderia ter sido lavrado provisório por dúvidas. - n° 1 do art.º 280º do C. Civil.

  Em suma, o registo da transmissão não deveria ter sido lavrado provisório por dúvidas porquanto, desconhecendo o Sr. Conservador quais os termos em que a pretensa procuração estava redigida, nunca deveria ter-se substituído ao eventual interessado no negócio, no caso, o pretenso B.

  O facto de ter sido lavrada escritura de rectificação não significa que o recorrente tenha cometido qualquer irregularidade ou que tenha concordado com a posição assumida pelo Sr. Conservador do Registo Predial porque, no interesse das partes envolvidas no negócio, se optou por aquela rectificação, como forma mais célere da respectiva concretização definitiva, mas sempre dentro do estrito cumprimento da lei.
10ª
  Do registo de provisoriedade resulta que também o Sr. Conservador entendeu que o acto era válido e, para se perfilhar o entendimento do acordão recorrido, ter-se-ia que considerar que a escritura em questão foi nula, o que, manifestamente, não foi o caso (cfr. artigo 87º do Registo do Notariado).
  Por outro lado,
11ª
  O acto notarial da escritura de compra e venda de 19/11/2004 - apenas um outorgante em representação do comprador e do vendedor, eventualmente sem poderes bastantes para celebrar negócio consigo mesmo - não constitui uma irregularidade.
12ª
  o acto administrativo recorrido padece ainda de erro de direito, resultante de uma incorrecta aplicação e interpretação do disposto no art.º 5°, n.º 1, do CN, afigurando-se ainda que a decisão recorrida fez igualmente uma incorrecta aplicação e interpretação daquela norma e do art.º 254°, n.º 1, do CC.
13ª
  O Recorrente, em face do "vício" da escritura original que, porventura, consubstanciaria uma situação de negócio consigo mesmo, i.e., de negócio celebrado pelo representante consigo mesmo « 14ª
  A regularização da escritura original em análise poderia ser efectuada de duas maneiras: ou por via do consentimento do representado, nos termos permitidos pelo artigo 254°, n.º 1, do CC; ou solucionando o problema da "dupla representação", passando cada uma das partes, parte vendedora e parte compradora, a ser representada no acto negocial por entidades distintas.
15ª
  O recorrente regularizou a escritura original solucionando o problema da "dupla representação" por via de uma escritura de rectificação, passando cada uma das partes, parte vendedora (B) e parte compradora ("C") a ser representada no acto negocial por entidades distintas, deixando assim o negócio em questão de poder ser caracterizado como um negócio consigo mesmo.
16ª
  A sociedade "C", reunida em assembleia geral, deliberou, rectificar dessa forma a escritura original de compra e venda de 19 de Novembro de 2004, designando para o efeito um outro representante da sociedade que não o representante do vendedor para efeitos de outorga da respectiva escritura de rectificação.
17ª
  Para tanto, a sociedade em causa não só identifica na respectiva acta a escritura em causa, como também o prédio objecto da respectiva compra e venda, como ainda as próprias partes contratantes, ou seja, o respectivo vendedor, B, e a propria vendedora, a sociedade em questão "C".
18ª
  Acresce que o sócio participante na referida assembleia, administrador da mesma sociedade, outorgou a escritura original enquanto representante de ambas as partes, pelo que se mostrava perfeitamente dispensável a reprodução na referida acta do conteúdo integral da escritura original para efeitos de rectificação.
19ª
  Conclui-se assim que é perfeitamente destituída de qualquer senso, salvo o devido respeito, a menção de que a acta da sociedade compradora não se refere ao conteúdo da escritura de rectificação e que não ratifica o negócio consigo mesmo na escritura original.
20ª
  A acta em causa designou um representante da sociedade para outorgar uma escritura de rectificação de uma outra escritura, no quadro dos poderes de actividade e de gerência de uma sociedade cujo objecto é precisamente a administração e o fomento predial, solucionando desse modo o problema da "dupla representação", passando cada uma das partes a ser representada por uma pessoa distinta.
21ª
  Pelo que a explicitação da necessidade de rectificação da escritura original consta claramente da acta em causa e do próprio conteúdo das escrituras em causa, quer da escritura original quer da escritura de rectificação, sendo que a acta em causa resolve, conjugada com esta última escritura, os problemas da escritura original.
22ª
  Não se podendo questionar assim os poderes conferidos ao representante da referida sociedade que se mostram suficientes e necessários para rectificar a escritura em causa, não só por que os poderes do representante estão vinculados pelo objecto da sociedade mas por que a acta ora em análise é perfeitamente suficiente para solucionar o problema da "dupla representação".
23ª
  Quanto à falsa questão da acta da sociedade compradora não ratificar o negócio consigo mesmo plasmado na escritura original, impõe-se dizer que, como vimos, não se pretendeu, alguma vez que fosse, ratificar aquele acto negocial.
24ª
  A ratificação do negócio consigo mesmo não poderia ser efectivada por uma acta da sociedade compradora (!) mas sim por uma manifestação do consentimento do vendedor relativamente ao negócio, caindo assim por base a argumentação constante do acto punitivo e, bem assim, o entendimento no mesmo sentido perfilhado pelo TSI.
25ª
  Mas mesmo que se estivesse, na expressão da acusação, "perante o vício formal da falta de mandato", o que apenas se admite por mero exercício de raciocínio, sempre se adiantará, sem conceder, que se trataria efectivamente de um falso problema pois estaríamos no âmbito do instituto da "gestão de negócios", questão que diz respeito, tão-somente, ao gestor e ao dono do negócio, nesse caso, ao referido representante e à sociedade "C".
26ª
  Verificando-se nessa ordem ideias uma gestão de negócios, como instituto jurídico regulado expressamente nos artigos 458.º e seguintes do Código Civil, pelo facto de ter aquele assumido a direcção de negócio alheio aquando da outorga da escritura de rectificação.
27ª
  Andou bem, pois, o Sr. Conservador do Registo Predial, ao converter em definitivo o registo do direito de propriedade da sociedade compradora, operado pela escritura de rectificação de 10/12/2004.
Por outro lado, ainda,
28ª
  Ao recorrente afigura-se a necessidade de não só reiterar tudo quanto afirmou quanto à situação registral do terreno descrito sob o n.º XXXXX, como também tecer alguns comentários à forma como a entidade recorrida, com manifesta má-fé e movida, talvez, de um espírito persecutório que deveria evitar, interpreta o depoimento da testemunha do recorrente, o Sr. Conservador do Registo Predial, D, interpretação que, salvo o devido respeito, extrapola o respectivo conteúdo e sentido.
29ª
  O Sr. Conservador como testemunha teve o documento na sua posse, inteirando-se do objecto da escritura, e dele retirou os dados necessários à pesquisa que, na presença do recorrente, fez no sistema informático da Conservatória, concluindo, muito embora não tenha consultado "qualquer legislação", não só porque era esta a sua opinião em relação à situação registral de terrenos concessionados inicialmente ao abrigo do Diploma Legislativo n° 651, de 03.02.40 - o que expressamente vincou, mantendo ainda hoje a mesma opinião - mas também porque da descrição predial nada constava que o impedisse, que a escritura em questão era fazível.
30ª
  Na opinião da testemunha as concessões feitas ao abrigo da legislação anterior nunca eram provisórias, pelo que, de uma inscrição feita em 1961, nunca poderia constar a sua provisoriedade (tratava-se de um conceito à data inexistente!).
31ª
  Bem pelo contrário, como bem realçou a testemunha, as concessões feitas ao abrigo da legislação anterior nunca eram provisórias, pelo que, de uma inscrição feita em 1961, nunca poderia constar a sua provisoriedade (tratava-se de um conceito à data inexistente!).
32ª
  A opinião dada pela testemunha ao recorrente, não o foi de ânimo leve - ao contrário do que a entidade recorrida procura fazer passar - mas uma opinião de um técnico com larga experiência no registo predial, baseada na interpretação que faz do regime das concessões de terrenos, havendo sucessão de leis no tempo, opinião que ainda hoje mantém, não obstante ter sido punido disciplinarmente pelos mesmos factos ora em apreço por, alegadamente, "errada decisão de direito".
33ª
  Ao contrário do que a entidade recorrida afirma, a concessão em causa era definitiva, como definitivas eram todas as concessões feitas ao abrigo daquele Diploma Legislativo n.º 651, afigurando-se errada ao recorrente a interpretação que a entidade recorrida faz, ao afirmar que "de acordo com a lei anterior; todas as inscrições eram provisórias por natureza (porque não estava prevista na lei a figura da concessão definitiva)".
34ª
  Finalmente e no que tange, ainda, ao depoimento do Sr. Conservador, não pode o recorrente deixar de realçar a forma insistente como a entidade recorrida se refere ao facto de a testemunha em causa ter afirmado "que não consultou os Livros da Conservatória ", que não viu "o registo no Livro original", que não fez a "consulta do Livro original", que não teve tempo "para conferir os livros", que "não teve o conservador do registo presente que estava perante uma transcrição em suporte informático de um registo efectuado em Livro".
35ª
  Se a entidade recorrida tivesse presente o depoimento do Sr. Conservador prestado nos autos (a gravação consta dos autos), então, saberia que o que consta do sistema informático é o mesmo que consta dos Livros do registo.
36ª
  Há um facto, de extrema gravidade, que a entidade recorrida, procura escamotear: se administração tivesse procedido, como lhe competia, ao averbamento à descrição predial n° XXXXX, da caducidade da concessão do terreno a favor de E, já não se levantaria a questão ora em apreço, ou seja, se a concessão do terreno era provisória ou definitiva, nem tampouco teria sido outorgada a escritura.
37ª
  A escritura em questão foi instruída com um documento autêntico, uma certidão emitida pela competente Conservatória do Registo Predial (art.º 363º do C.C.); e os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são atestados (art.º 365º n° 1 do C.C.).
38ª
  Por outro lado, o art.º 7º do C. Registo Predial estabelece uma presunção de verdade, ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
39ª
  Também, os factos sujeitos a registo só se extinguem por caducidade ou cancelamento (art.º 11° do C. Registo Predial).
40ª
  Para o recorrente, os factos constantes da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial eram verdadeiros e exactos e vigoravam à data em que foi lavrada a escritura em causa.
41ª
  Ao recorrente afigura-se que não assiste à entidade recorrida razão quando invoca a provisoriedade da concessão (como vimos, caducada!).
42ª
  De facto, atenta a escritura de concessão por arrendamento do terreno em causa a favor de E, verifica-se que tal arrendamento foi feito ao abrigo das disposições previstas no Diploma Legislativo n.º 651, de 3 de Fevereiro de 1940.
43ª
  Deste diploma legal não constava, como hoje, a diferença entre concessões provisórias e concessões definitivas, mas, tão somente, a adjudicação provisória, prévia ao contrato, e o arrendamento (sempre definitivo) sujeito ao respectivo registo (cfr. art.ºs 61° e segs. do citado diploma legal), disposições que a entidade recorrida pretende ignorar. Ou seja, sempre que uma concessão era passada a registo, no âmbito da legislação ao abrigo da qual o terreno foi concedido a E, tal situação correspondia a um arrendamento definitivo.
44ª
  O registo da concessão por arrendamento a favor de E era, pois, definitivo, à data em que entrou em vigor a actual Lei de Terras (Lei n° 6/80/M de 5/7).
45ª
  Nos termos desta lei, os concessionários de arrendamentos definitivos em vigor - e, em 5 de Julho de 1980, a concessão do terreno em causa ainda não havia caducado - deveriam declarar se desejariam que os respectivos arrendamentos se continuassem a reger pela legislação anterior ou se pretenderiam optar pela actual lei. A falta desta declaração equivaleria a uma opção pela lei actual. Foi o que aconteceu em relação à concessão em apreço!!!
46ª
  A concessão (se não tivesse caducado) era definitiva, face à lei anterior, mantendo-se, obviamente, definitiva, face à lei actual. Como tal, nos termos do art.º 143º n° 3 da Lei de Terras, estaria dispensada a autorização da entidade competente para a concessão, para a transmissão das situações dela decorrentes.
47ª
  Mas também, o facto de se tratar de uma concessão definitiva era não só o que constava do respectivo registo, como se disse, mas também o que mais se coadunaria com uma concessão com quase 50 anos de existência, factos que o recorrente, previamente à escritura que lavrou, tratou de se inteirar pessoalmente, junto do Sr. Conservador do Registo Predial, o qual não só deu, então, o seu aval técnico à projectada transmissão, como, ouvido em declarações no âmbito do recurso interposto junto do T.S.I., confirmou expressamente que se estava na presença de um registo de uma concessão definitiva.
48ª
  Tanto assim foi que, reitera-se, uma vez lavrada a escritura, foi a inscrição do registo de aquisição dos direitos sobre o terreno lavrada definitivamente.
49ª
  No diploma de 1940 não havia a diferença entre concessões provisórias e concessões definitivas e a inscrição da concessão (definitiva, obviamente!!), a favor de E, data de 1961 e a actual Lei de Terras - que estabelece o regime jurídico e a respectiva diferenciação entre concessões provisórias e definitivas - só entrou em vigor em 1980.
50ª
  Padece, por conseguinte, o acto administrativo da entidade recorrida de erro de direito resultante de uma incorrecta aplicação e interpretação do disposto naquelas normas.
Finalmente,
51ª
  Erradamente, perfilha a entidade recorrida e o tribunal "a quo" que o recorrente nas escrituras de compra e venda de 19/11/2004 e 24/11/2004, apesar de ter mencionado que os prédios se encontravam omissos na matriz devido à sua natureza, não cumpriu as disposições do n.ºs 1 e 5 do artigo 78° do Código de Notariado.
52ª
  A verdade é que o recorrente agiu bem e no estrito cumprimento da lei ao consignar nas escrituras de compra e venda em causa que ambos os prédios estavam omissos na matriz predial pela sua natureza.
53ª
  O recorrente só deveria consignar na escritura haver ter sido apresentada a participação para inscrição, nos termos do n° 1 do art.º 78º do Código do Notariado, apenas se fosse "quando devida"; e, nos termos do n° 5 do mesmo artigo, apenas, deverá ser feita a participação para inscrição na matriz de prédio omisso que "nela deva ser inscrito".
54ª
  A inscrição na matriz é um acto relacionado com a contribuição predial urbana, pelo que, se mais não houvesse, sempre desta designação se concluiria que dela estão isentos os prédios rústicos (terrenos sem qualquer construção edificada).
55ª
  O legislador nunca pretendeu que os prédios rústicos (terrenos sem qualquer construção edificada - o que acontece no caso concreto) fizessem parte do regulamento da contribuição predial urbana - cfr. preâmbulo da Lei n° 19/78/M, de 12/08.
56 ª
  É, pois, forçoso concluir que os prédios objecto de ambas as escrituras estão e devem estar omissos na matriz porque se tratam de prédios rústicos que, como tal, nela não devem ser inscritos.
57ª
  A escritura de concessão do terreno a E, não anexou o terreno concedido por arrendamento aos terrenos onde se encontrava construída a "fábrica de panchões e fogos de artifício denominada F".
58ª
  Errou a entidade recorrida ao considerar que houve anexação dos terrenos e que o terreno concedido por arrendamento se tenha convertido em terreno urbano.
59ª
  Esta é a conclusão que mais se coaduna com o facto do terreno concessionado ter mantido a sua autonomia descritiva no registo predial; e com o facto de, conquanto" ... ainda não se encontrar descrito na Conservatória do Registo Predial... "à data da escritura de concessão, ter sido posteriormente descrito ( apresentação feita em 28/08/62 ) como terreno de natureza rústica, obviamente omisso de matriz como acima se referiu.
60ª
  É patente que o acórdão recorrido errou no seu entendimento porque não valorou que a concessão por arrendamento de um terreno com a área de 7.000 m2 a favor de E, era destinado a ser anexado aos terrenos com as áreas 17.316 m2 e 2.257.50 m2, para ampliação da fabrica de panchões e fogo de artificio "F" e que por Despacho n.º 205/84 de 10.08.84 do Sr. Governador de Macau, publicado no B.O. n.º 34 de 18.08.84, porque o concessionário não deu cumprimento ao aproveitamento do terreno imposto por lei, foi declarada a caducidade da concessão revertendo o referido terreno para a RAEM, factos que, é bom que se diga e reitere, o recorrente desconhecia à data em que celebrou a respectiva escritura.
62ª
  O recorrente perante as disposições legais em causa e perante as descrições prediais que lhe foram presentes em documento autenticado não tinha obrigação de indicar o número de matriz predial ou de consignar a respectiva participação da inscrição nas escrituras de compra e venda que tinham como objecto os prédios rústicos.
63ª
  O acto administrativo da entidade recorrida enferma assim, aqui também, de erro de direito, resultante de uma incorrecta aplicação e interpretação do artigo 78°, n.º 1 e 5 do Código do Notariado, do n.º 1 do artigo 3º da Lei 19/78/M, de 12 de Agosto.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
   Em 6 de Junho de 2005, foi elaborada a seguinte informação (e relatório final) n.º XX/XXXX/XXX/XXXX pelo Senhor Instrutor do Processo Disciplinar n.º XX/XXXX/XXX/XXXX no qual vinha acusado o Notário Privado Dr. A:
              «Exmo. Senhor
              Director dos Serviços de Assuntos de Justiça
   Por despacho de Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça, de 22 de Março de 2005, foi instaurado o Processo Disciplinar n.° XX/XXXX/XXX/XXXX contra o notário privado Dr. A.
   Finda a instrução do processo, e nos termos do n.º 1 do artigo 337.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, ora se elabora,
RELATÓRIO FINAL
   1. O arguido é notário privado.
   2. No dia 19/11/2004, o arguido lavrou uma escritura de compra e venda em que existe um único outorgante, G, em representação do vendedor, B, e da compradora, C, em chinês "丙" (abaixo designada por "sociedade").
   3. Os poderes do representante do vendedor foram concedidos através duma procuração outorgada no dia 15/11/2004 pela Notária Privada Dr.ª H.
   4. No dia 24/11/2004, o arguido lavrou uma escritura de compra e venda que foi outorgada por G, em representação do vendedor E, e por I, em representação da sociedade compradora referida 2..
   5. Os poderes do representante do vendedor foram concedidos através duma procuração outorgada em 01/11/2004 pela Notária Privada Dr.ª H.
   6. Na referida escritura consta a menção de que foi exibida uma certidão emitida em 29/10/2004, pela Conservatória do Registo Predial de Macau, com a "inscrição da titularidade do terreno a favor do vendedor."
   7. No dia 10/12/2004, o arguido lavrou uma escritura de rectificação da escritura referida em 2., outorgada por I, em representação da sociedade compradora, com poderes verificados por uma certidão comercial emitida pela Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Imóveis em 17/09/2004, documento arquivado no Maço de documentos referente a escrituras diversas do livro n.º X, a fls. XX e XX e por uma acta da referida sociedade outorgada no dia 10/12/2004 e por G, em representação do vendedor B.
   8. Do registo predial consta que B é proprietário do terreno rústico situado na Taipa, na Povoação de Sam Ka, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, inscrito a seu favor sob o n.º da inscrição XXXXX (L.º XXX, fls, XXX).
   9. Do registo predial consta que E é concessionário do terreno situado na Taipa, na Estrada Nova Miradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, inscrito a seu favor sob o n.º XXXX (L.º XX, fls. XXXX).
   10. O mandante E faleceu em Hong Kong no dia 15/04/1984.
   11. Pelo Despacho n.º 205/84 de 10/08/1984, publicado no B.O. n.º 34 de 18/08/1984, o Governador de Macau declarou a caducidade da concessão referida em 9., tendo o referido terreno revertido para o Território.
   12. Em 23.12.2004, a Conservatória do Registo Predial procedeu à inscrição do registo de aquisição do direito relativamente ao referido terreno resultante da concessão por arrendamento incluindo a propriedade de construção, sito na Estrada Nova Miradouro, sem número, omisso na matriz predial, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, a favor da sociedade compradora.
   13. Por despacho judicial datado de 19/03/2005, foi ordenada a apreensão à ordem dos autos de inquérito dos prédios descritos sob os n.os XXXXX e XXXXX, não podendo sob qualquer forma serem alienados ou transaccionados até ordem em contrário do Tribunal.
   14. Não consta do registo predial do terreno referido em 9. a caducidade da concessão, nem a prova de aproveitamento de terreno por parte do seu concessionário, nem a conversão da concessão provisória em definitiva.
   15. Não foi obtida autorização para a transmissão da posição de concessionário operada pela escritura de compra e venda referida em 4..
   16. A compra e venda titulada pela escritura referida em 2. foi registada provisoriamente por dúvidas.
   17. O arguido lavrou uma escritura de rectificação, tendo por base uma certidão comercial e uma acta da assembleia geral da sociedade compradora de 10/12/2004, alterando o representante da sociedade compradora G, constante da escritura de compra e venda referida em 2. para I, passando G a outorgar apenas como representante do vendedor.
   18. A referida acta dispõe apenas de uma ordem de trabalho referente à "Designação do representante da sociedade para outorgar uma escritura de rectificação de uma escritura de compra e venda datada de 19/11/2004, na qual a sociedade intervem como compradora de um terreno rústico situado na Taipa, sem número, na Povoação de Sam Ka, omisso na matriz predial pela sua natureza, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, a fls. XXXX, do Livro X-XX, sendo que o respectivo vendedor foi B".
   19. O Ofício Circular n.º XX/XXXX/XXX/XXXX impõe, a partir de 20/09/2004, aos notários que passem a exigir do outorgante vendedor, desde que não seja uma sociedade e uma primeira venda, e do outorgante hipotecante, certidão da respectiva escritura comprovativa da titularidade do imóvel ou o notário deve contactar a DSAJ que se encarregará de lhe remeter uma cópia por via informática.
   20. Não consta, no registo do Sistema Notariado, a requisição por parte do arguido da escritura anterior do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, a fls. XXX., do Livro XXX.
   21. O arguido não exigiu do outorgante vendedor a certidão da escritura comprovativa da titularidade do imóvel.
   22. Foi indicada, em ambas as escrituras de compra e venda, a omissão da matriz predial pela sua natureza.
   23. O arguido possui formação superior em Direito e é, para além de notário privado, advogado.
   24. Para poder exercer as funções de notário privado, o arguido frequentou com aproveitamento o necessário curso específico de formação.
   25. Do registo predial do prédio que constituiu objecto da escritura de compra e venda referida em 4. não consta a caducidade da concessão.
   26. Da mesma forma, todavia, não consta a conversão da concessão provisória em definitiva, nem a prova do aproveitamento do terreno, que funciona como pressuposto daquela conversão.
   27. O registo da conversão de concessões provisórias em definitivas é imposto pelo artigo 134.º da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de Terras).
   28. Por seu turno, a transmissão de situações resultantes da concessão dependem de prévia autorização da entidade competente para o deferimento da concessão, nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 143.º da Lei de Terras.
   29. Em consequência, os notários só podem celebrar escrituras públicas que transmitam situações decorrentes de concessão por arrendamento quando estas sejam definitivas, nos termos do n.º 1 do artigo 158.º da Lei de Terras.
   30. Não obstante, o arguido lavrou a escritura de compra e venda referida em 4. tendo por objecto um terreno concessionado ao vendedor quando o registo predial não fazia qualquer menção à conversão da concessão provisória em definitiva por força do aproveitamento do terreno,
   31. Sem ter sido obtida previamente a necessária autorização da entidade administrativa competente para o deferimento da concessão.
   32. Na escritura de compra e venda referida em 2. interveio um único outorgante em representação de ambos os contratantes, comprador e vendedor.
   33. Quando tal acontece, para evitar a anulabilidade do negócio em questão, o outorgante que actua em representação de ambos os contratantes deve, em regra, nos termos do artigo 254.º do Código Civil, obter o consentimento para tal por parte do representado.
   34. Não obstante, o arguido lavrou a referida escritura de compra e venda sabendo ou devendo saber que os instrumentos de representação apresentados não atribuíam poderes bastantes para que o negócio fosse celebrado como veio a ser.
   35. Face a esse facto, o registo da transacção titulada pela referida escritura de compra e venda veio a ser efectuado provisoriamente por dúvidas.
   36. Para sanar as dúvidas suscitadas e proceder no sentido do registo definitivo, um funcionário do arguido elaborou a acta da sociedade compradora de 10/12/2004 que designou um representante para outorgar uma escritura de rectificação da escritura de compra e venda referida em 2.
   37. Tal acta não se refere, contudo, ao conteúdo da escritura de rectificação, por um lado, nem procede à ratificação da escritura de compra e venda inicial, autorizando o negócio consigo mesmo efectuado pelo representante da sociedade nessa escritura.
   38. Ou seja, estamos perante dois negócios jurídicos distintos.
   39. No primeiro, o representante da sociedade efectuou um negócio consigo mesmo sem consentimento bastante para tal. No segundo, o representante apenas foi mandatado pela sociedade para assinar uma escritura de rectificação de uma outra escritura em que a sociedade interveio como compradora de um terreno.
   40. O segundo mandato que foi conferido apenas lhe permitia outorgar a escritura de rectificação da escritura inicial, mas não lhe conferia poderes para se subrogar na posição de representante da sociedade como compradora e também não lhe conferia poderes para ratificar o negócio anteriormente celebrado por um representante que carecia de autorização para celebrar um negócio consigo mesmo.
   41. Com efeito, a acta é, na verdade, destituída de conteúdo. Apenas confere poderes formais de representação numa escritura de rectificação de uma outra escritura de compra e venda. Mas nada refere quanto ao alcance da rectificação que pode ser efectuada pelo representante que foi nomeado (rectificação do preço, da data de produção de efeitos, de algum elemento de identificação dos intervenientes ou do terreno?).
   42. Pelo que, parece-nos, a escritura de rectificação padece de um vício formal essencial que consiste na falta de mandato para a rectificação a ser operada, se bem que exista mandato para a sua outorga.
   43. Ou seja, utilizando a linguagem do n.º 1 do artigo 5.º do Código do Notariado, foi dada forma legal, mas não foi "dada forma legal à vontade das partes".
   44. Por outro lado, o arguido ao não ter exigido do outorgante vendedor na escritura referida em 2. a certidão da escritura comprovativa da titularidade do imóvel e ao não ter, em alternativa, solicitado à DSAJ a remessa de uma cópia dessa escritura por via informática, violou o disposto no Ofício Circular n.º XX/XXXX/XXX/XXXX.
   45. O cumprimento do disposto nesse Ofício Circular é-lhe imposto pelo n.º 2 do artigo 12.º do Estatuto dos Notários Privados.
   46. Dispõe o n.º 1 do artigo 78.º do Código do Notariado que nos instrumentos em que se descrevem prédios se deve indicar o número da respectiva matriz ou, no caso de nela estarem omissos, consignar-se a declaração de haver sido apresentada a participação para inscrição.
   47. O n.º 5 desse mesmo artigo estipula que a participação para inscrição na matriz, quando se trate de prédio omisso, se prova pela exibição do duplicado apresentado ou de certidão da declaração, válidos por um ano.
   48. Apesar de em ambas as escrituras de compra e venda se referir que os prédios se encontram omissos na matriz, não foram cumpridas as estatuições normativas dos citados preceitos.
   49. Tais factos constituem irregularidades graves no desempenho da actividade de notário privado.
   50. Irregularidades que se consubstanciam no incumprimento de ordem expressa em circular emitida pela DSAJ, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 12.º do Estatuto do Notariado privado, e no incumprimento do disposto nos n.º 1 e 5 do artigo 78.º do Código do Notariado.
   51. Irregularidades que consubstanciam, ainda, a violação do disposto no artigo 143.º da Lei de Terras por se ter lavrado uma escritura de compra e venda de um terreno concessionado, sem a obtenção da autorização prévia da entidade competente e por se ter lavrado uma escritura de compra e venda em que participava apenas um outorgante sem poderes bastantes para celebrar um negócio consigo mesmo.
   52. O arguido cometeu irregularidades, ainda, quando lavrou a escritura de rectificação que tinha por base uma acta que não atribuía quaisquer poderes de rectificação para além dos poderes de investir o representante como mandatário para a escritura de rectificação.
   53. O arguido não usou das devidas parcimónia e diligência exigidas para o exercício da sua actividade de notário privado, cometendo as diversas irregularidades supra referidas com negligência grave e em violação do seu dever de zelo, imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 279.º do ETAPM, aplicável por força do artigo 12.º do Estatuto dos Notários Privados.
   54. A actividade de notário privado deve ser exercida de forma zelosa, parcimoniosa e diligente na medida em que através dela se dá forma legal e se confere fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais - cfr. artigo 1.º do Código do Notariado.
   55. Dever esse que, nos termos do n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM, impunha ao arguido o exercício das suas funções com eficiência e empenhamento.
   56. Das referidas irregularidades e da violação do dever de zelo, resultaram consequências sérias e nefastas para o comércio jurídico, para a imagem da Administração Pública, do notariado, em geral, e do notariado privado, em particular, designadamente com a abertura de processos de inquérito e com a prisão preventiva de arguidos.
   57. O exercício da actividade de notário privado com irregularidades graves e a violação negligente do dever de zelo é punida disciplinarmente com suspensão administrativa até 2 anos ou com cassação de licença, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do Estatuto dos Notários Privados.
   58. A responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução são elevados, sendo o arguido, em consequência, prejudicado pelas circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas alíneas b) e j) do n.º 1 do artigo 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
   59. A aplicação das respectivas penas disciplinares é da competência da Secretária para a Administração e Justiça, nos termos do artigo 19.º do Estatuto dos Notários Privados e do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 6/2005.
   Conclusões:
   1. Pelo exposto, a conduta do arguido revelou total e completa ausência de competência para o exercício da função notarial, porque pelas escrituras de 19/11/2004, 24/11/2004 e 10/12/2004, praticou diversas irregularidades graves e violação negligente do dever de zelo.
   2. Nestes termos, em relação às infracções disciplinares que o arguido cometeu, se propõe, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do Estatuto dos Notários Privados, a aplicação de pena de cassação de licença, sendo a aplicação desta pena da competência de Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça, nos termos do artigo 19.º do Estatuto dos Notários Privados e da delegação de competências constante do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 6/2005.
   3. Nos termos do n.º 5 do artigo 20.º do Estatuto dos Notários Privados, após recebido o presente relatório final, deverá V. Exa. emitir parecer, no prazo de 5 dias, e remeter o processo à Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça, para que a mesma tome decisão, no prazo de 20 dias, de acordo com o n.º 3 do artigo 338.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
   À consideração superior de V. Exa.
   Divisão de Apoio Técnico, aos 06 de Junho de 2005.
   [...]»
   Sobre esse relatório final, o Senhor Director dos Serviços de Assuntos de Justiça lavrou o seguinte despacho, datado de 13 de Junho de 2005:
   <    Secretária para a Administração e Justiça
   Concordo com a presente informação, com o Relatório Final do processo disciplinar instaurado ao notário privado Dr. A e com as conclusões a que chega.
   À consideração de V. Ex.ª.>>
   E a final, a Senhora Secretária para a Administração e Justiça desta Região Administrativa e Especial de Macau decidiu nos seguintes termos do seu despacho exarado em 24 de Junho de 2005 sobre a dita informação-relatório:
   <>
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
O acto recorrido considerou que o ora recorrente violou a lei no que concerne à intervenção de um único outorgante em representação de comprador e vendedor, ao conteúdo da acta da sociedade compradora para celebração da escritura de rectificação, à inexistência no registo a favor do vendedor da conversão da concessão de provisória em definitiva e da transmissão da concessão sem prévia autorização da entidade competente para deferimento da concessão e à falta de indicação do número de matriz predial ou da consignação da respectiva participação da inscrição.
O Acórdão recorrido subscreve as conclusões do acto recorrido, do que discorda o recorrente, que lhe imputa portanto, violações de lei na apreciação dessas questões.
É o que se impõe apreciar.

2. Intervenção de um único outorgante em representação de comprador e vendedor
Sobre tal matéria, o acto recorrido refere o seguinte:
   “2. No dia 19/11/2004, o arguido lavrou uma escritura de compra e venda em que existe um único outorgante, G, em representação do vendedor, B, e da compradora, C, em chinês "丙" (abaixo designada por "sociedade")”.
   “32. Na escritura de compra e venda referida em 2. interveio um único outorgante em representação de ambos os contratantes, comprador e vendedor.
   33. Quando tal acontece, para evitar a anulabilidade do negócio em questão, o outorgante que actua em representação de ambos os contratantes deve, em regra, nos termos do artigo 254.º do Código Civil, obter o consentimento para tal por parte do representado.
   34. Não obstante, o arguido lavrou a referida escritura de compra e venda sabendo ou devendo saber que os instrumentos de representação apresentados não atribuíam poderes bastantes para que o negócio fosse celebrado como veio a ser.
35. Face a esse facto, o registo da transacção titulada pela referida escritura de compra e venda veio a ser efectuado provisoriamente por dúvidas”.
  Já o recorrente entende que, nas funções de Notário Privado, não pode recusar a sua intervenção, com o fundamento de o acto ser anulável ou ineficaz porque não existem razões para a recusa. E que o recorrente só poderia ter recusado a prática do acto notarial que lhe foi requisitado se o acto for nulo; se o acto não couber na sua competência ou ele tiver pessoalmente impedido de o praticar ou se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes" (cfr. artigo 14º do Código de Notariado).
Afigura-se-nos que o recorrente tem razão nesta parte.
O acto em causa era anulável de acordo com o disposto no art. 254.º do Código Civil, em virtude de o ser o mesmo o representante do comprador e do vendedor.
Ora, o notário não só pode, como deve recusar a prática do acto notarial se este for nulo [art. 14.º, n.º alínea a) do Código do Notariado].
Mas se o acto for simplesmente anulável, o notário não pode recusar a prática do acto. A lei é expressa. Dispõe o art. 16.º do Código do Notariado:
“Artigo 16.º
(Actos anuláveis e ineficazes)
1. A intervenção do notário não pode ser recusada com o fundamento de o acto ser anulável ou ineficaz.
2. Nos casos previstos no número anterior, o notário deve advertir os outorgantes da existência do vício ou da situação de ineficácia do acto, e consignar no instrumento a advertência que tenha feito”.
A própria entidade recorrida parece aceitar esta interpretação ao dizer, nas suas alegações, que o recorrente não fez a advertência a que se refere o n.º 2 do art. 16.º. Mas essa é outra questão. O recorrente foi punido por não ter recusado o acto e não por não ter feito a advertência a que se refere o n.º 2 do art. 16.º.
Também não parece ser solução para o problema o disposto no art. 17.º do mesmo Código, onde se estatui:
“Artigo 17.º
(Faculdade de recusa dos notários privados)
1. O notário privado pode, sem necessidade de invocar razões que o justifiquem, recusar a prática de quaisquer actos da sua competência.
2. Cessa a faculdade prevista no número anterior quando ao notário seja solicitada a prática de acto que, por sua natureza ou por força da lei, só possa ser praticado por um notário determinado ou pelo seu substituto.
3. Nos casos referidos no número anterior, à recusa do notário aplica-se o disposto no artigo 15.º”.
Este preceito prevê a possibilidade de o notário privado poder recusar a prática de qualquer acto, o que constitui um corolário do carácter privado da sua actividade, da sua profissão liberal. Mas o facto de poder recusar a prática de um acto legal não transforma a não recusa de prática do acto legal em ilegalidade, como é manifesto.
O acto recorrido violou, pois, o disposto nos arts. 14.º e 16.º do Código do Notariado. E o Acórdão recorrido, igualmente, ao ter validado tal acto.

3. Conteúdo da acta da sociedade compradora
O acto recorrido entende que a acta da sociedade compradora a fim de rectificar a escritura de compra e venda não se refere ao conteúdo da escritura de rectificação, por um lado, nem procede à ratificação da escritura de compra e venda inicial, autorizando o negócio consigo mesmo efectuado pelo representante da sociedade nessa escritura.
Convém recordar o circunstancialismo que está na base nesta alegada falta do arguido.
Foi celebrada uma escritura pública de compra e venda pelo ora recorrente, como notário privado, em que a mesma pessoa representava comprador e vendedor.
A aquisição foi inscrita no registo predial provisoriamente por dúvidas, por causa do mencionado facto.
A assembleia geral da sociedade compradora aprovou a seguinte deliberação em acta:
“ACTA AVULSA
  No dia 10/12/2004, em Macau, na sede da sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, denominada "C", em chinês "丙", e em inglês "C", com sede no [Endereço (1)], registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, sob o n° XXXXX (XX) reuniu, pelas 10:00 horas, nos termos da 2ª parte do nº 2 do art° 217º do Código Comercial, a assembleia geral, com carácter extraordinário, da dita sociedade.
  Estava presente o sócio, G, o qual representa a maioria do capital social, para deliberar sobre o conteúdo da seguinte "ORDEM DE TRABALHOS":
  1. Designação do representante da sociedade para outorgar uma escritura de rectificação de uma escritura de compra e venda datada de 19/11/2004, na qual a sociedade intervém como compradora de um terreno rústico situado na Taipa, sem número, na Povoação de Sam Ka, omisso na matriz predial pela sua natureza, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n° XXXXX, a fls. XXXX, do Livro X-XX, sendo que o respectivo vendedor foi B.
  Aberta a reunião, foi deliberado designar como representante da sociedade, para o efeito, o Sr. I, casado, de nacionalidade portuguesa, titular do Bilhete de Identidade Residente Permanente de Macau n° XXXXXXX(X), emitido em 02/02/2004, pela Direcção dos Serviços de identificação e residente no [Endereço (2)].
A fim de remover as dúvidas suscitadas pelo Conservador e com base na acta da deliberação, foi outorgada a escritura de rectificação da escritura anterior.
Quanto à primeira questão (a de que a acta da sociedade compradora não se refere ao conteúdo da escritura de rectificação), parece o acto recorrido ter razão.
De facto a deliberação designa o representante da sociedade mas não indica o fim e o conteúdo da rectificação a ter lugar. E teria de o fazer, sob pena de o mandato para celebrar escritura ser em branco. Nesta parte, o Acórdão recorrido não merece censura.
Quanto à segunda questão, já a solução é diversa. A 2.ª escritura pretendia substituir a 1.ª, na parte em que intervinha um determinado indivíduo a representar a sociedade compradora, substituindo-o por outro, pelo que, naturalmente, não se pretendia autorizar o negócio consigo mesmo da 1.ª escritura. Não estava, em causa, por conseguinte, qualquer ratificação do negócio celebrado por um representante sem autorização para celebrar um negócio consigo mesmo.
Nesta parte, procede o recurso.

4. Inexistência no registo a favor do vendedor da conversão da concessão de provisória em definitiva e da transmissão da concessão sem prévia autorização da entidade competente para deferimento da concessão
O acto recorrido considerou que o recorrente lavrou a escritura de compra e venda sem que constasse a conversão da concessão de provisória em definitiva e da transmissão da concessão sem prévia autorização da entidade competente para deferimento da concessão, o que violaria o disposto no art. 143.º da Lei de Terras (Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho).
O recorrente contrapõe que em 1961, data do registo em questão, a lei em vigor (Diploma Legislativo n.º 651, publicado no Boletim Oficial de 5 de Fevereiro de 1940) não conhecia a distinção entre concessões provisórias e definitivas, pelo que todas as concessões eram definitivas.
Já para a entidade recorrida, não havendo, ao tempo, a distinção entre concessões provisórias e definitivas, todas as concessões eram provisórias.
Há que conhecer da questão.
Na lei em vigor, Lei n.º 6/80/M, a concessão por arrendamento de terrenos urbanos é dada inicialmente a título provisório e só se converterá em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente (art. 49.º).
Após a demarcação do terreno e a realização de concurso público, se a ele houver lugar, o Governador, agora o Chefe do Executivo decide a concessão e fixa o prazo da mesma, concessão esta que se considera dada a título provisório (art. 124.º).
A concessão provisória é registada no registo predial (arts. 125.º e 130.º).
Feita a prova do aproveitamento, que tem lugar mediante a apresentação da licença de utilização, a concessão tornar-se-á definitiva (arts. 132.º e 133.º).
A conversão da concessão provisória em definitiva é averbada ao registo da concessão (art. 134.º).
Vejamos, agora, como as cosas se passavam no regime do Regulamento para a concessão de terrenos na colónia de Macau, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, que vigorava em 1961, e que veio a ser substituído pelo Diploma Legislativo n.º 1679, publicado no Boletim Oficial de 21 de Agosto de 1965.
Os pedidos de arrendamento eram dirigidos ao Governador (art. 52.º).
Feita a demarcação do terreno, a Comissão de Terras promovia a publicação de anúncios para a hasta pública, por carta fechada, se a ela houvesse lugar (art. 56.º).
Nas praças, a adjudicação provisória tinha lugar à maior oferta e, confirmada a adjudicação provisória, era lavrado contrato, que tinha lugar por escritura (arts. 61.º e 67.º).
Dispunha o art. 63.º do Regulamento para a concessão de terrenos, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, que “O aproveitamento dos terrenos concedidos por arrendamento e as concessões de novos arrendamentos ficam sujeitos aos prescrito nos artigos 35.º e 39.º deste regulamento”.
Ora, o art. 32.º, relativo à concessão por aforamento, estatuía:
“Todas as concessões de terrenos por aforamento são provisórias, até ser cumprido o determinado nos artigos 35.º, 37.º e 38”.
E, o art. 35.º, relativo à concessão por aforamento, mas mandado aplicar às concessões por arrendamento pelo art. 63.º, determinava que nos terrenos destinados à construção os projectos fossem apresentados em determinado prazo.
Por sua vez, o art. 39.º dizia que um concessionário de terrenos para cultura só pode obter nova concessão para o mesmo fim depois de completamente aproveitada a antecedente.
E o art. 42.º, ainda respeitante às concessões por aforamento, dispunha que “Cumpridas todas as formalidades e obrigações será em portaria publicada a concessão definitiva”.
Ora, dispondo o art. 63.º do Regulamento para a concessão de terrenos, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, que “O aproveitamento dos terrenos concedidos por arrendamento e as concessões de novos arrendamentos ficam sujeitos aos prescrito nos artigos 35.º e 39.º deste regulamento”, é claro que nas concessões por arrendamento reguladas pelo Regulamento para a concessão de terrenos, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, já havia a distinção entre concessão provisória e definitiva, ao contrário do que alegaram, tanto o recorrente, como a entidade recorrida.
O que é confirmado pelo art. 69.º, que manda aplicar aos terrenos concedidos por arrendamento, o disposto no art. 50.º (que estatuía “Os terrenos concedidos por aforamento não devem ser divididos, enquanto a sua concessão se não tornar definitiva...”).
É, desta maneira, claro que no Regulamento para a concessão de terrenos, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, já havia a distinção entre concessão por arrendamento provisória e definitiva
Tem, por isso, toda a razão o Acórdão recorrido ao apontar o regime que foi descrito e defendendo que a concessão por arrendamento era inicialmente provisória e só se tornava definitiva, após prova do aproveitamento do terreno, já na vigência do Regulamento aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651.
Logo, bem andou o acto recorrido ao dizer que o recorrente devia ter exigido a prova de que a concessão era definitiva e não ter autorizado a transmissão de situações sem autorização do Governo, sem a prova de que tinha havido o aproveitamento do terreno.
Não violou, assim, a lei o Acórdão recorrido.

5. Falta de indicação do número de matriz predial ou da consignação da respectiva participação da inscrição
O acto recorrido considerou que, apesar de em ambas as escrituras de compra e venda se referir que os prédios se encontram omissos na matriz, não foram exibidas as declarações de haver sido apresentada a participação para inscrição, tendo sido violados os n. os 1 e 5 do art.78.º do Código do Notariado.
Já para o recorrente não havia lugar a tal exibição já que o prédio é rústico.
E tem razão. O prédio está descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial, aí constando que se trata de prédio rústico. Era a este elemento que o notário se devia ater e não a outras considerações.
Ora, os prédios rústicos não estão sujeitos a contribuição predial (art. 2.º do Regulamento da Contribuição Predial Urbana, aprovada pela Lei n.º 19/78/M, de 12 de Agosto), pelo que quanto a eles não existem matrizes prediais (art. 56.º do Regulamento da Contribuição Predial Urbana).
Mesmo que no passado o terreno se destinasse a ser anexado aos terrenos onde se encontrava a fábrica de panchões, o que é certo é que nunca o chegou a ser, pelo que não tinha de ser inscrito na matriz por ser logradouro de prédio urbano (art. 3.º, n.º 1 do mesmo Regulamento).
Em suma, o recorrente não violou a lei ao não ter exigido a participação para inscrição na matriz, nos termos do art. 78.º do Código do Notariado.
Ao entenderem diferentemente os acto e o Acórdão recorridos, violaram aquela norma.

IV – Decisão
Face ao expendido, dá-se provimento parcial ao recurso, revogando-se, em parte o Acórdão recorrido e anulando o acto recorrido pelos fundamentos indicados em III, 2, 3 e 5.
Por se entender que o pedido é parcialmente improcedente, isto implica que o recorrente tenha de pagar custas pelo parcial decaimento, que se fixam em 4 UC.

Macau, 13 de Dezembro de 2007.
   
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
   
A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
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Processo n.º 54/2007