Processo nº 709/2016
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 23 de Fevereiro de 2017
ASSUNTO:
- Nulidade da sentença
- Direito de ocupação do terreno
- Posse
- Usucapião
- DL nº 6/93/M
SUMÁRIO:
- A eventual inobservância do artº 3º do CPCM nunca constitui causa da nulidade da sentença, mas sim nulidade processual
- Os possuidores das construções informais/barracas não possuem qualquer direito de ocupação do terreno (nº 4 do artº 3º do DL nº 6/93/M), nem indemnização aquando da desocupação (nº 4 do artº 9º do mesmo DL).
- Não tendo o pai do Réu adquirido a propriedade do terreno em causa por usucapião antes da entrada em vigor do DL nº 6/93/M, o Réu já não o pode fazer actualmente face à proibição legal, muito menos associar o tempo da posse do pai por sucessão para o efeito.
O Relator
Ho Wai Neng
Processo nº 709/2016
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 23 de Fevereiro de 2017
Recorrente: Companhia de Desenvolvimento B Limitada (Autora)
Recorrido: C (Réu)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 09/03/2016, julgou-se improcedente a acção interposta pela Autora Companhia de Desenvolvimento B Limitada e absolveu-se a Autora da instância quanto à reconvenção formulada pelo Réu C por ilegitimidade activa deste.
Da decisão que julgou improcedente a acção vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. Havendo o R. apresentado contestação ao pedido de reconvenção da parcela de terreno formulado pela A. e, com base nos mesmos fundamentos de facto, deduzido pedidos reconvencionais, alegando ter título legitimo para a ocupação que faz da parcela de terreno reinvindicado pela A. por haver iniciado uma nova posse sozinho sobre a barraca nele implantada, após a morte de seu pai, ocorrida em 2004, já que, seus irmãos, em tal data, já haviam deixado de viver na barraca e prescindindo de exercer quaisquer actos materiais sobre a mesma, por si ou através do R., o R. tem legitimidade para os pedidos reconvencionais que formulou, quais sejam, se declarasse haver adquirido direito de propriedade sobre a parcela de terreno reivindicada pela A. por usucapião, subsidiáriamente por acessão industrial imobiliária, e ainda, subsidiária e sucessivamente, a aquisição por usucapião dos direitos de superfície, de usufruto ou de uso e habitação entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação do disposto no art. 58.° do CPC, que estipula terem legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
II. A A., ora Recorrente, exerceu toda a sua defesa balizada pelos limites da causa de pedir e pedidos formulados pelo R. e, em decisão surpresa, a sentença recorrida, veio-se pronunciar sobre a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre a parcela reivindicada pelo pai do R. e sobre o facto de este estar a exercer actos materiais sobre a barraca equivalentes aos de proprietário, na qualidade de seu sucessor, sem que tais factos hajam sido alegados pelo R. - que, pelo contrário alegou estar a exercer actos de posse sobre a barraca e terreno em que está implantada em seu nome próprio e exclusivo e não como representante sucessório de seu pai decesso ou de qualquer outro dos herdeiros deste - ou, sem que tal pedido haja sido formulado pelo R., o que, inquina de nulidade a sentença, por inobservância do disposto no art. 3.° do CPC.
III. Os requerimentos subscritos pelo pai do R. D e dirigidos às autoridades competentes da Administração, quer para fornecimento de electricidade (fls. 260 dos autos), quer para o fornecimento de água (fls. 265 dos autos), à barraca (que não puderam ser dirigidos às sociedades fornecedoras de tais serviços, por não ter título que legitimasse o uso que dela fazia), e o requerimento para obter autorização para a reparação da barraca de madeira (fls. 312 dos autos), autorização que foi emitida em impresso escrito nas duas línguas, portuguesa e chinesa, e que expressamente exara que só tem autorização para reparar a sua barraca de madeira, com as seguintes dimensões: C-7,80m; L-5,20; e A-4,50m, não podendo sob pena de Lei, alterar a sua estrutura, ou empregar quaisquer outros novos materiais de construção, sem a prévia autorização desta Administração, datado de 07.05.1977, demonstram que, pelo menos nesta data, o mesmo sabia, estava consciente e aceitava que não era proprietário do terreno, que não tinha título para a ocupação que fazia do terreno, e que, por tal, não podia directamente contratar o fornecimento de água e electricidade e não podia nele livremente edificar.
IV. O recenseamento após levantamento feito em 1991 pelo Instituto de Habitação (Doc, n.º 3, junto à p.i.), que identifica a barraca como edificação informal n.º 21-15-XX-XXX-XXX, omite o nome do proprietário da barraca, refere a sua utilização como para habitação e serem os seus ocupantes D, F, G e C, demonstra que tal era a situação existente em 1991.
V. Tais documentos públicos, que fazem prova plena dos factos aí referidos como praticados pela autoridade pública ou atestados com base nas percepções da entidade documentadora, imporiam resposta diversa áquela que foi dada aos artigos 8.° e 9.° e 13.° e 14.° da Base Instrutória (pois, por tais documentos verifica-se que D sabia e aceitava que o terreno onde estava a barraca lhe não pertencia e que não tinha título que legitimasse a sua ocupação e que em 1991 só ocupavam a barraca D, sua mulher F e seus filhos, G e C, o R. - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do art. 365.° e 366.° do C.C.
VI. Estando provado, pelo que, consta de tais documentos de natureza pública que os poderes de facto exercidos pelo pai do R. sobre a barraca foram meros actos de detenção, pelo menos, a partir de meados de 1977, nunca exercidos com a intenção de se arrogar da qualidade de proprietário do terreno onde está implantada a barraca, e que, foram sempre exercidos com conhecimento e consciência de se estar a aproveitar da tolerância do proprietário do terreno onde a barraca estava implantada, os mesmos só poderiam relevar para a aquisição de qualquer direito real sobre o terreno em que a barraca estava implantada, se o mesmo houvesse feito inversão de posse, face aos interessados, i.e. face aos titulares de direitos sobre o terreno onde estava implantada a barraca, que toleravam os seus actos de ocupação- entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação dos art.s 1187.°, al. e), 1215.° e 1225.° do C.C.
VII. Para que a alegada posse do R., que porque exercida em nome e por tolerância do titular dos direitos sobre o terreno, igualmente relevasse para efeitos de usucapião, necessário seria também que a mudança de "animus", ou seja da intenção com que se exercem os actos materiais sobre o terreno onde a mesma está implantada, fosse clara e inequivocamente manifestada junto dos interessados, sob pena de em nada se poderem distinguir os actos anteriormente praticados sobre a coisa com "animus" de detentor, dos actos praticados sobre a coisa com "animus" de seu proprietário ou dono, quer perante os interessados, quer perante terceiros, sendo pois que tal posse é oculta, só existe no foro íntimo daquele que a exerce e nunca foi revelada ao mundo exterior, de forma a poder ser percepcionada por terceiros ou pelos interessados, os titulares de direitos afectados por tal mudança de actuação - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação dos art.s 1187.°, al. e), 1215.° e 1225.° do C.C.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que considere procedentes os pedidos formulados de condenar o Réu a reconhecê-la como dona e legítima proprietária do terreno em causa e a abster-se de fazer uso do terreno e de lhe entregar o terreno livre e desocupado de pessoas e coisas.
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O Réu respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 21 a 24v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- A sociedade Autora é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto a compra e venda de imóveis e se encontra registada sob o n.º 22XXX (SO) na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau. (alínea A) dos factos assentes)
- A sociedade Autora é titular do direito de propriedade do terreno sito no tardoz dos prédios n.ºs 1, 3 e 5 de R. ......, descrito sob o n.º 11XXX, a fls. 5v. do Livro B-30 na Conservatória do Registo Predial de Macau. (alínea B) dos factos assentes)
- O Réu ocupa a habitação identificada no Instituto de Habitação de Macau sob o n.º 21-15-XX-XXX-XXX, casa de madeira que na porta tem afixado o n.º A9, e que se encontra implantada no terreno referido no item anterior. (alínea C) dos factos assentes)
- Mais exactamente nas parcelas identificadas com “A12” e “C”, com as áreas respectivas de 37 m2 e 4 m2, da planta n.º XXXX/1993 de 05/07/2013 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro. (alínea D) dos factos assentes)
- O Réu recusa desocupar a referida barraca. (alínea E) dos factos assentes)
- 被告的父母親是D(D)及F(F)。(alínea F) dos factos assentes)
- 於1991年06月16日,被告的母親F(F)去世。(alínea G) dos factos assentes)
- 直至2004年05月01日,被告的父親D(D)去世。(alínea H) dos factos assentes)
- 被告的父親D(D)在居住該木屋期間,向澳門自來水公司申請水錶,與該公司訂立供水合同,以供該木屋使用,並每月支付耗用水的水費。(alínea I) dos factos assentes)
- 被告的父親D(D)在居住在該木屋期間,向澳門電力公司申請電錶,與該公司訂立供電合同,以供該木屋使用,並每月支付耗用電的電費。(alínea J) dos factos assentes)
- 在上世紀80年代,由於電話通訊的普及,被告的父親D(D)着被告向當時的澳門電訊有限公司申請電話,因而被告以其名義成功在該木屋申請了電話供家庭使用,並定期支付有關的電話費。(alínea K) dos factos assentes)
- 面對任何人,尤其街坊鄰居、親友、同事、同學、澳門政府各公共部門及私人實體,被告的父親D(D)與家人居住和生活在該木屋內的事實均一直是公開的,並為大眾所知悉的。(alínea L) dos factos assentes)
- 在被告的父親D(D)去世後,被告的兄弟姊妹先後遷出該木屋,而被告則繼續居住和生活於該木屋內,至今從沒有間斷。(alínea M) dos factos assentes)
- 2013年,被告還向澳門電訊有限公司申請了在該木屋提供家居寬頻上網服務,以供其使用,並定期支付費用。(alínea N) dos factos assentes)
- 面對任何人,尤其街坊鄰居、親友、同事、同學、澳門政府各公共部門及私人實體,被告繼續居住和生活在該木屋內的事實均一直是公開的,並為大眾所知悉的。(alínea O) dos factos assentes)
- O direito de propriedade da Autora adveio de compra feita a “H Insurance (Overseas) Company Limited”, por escritura de fls. 24/01/2006, lavrada a fls. 130 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º125 do Notário Privado I, aquisição registada a favor da sociedade Autora pela inscrição n.º 12XXXXG determinada pela Ap. 41 de 02/02/2006. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O Réu com a referida ocupação não permite, que a sociedade Autora goze das faculdades de usar, fruir e edificar no terreno de que é titular. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- A Autora pretende edificar em parte do terreno de que é titular. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Se o terreno estivesse livre e desocupado poderia ai construir prédio. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- O pai do Réu D construiu a barraca no terreno referido na alínea D) dos Factos Assentes no meado dos anos 60 e considerou que o terreno lhe pertencia. (respostas aos quesitos 8º e 9º da base instrutória)
- Desde então, o pai do Réu, D e a mãe F bem como os seus seis filhos: J, K, C, L, M e N, viviam juntos na referida barraca. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- 除一家居住外,為了生計,被告的父親D(D)還在該木屋內自家經營打鐵工匠,人稱“###”。 (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- No período compreendido entre meado dos anos 60 e 16 de Junho de 1991, o pai do Réu, D e a sua esposa F e os seus seis filhos sempre viveram na referida barraca e nunca houve nenhuma interrupção. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- No período compreendido entre meado dos anos 60 e 01 de Maio de 2004, o pai do Réu, D sempre viveu com os seus seis filhos na referida barraca e nunca houve nenhuma interrupção. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Durante aquele período o pai do Réu, D procedeu a vários trabalhos de manutenção, reparação e remodelação na barraca e no terreno onde esta estava edificada. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- 在上述期間,從沒有任何人或實體對被告的父親D(D)及其家人居住在該木屋,以及對該木屋及座落的地塊進行維修、管理及使用提出何反對或異議。(resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Após o falecimento do pai do Réu, este sempre se considerou como o dono do terreno e da barraca edificada nesse local. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- 被告不知悉該木屋座落的地塊屬於任何人或實體,更不知悉是否屬於原告,被告只知悉是屬於其父親D(D)所有。(resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- 在被告繼續居住該木屋期間,也從沒有任何人或實體對其居住在該木屋及使用該木屋座落的地塊提出任何反對或異議。(resposta ao quesito 19º da base instrutória)
Mais se provou:
- O terreno acima identificado já pertence à titularidade da propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM, conforme consta da respectiva certidão do registo integral constante a fls. 199 e seguintes dos autos, sendo o registo da primeira aquisição ocorrido em 28/9/1928.
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III – Fundamentação
1. Da nulidade da sentença:
Entende a Autora que a sentença é nula por inobservância do disposto do artº 3º do CPCM.
Adiantamos desde logo que não lhe assiste razão.
O legislador prevê, a título taxativo, as causas da nulidade de sentença no nº 1 do artº 571º do CPCM, a saber:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Como se vê, a eventual inobservância do artº 3º do CPCM nunca constitui causa da nulidade da sentença, mas sim nulidade processual, que não é o caso.
Pois o Réu, na reconvenção, alegou factos com vista a demonstrar a posse do seu pai, bem como a sua sucessão da posse após a morte do pai, e a Autora apresentou réplica para o efeito.
O Tribunal a quo acabou por entender que tal sucessão da posse não pode operar só na pessoa do Réu, mas sim no âmbito de todos os herdeiros legítimos do falecido.
Independentemente da bondade da decisão, o certo é que a sentença nunca é nula tal como é pretendida pela Autora, pelo que é de negar provimento ao recurso nesta parte.
2. Do mérito da causa:
A sentença recorrida, na parte da fundamentação jurídica e da decisória, tem o seguinte teor:
“...Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Com a presente acção, alegou a Autora que é dona e legítima proprietária do terreno sito no Tardoz dos prédios n°1, 3 e da aa Rua ......, por aquisição registada sob a inscrição n°12XXXX G na Conservatória do Registo Predial, no entanto, duas parcelas do terreno integradas nos referidos prédios, precisamente, as parcelas identificadas como “A12” e “C” da planta de n°XXXX/1993 de 05/07/2013 e ocupadas pelo Réu, pretendendo o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição daquelas parcelas de terrenos pelo Réu, bem como ser indemnizado pelo mesmo pela ocupação do terreno em causa.
Na contestação, o Réu invocou que o pai dele adquiriu as parcelas do terreno em discussão antes de 1965 e construiu nela uma casa de madeira, desde então, o pai tem exercido, reiteradamente, o poder de facto sobre as parcelas de terreno até o seu falecimento, após disso, o Réu e os seus irmãos continua e continuaram a residir na casa de madeira, mas à actualidade, os seu irmãos já deixaram de residir nela, ficando apenas o Réu a viver no prédio em causa, entendendo que tem posse sobre o prédio com tempo suficiente para a usucapião, pedindo, em reconvenção, que lhe seja reconhecida a qualidade de proprietário do prédio.
Ponderadas as posições tecidas pelas partes, a resolução do presente litígio depende de saber quem é o titular do direito da propriedade do terreno posto em causa.
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Presunção da titularidade do direito de propriedade derivada do registo
Prescreve-se o n°1 do art°1235° do C.C., que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
Como se sabe, a procedência da acção de reivindicação depende de dois requisitos: o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e detenção ou ocupação ilícita por parte do Réu.
Portanto, incumbe à Autora alegar e provar o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada, que pode ser por forma de aquisição originária ou aquisição derivada.
Ensina Luís Manuela Telles de Menezes Leitão, in Direitos Reais, Almedina, pga. 257“Para que possa proceder a acção de reivindicação, é necessário fazer a prova da titularidade do direito real. Para esse efeito, não basta, porém, a demonstração de uma aquisição derivada do direito, uma vez que nada garante que o Autora adquiriu a coisa ao seu legítimo proprietário. Para proceder a acção de reivindicação, é assim necessária a demonstração de uma aquisição originária do direito, como a usucapião, por parte do autora ou de anterior titular do direito, a quem aquele tenha adquirido. Essa prova, que pode ser extremamente difícil em concreto (probatio diabólica) é, no entanto, dispensada quando existem presunções de propriedade, como a derivada da posse ou do registo.”
Nesse sentido, a nível das jurisprudências, “Na acção de reivindicação, o proprietário tem de provar a aquisição originária para exigir o reconhecimento do seu direito de propriedade, no entanto, se a favor do autor se verifica presunção legal da propriedade, designadamente a resultante do registo, o pedido pode basear-se nela.” (Ac. do S.T.J., de 18/02/1988, in BMJ, 374°, -414)
E, “Demonstrado ao autor de acção de reivindicação que o imóvel em causa se encontra definitivamente registado como sua propriedade, compete ao réu o ónus de elidir a presunção legal derivada desse registo.” (Ac. do T.R.C., de 10/01/1989, in BMJ, 383°, -614)
Nesse caso concreto, o que foi alegado pela Autora na p.i. para sustentar o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada consiste na aquisição derivada da propriedade e não na aquisição originária.
Dos factos provados se resulta que por escritura pública de 24/01/2006, a Autora adquiriu a propriedade do terreno sito no tardoz dos prédios n°1, 3 e 5 da Rua ......, descrito sob o n°11XXX, a fls. 5v do Livro B-30 na C.R.P. à H Insurance (Overseas) Company Limited. Essa aquisição encontra-se registada a favor da Autora pela inscrição n°12XXXXG.
Nos termos do art° 7° do Código de Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
Ora, com o registo, a Autora beneficia de presunção de que o direito de propriedade existe e a eles pertence. Pelo que, é presumido que a Autora tem a titularidade da propriedade sobre os prédios inscritos a seu favor, mormente, a parcela do terreno objecto da reivindicação.
Mas o que a Autora goza é apenas a presunção legal do direito de propriedade, a ela só será reconhecido o direito se a presunção não seja elidida.
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O Réu, na contestação, invocou que o seu pai comprou o terreno reivindicado antes de 1965 e aí foi construída uma casa de madeira onde toda a família residia até o seu falecimento em 2004, tendo o pai, ao longo dos anos, residido e usado a casa de madeira e o respectivo terreno na convicção de ser dono e proprietário dos mesmos, após o falecimento dos pais, fica o Réu a continuar a viver na referida cada de madeira, portanto, o Réu também se considerou como dono e proprietário da cada de madeira e do terreno, entendendo que quer o pai, depois da sua morte, quer ele, tem exercido a posse sobre a casa de madeira e do terreno desde anos 60s.
Com os factos alegados pelo Réu, pretende este afirmar que exerce posse sobre o terreno e a casa de madeira nele implantada, tendo adquirido, por isso, o direito de propriedade, a serem provados esses factos, susceptíveis de elidir a presunção gozada pela Autora.
“A usucapião, forma de aquisição originária do respectivo direito de propriedade, está na base de toda a nossa ordem imobiliária assenta, não no registo, mas na usucapião, que em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais, valendo inteiramente por si. A usucapião é um instituto exterior ao sistema de registo que prevalece sobre o mesmo na solução de conflitos entre os adquirentes de direitos reais. Havendo conflito entre direitos compatíveis sobre o mesmo prédio, valerão as regras substantivas.” (Fernando Pereira Rodrigues, in Usucapião, pg.69)
Pois, o registo favorece quem o possui em seu favor vale apenas contra quem não tiver registo nem beneficie de usucapião.
A anterior aquisição originária fundada na usucapião pelo Réu, mesmo que não registada, prevalecerá sobre a posterior aquisição derivada do registo pela Autora.
Posto isto, urge aquilatar se o Réu tem posse sobre o terreno reivindicado pela Autora.
Posse
Segundo o preceito do art°1175° do C.C.99: “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Sobre a posse, a doutrina dominante tem entendido que o conceito da posse, acolhido no art°1251° e ss do C.C. 66 (com a redacção idêntica dos art°1175° e ss do C.C. 99), deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, em que se exige dois elementos “corpus” e “animus”. O corpus, traduz-se como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa, enquanto o anímus, que consiste na intenção por parte de quem a exerce, de se comportar como titular do direito real correspondente aquele domínio de facto ou aos actos praticados. (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª edi, Vol III, pag.5 e Orlando Carvalho, in RLJ, 122°-65 e ss)
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Vejamos se no caso do Réu se ocorrem esses dois requisitos.
No que diz respeito ao corpus, resulta-se dos factos assentes que o pai do Réu D, no meado dos anos 60, construiu a barraca identificada com n° A9 que se encontra implantada nas parcelas identificadas por “A12” e “C”, com as áreas de 37m2 e 4 m2, respectivamente da planta n°XXXX/1993 de 05/07/2013, emitida pelos Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro.
Desde então, toda a família do Réu, incluindo os pais D e F e os seis filhos J, K, C, L, M e N, viviam juntos na referida barraca, tendo ainda o pai do Réu exercido a actividade de ferreiro na mesma barraca.
Mais se provou que o pai do Réu, durante a sua vivência até o seu falecimento procedeu a vários trabalhos de manutenção, reparação e remodelação na barraca.
Pese não saibamos o modo pelo qual o pai do Réu adquiriu o terreno, no entanto, de acordo com esses factos dados como provados, pode deduzir-se que desde a construção da barraca nas referidas parcelas do terreno, o pai do Réu tomou-a como casa morada da família, vivendo nela, com todos os membros da sua família, até à sua morte e também exercia a profissão de ferreira naquela barraca, procedendo a vários trabalhos de reparação, ao longo dos anos, assim como solicitando às entidades competentes o fornecimento da electricidade e da água e a instalação do telefone.
Todos esses actos praticados pelo pai do Réu tratam-se, sem dúvida, dos actos materiais de domínio de facto sobre o prédio. Analisados esses actos, não se vê diferença entre estes e os que o dono de um prédio praticaria. Nem se diga que todos os actos materiais praticados pelo pai do Réu incidam apenas sobre a barraca e não sobre o terreno onde está implantada a barraca. A construção da casa de madeira no terreno, em si, já é uma manifestação clara do exercício do poder de facto sobre o imóvel. Que mais poderá exigir para demonstrar o domínio do poder a implantação duma casa no próprio terreno. Após a edificação, todos os actos materiais praticados pelo indivíduo sobre a edificação recaem, igualmente, sobre o terreno onde aquela se encontra implantada. Não se afastará, absolutamente, a hipótese de que haverá caso do exercício do poder de facto, separadamente, sobre a edificação e o terreno, se houverem factos concretos que apontam para esse sentido, o que não foi o caso. Na normalidade da vida, a construção da casa no terreno e a ocupação da casa já constitui o poder de controlo sobre todo o imóvel, isto é a edificação e o terreno. Portanto, dúvidas não temos que existe “corpus”.
No que tocante ao elemento “animus,”, também se acha verificado a partir dos factos acima provados.
Com efeito, estatui-se no n° 2 do art°1176° do C.C99 que “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.”
Diz Mota Pinto que “A prova do exercício do poder de facto faz presumir a existência do animus.” (Cfr. Direito Reais, 1971, 191)
Nesse sentido, decide-se o Acórdão do TSI n° 292/2004, de 17 de Março de 2005, “O animus mais não é que essa intenção jurídico-real. Admite-se até que a intenção de domínio não tenha de explicitar-se e muito menos por palavras: o que importa é que se deduza do próprio modo de actuação ou de utilização da coisa”,
Por um lado, a prova da prática dos poderes de facto pelo pai do Réu sobre o prédio, decorre-se que o pai do Réu tinha a intenção do domínio material sobre o prédio, presunção essa não foi ilidida. Por outra banda, está assente que o pai do réu considerou que o terreno lhe pertencia, o que demonstra que o pai do Réu exercia os actos materiais na convicção de ser dono do mesmo. Daí que também existe animus possidendi.
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Preceitua-se o disposto da alínea a) do artº 1187° do CC99 que “A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito.”
A aquisição da posse está condicionada, mas não se limite, com a demonstração dos elementos de corpus e animus. Para o efeito, a lei exige mais dois requisitos: a prática reiterada e a publicidade.
No que tocante a reiteração, tem entendido que o que releva para o apossamento é a intensidade da actuação, e não o tempo, para criar o controlo material sobre a coisa.
Assim, diz José Alberto C Vieria, in Direitos Reais, que “Este (apossamento) requer que o possuidor esteja em condições de actuar duradouramente sobre a coisa ou seja, de a conservar debaixo do seu poder. Isto não quer dizer, porém, que a posse tenha de se manter duradouramente para que haja apossamento, mas que deve existir essa possibilidade abstracta.”
No caso em causa, assente está que a família do Réu residia e reside no imóvel em causa e o pai do Réu exercia a actividade profissional, à vista de todos que ali passa e é assim conhecido tanto pelos vizinhos como pelas entidades privadas e públicas, há cerca de 40 anos, até a sua morte.
Portanto, os actos materiais eram praticados interruptamente pelo pai do Réu, a duração duradoura do domínio material integra-se, inequivocamente, no requisito da prática reiterada.
Por outro lado, esses actos eram actuados pelo pai do Réu à vista de todos, facilmente perceptíveis por todos que passavam pelo prédio, o controlo material é, sem dúvida, feito, pela forma pública.
Ora, mostram-se preenchidos os requisitos essenciais, é de afirmar que o pai do Réu adquire-se a posse sobre as parcelas do terreno identificadas com “A12” e “C” na planta n°XXXX/1993, de 05/07/2013, ao abrigo do disposto do art°1187°, alínea a) do C.C..
Sucessão da posse
Invoca o Réu que ele tem posse sobre o terreno sub judice por actualmente só ele continua a residir na casa de madeira, uma vez que os outros irmãos deixaram de lá residir, depois da morte do pai.
Uma situação da posse pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito quem a aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior. No primeiro caso, por apossamento ou inversão do título (art°1263°, a) e d) do C.C.66) e, no segundo, por tradição, sucessão ou constituto possessório. ( b) e c) do mesmo artigo)
Estipula-se o art° 1255° do C.C., por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.
É entendimento pacífico que a herança, antes da partilha, constitui uma universitas júris, um património autónomo, com conteúdo próprio, que de modo algum se confunde com a figura da compropriedade. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança, cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados desta. (Ac. do STJ, de 17/04/1980, BMJ, 296°-298)
No caso de sucessão, a posse de de cujus continua no sucessor, portanto, a posse do sucessor é exactamente igual à posse do de cujus, mantendo todos os caracteres. Portanto, os herdeiros não precisam de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa.
Desse modo, como se afirmou o próprio Réu, para além dele, os seus pais haviam mais cinco filhos, e, de acordo com o preceito da alínea a) do n° 1 do art° 1973°, todos os seus irmão são os legítimos sucessores do seu pai.
Então, a sucussão da posse deveria verificar-se em relação a todos os herdeiros do falecido e não apenas em favor do Réu.
Nem por facto de os irmãos deixarem de residir na casa alterou-se essa situação jurídica, já que a falta da apreensão material ou utilização da coisa é irrelevante para os herdeiros adquiram a posse do falecido por via de sucessão.
Trata-se de herança indivisa, cada um dos consortes possui por si e pelos outros o património indiviso, não havendo direito próprio sobre a herança.
Qualquer dos herdeiros pode praticar os actos materiais sobre o prédio, como o caso do Réu, porém, sempre foi feita na qualidade de co-herdeiro, sendo, assim, apenas possuidor ou detentor precário no confronto com os outros herdeiros.
Mas, a posse do Réu tornar-se-ia posse própria se tivesse invertido o título, através do acto inequívoco dirigido aos restantes herdeiros, então, deixando ele de possuir na qualidade de co-herdeiro e passar a possuir como dono único.
Volvidos aos autos, não foi alegada menos provada qualquer matéria fáctica quanto à inversão do título pelo Réu perante os seus irmãos, desse modo, a posse do Réu é sempre posse como co-herdeiro e em nome da herança indivisa do D e não posse própria.
Efeito da posse
Dispõe-se o n° 1 do art° 1268° do C.C.66 que “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.”
Provado está que o Réu tem posse na qualidade de co-herdeiro sobre o terreno reivindicado pela Autora, posse essa já se perdurou mais de 50 anos, duração necessária para aquisição originária por usucapião.
Por forca do disposto da norma acima transcrita, os co-titulares da posse goza da presunção da titularidade do direito.
Conflito das presunções
Conforme acima exposto, por uma lado, a Autora goza da presunção da propriedade derivado do registo previsto no art°7° do C.R.P. e, por outro lado, os herdeiros do D, sendo o Réu um dele, também goza da presunção do direito da propriedade, mas esta resultante da posse.
Como ambas as partes beneficiam da presunção legal, há de determinar qual dela prevalece, o que será resolvido por força do disposto 1268° do CC66 ou art° 1193° do C.C. actual.
“O registo de transmissão a favor dos autores constitui presunção de que estes são proprietários do prédio registado, em que está integrado um terreno em relação ao qual a Ré goza da presunção de propriedade, que lhe advém da posse pública, pacífica e contínua que tem vindo a exercer sobre esse mesmo terreno. Havendo conflito de presunções, uma derivada da posse e outra do registo, prevalece aquele que for a mais antiga, e é mais antiga a presunção derivada da posse desde 1957 do que a presunção derivada do registo feito em 1958.” (cfr. Acórdão do STJ, 16/06/1983, in BMJ, 328°, -546)
No mesmo sentido, também o Ac. do STJ, de 14/11/2013, “A presunção derivada do registo predial pode entrar em conflito com a presunção da titularidade resultante de posse de outrem sobre o mesmo prédio. Resultando do art°1268° do CC que a presunção derivada do registo apenas prevalecerá se for anterior ao início da posse, poi, de contrário, será a presunção a favor do possuir que prevalecerá. Significando esta última presunção que o possuidor, numa acção de reivindicação, não tem o ónus da prova, cabendo ao reivindicante esse encargo.”
In casu, o registo da adquisição da Autora foi feito em 02 de Fevereiro de 2006 enquanto a posse do Réu na qualidade do co-herdeiro iniciou-se no meado dos anos 60, logo, é esta mais antiga, prevalecendo sobre aquela.
Para além disso, mais do que mero possuidor, o Réu e os seus irmãos mantêm-se o poder de facto sobre a coisa há cerca de cinquenta de vintes anos (?), já teria adquirido o direito de propriedade sobre o prédio por via da usucapião, muito antes do registo a favor da Autora.
Logrou o Réu provar que tem posse, mesmo na qualidade de co-titular, sobre o prédio, anterior ao registo de que a Autora beneficia, prevalece a presunção derivada daquela.
Ou seja, a presunção do direito de propriedade derivado do registo da Autora há de ceder perante a presunção emergente da posse exercida pelos herdeiros da D, e com a duração suficiente para a usucapião.
Pedido da Autora
Fundamentada a Autora a acção de revindicação na titularidade do direito de propriedade por presunção derivada do registo, no entanto, logrou o Réu ilidir a presunção legal alegada pela Autora.
Desse modo, falhou a Autora num dos requisitos indispensáveis para a procedência da acção de revindicação, logo, não poderá deixar de improceder todos os pedidos formulados pela mesma.
Reconvencão
O Réu formula pedido reconvencional, pretendendo que se reconhece como único titular da propriedade sobre o prédio em jogo por aquisição originária por usucapião.
Antes de apreciar o mérito da causa, há de saber se o Réu tem legitimidade para instauração do pedido reconvencional.
De acordo com o disposto do art° 1929° do C.C., os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, salvo os casos declarados nos artigos anteriores.
Como se deixa referido acima, com a sucessão da posse, os herdeiros do D sucedem-se na titularidade da posse, ou seja, a posse que tinha sido exercida pelo D é considerada exercida, continuadamente, por todos os seus herdeiros. O Réu não tem posse própria mas somente posse em nome dos herdeiros.
Sendo o Réu um dos co-titulares da herança, a acção para reconhecimento do direito de propriedade do prédio pertencente à herança há de ser exercida conjuntamente pelos seus herdeiros.
O art° 61º, nº 1 do C.P.C. reza-se que “Se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários sujeitos da relação material controvertida, a falta de qualquer deles é motivos de ilegitimidade.”
Daí que quem tem legitimidade para deduzir a acção de usucapião devia ser todos os herdeiros legítimos do D, sendo um caso de litisconsórcio necessário.
Por isso, sem acompanhado por outros herdeiros do D, não tem o Réu legitimidade para formular a reconvenção.
Nestes termos, por manifesta falta de legitimidade activa do pedido reconvencional, o que impede o conhecimento o mérito da causa, deverá a Ré ser absolvida da instância do pedido reconvencional, ao abrigo do disposto do 230º, nº 1, alínea d), conjugado com o art° 414°, ambos do C.P.C..
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IV) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto c justificado, o Tribunal julga improcedente a acção formulada pela Autora e a reconvenção formulada pelo Réu c, em consequência, decide:
- Absolve-se o Réu C de todos os pedidos formulados pela Autora Companhia de Desenvolvimento B Limitada;
- Absolve-se a Autora/reconvinda da instância do pedido reconvencional formulado pelo Réu/Reconvinte.
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Custas pelas partes na parte do seu decaimento.
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Registe e Notifique.”.
Salvo o devido respeito, não podemos sufragar a sentença supra transcrita por uma razão simples, que é justamente o reconhecimento da posse do Réu e da consequente possibilidade de aquisição originária por usucapião do terreno em referência viola o disposto do nº 4 do artº 3º do DL nº 6/93/M, de 15 de Fevereiro, nos termos do qual os possuidores ou utilizadores das edificações informais (as barracas), ainda que tenham sido recenseados pela Administração, não têm qualquer direito, nomeadamente título ou licença de construção e utilização ou de ocupação do solo.
Como é sabido, em 1993, o então Governo de Macau, por meio do DL nº 6/93/M, estabeleceu as medidas conducentes à contenção e erradicação das edificações informais (barracas) existentes, enquadrando as expectativas e definindo os deveres que cabiam aos respectivos possuidores e utilizadores.
Dispõe o artº 3º do referido DL o seguinte:
Artigo 3.º
(Operações relativas às edificações informais)
1. As edificações informais existentes no Território à data da entrada em vigor do presente diploma, e respectivos utilizadores, ficam sujeitos às seguintes operações:
a) Cadastro;
b) Recenseamento;
c) Fiscalização;
d) Controlo;
e) Desocupação;
f) Demolição.
2. As edificações informais referidas no número anterior são as constantes de inventário realizado pelo I.H.M., sendo em cada uma delas aposto, por meios não deterioráveis, um código identificativo.
3. Conjuntamente com o inventário das edificações informais são identificados e recenseados todos os seus utilizadores.
4. A atribuição do código referido no n.º 2 não confere qualquer direito, nomeadamente título ou licença de construção e utilização ou de ocupação do solo.
Por sua vez, o artº 9º estabelece que:
Artigo 9.º
(Recenseamento de residentes)
1. Todos aqueles que tenham sido identificados pelo I.H.M. como residindo, a título permanente, em edificação informal inventariada e que preencham os requisitos legais de residência ou permanência em Macau são recenseados nos termos dos números seguintes.
2. O recenseamento é realizado por agregado familiar segundo as edificações informais de residência, mediante o registo dos seguintes elementos:
a) Identificação completa dos elementos que compõem o agregado familiar, com a indicação do seu representante;
b) Número, data e tipo de documento de identificação de cada membro do agregado familiar;
c) Data de início de residência em Macau de cada membro do agregado familiar;
d) Data de fixação de residência do agregado familiar na edificação informal;
e) Ocupação profissional do agregado familiar e rendimentos auferidos;
f) Código identificativo da edificação informal de residência.
3. No registo é averbada fotocópia dos documentos de identificação de todos os membros do agregado familiar.
4. O recenseamento dos agregados familiares residentes em edificações informais não confere o direito à atribuição de habitação social ou de indemnização em caso de desocupação.
5. O recenseamento dos residentes é executado por zonas e realizado pelo I.H.M. em colaboração com o Instituto de Acção Social de Macau e Forças de Segurança de Macau, nos termos previstos no artigo 7.º
Como se vê, o legislador é claro no sentido de não conferir aos possuidores das barracas qualquer direito de ocupação do terreno (nº 4 do artº 3º do citado DL), nem indemnização aquando da desocupação (nº 4 do artº 9º do mesmo DL).
Ora, não tendo o pai do Réu adquirido a propriedade do terreno em causa por usucapião antes da entrada em vigor do DL nº 6/93/M, o Réu já não o pode fazer actualmente face à proibição legal, muito menos associar o tempo da posse do pai por sucessão para o efeito.
Dos factos provados resulta que por escritura pública de 24/01/2006, a Autora adquiriu a propriedade do terreno em causa e essa aquisição encontra-se registada a favor da Autora pela inscrição n°12XXXXG.
Nesta conformidade e na impossibilidade legal da aquisição por usucapião por parte do Réu, a acção interposta pela Autora não deixa se de julgar como procedente.
A Autora formulou três pedidos na petição inicial, a saber:
a) Condene o R. a reconhecer a A. como dona e legítima proprietária da parcela de terreno com a área total de 41m2 (parcelas identificadas como “A12” e “C”, com as áreas respectivas de 37m2 e 4 m2, da planta n.ºXXXX/1993 de 05/07/2013 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro), parte do prédio descrito sob o n.º 11XXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, e a abster-se de fazer uso de referida parcela;
b) Condene o R. a pagara à A. a título de indemnização pela ocupação legítima da referida parcela de terreno a quantia de MOP$404,600.00 por mês de ocupação desde a data de citação até à data da sua entrega livre e desocupada de pessoas e coisas, acrescida dos juros legais que se vencerem desde a data da entrega da mencionada parcela de terreno, até à data do seu efectivo pagamento;
c) Condene a R. nas custas do processo e demais encargos legais.
Todos eles foram julgados improcedentes.
Em sede do presente recurso, notamos que a Autora não pediu a condenação do Réu no pagamento da indemnização pela ocupação do terreno, pelo que este pedido não é atendido tendo em conta o princípio do dispositivo.
Tudo visto, resta decidir.
*
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- conceder provimento parcial ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida na parte correspondente;
- julgar parcialmente procedente a acção interposta pela Autora e consequentemente, condenar o Réu a reconhecer a Autora como dona e legítima proprietária do terreno em causa e a abster-se de fazer uso do terreno.
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Custas pela Autora e pelo Réu em ambas as instâncias na proporção de decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Réu.
A proporção de decaimento no presente recurso é de 1/10 para a Autora, respeitante à improcedência da nulidade da sentença.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 23 de Fevereiro de 2017.
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
1
709/2016