Proc. nº 702/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Fevereiro de 2017
Descritores:
- Propriedade dos solos
- Acção de justificação de posse sobre o prédio urbano
- Actos de posse
- Posse causal e posse formal
SUMÁRIO:
I. Com base no art. 7º da Lei Básica, para a hipótese de não ter sido reconhecido o direito de propriedade sobre terrenos de Macau antes do estabelecimento da RAEM, deixou de ser possível a aquisição deste direito após esse estabelecimento, nem mesmo por usucapião.
II. A posse causal é aquela em que existe uma coincidência entre os actos de exteriorização por parte do possuidor e a titularidade substantiva. Por exemplo, se alguém age sobre uma coisa com base num título, a posse é causal. A sua posse não é autónoma, porque se funda nesse título e nos actos correspondentes.
III. A posse será formal se o interessado não é titular do direito sobre a coisa, mas se comporta como se o fosse, exercendo sobre ela os poderes de conteúdo respectivo. Aqui o possuidor actua abstraindo do direito com que se titula.
IV. Sem a demonstração de actos de posse, fica prejudicada a possibilidade de aquisição do respectivo direito.
Proc. nº 702/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A (XXXX-XXXX-XXXX), e sua mulher, B (XXXX-XXXX-XXXX), casados no regime da comunhão de adquiridos, titulares, respectivamente, dos Bilhetes de Identidade de Residente Permanente de Macau nºs. XXXXXXX(5) e XXXXXXX(3), ambos emitidos em 15 de Junho de 2005, pelos Serviços de Identificação de Macau, residentes em Macau, na Rua das Virtudes, nºs. 7 a 13, Edifício San Fong Fan, 2.º andar “A”, Taipa, instauraram no TJB (Proc. nº CV1-15-0032-CPE) e nos termos dos arts. 104.º, n.º 1 e 107.º e ss. do Código do Registo Predial, uma acção de justificação contra: ----
C, solteiro, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(7), ----
D, solteira, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(4), ----
E, solteiro, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(8), ----
F, solteiro, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(2), ----
G, solteiro, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(6), ----
todos residentes em Macau, na ………………….., ----
Ministério Público e interessados incertos.
Para tanto, invocaram o seguinte:
- São donos e legítimos possuidores do imóvel sito na Taipa, Macau, no ……………………………..,
- Adquiriram aos primeiros RR., C, D, E, F, G, por efeito e nos termos da escritura notarial outorgada em 8 de Março de 2010;
- O referido imóvel não está descrito na Conservatória do Registo Predial,
- Os números 15A e 19 do aludido prédio constam da matriz predial sob os artigos 40555-00 e 40556-00, respectivamente,
- O imóvel está claramente individualizado, e separado de quaisquer outras construções, sendo constituído por rés-do-chão e primeiro andar, e confrontando em todo o seu perímetro com a via pública, a Norte, Este e Sul com o Largo Maia de Magalhães, e a Oeste com a Rua das Gaivotas e Travessa da Boa Esperança.
- São os demandantes quem utiliza, com exclusividade, o identificado prédio, dele retirando, com exclusão de quem quer que seja, todo o seu proveito económico, à vista de todos, sem oposição de ninguém, nomeadamente vizinhos, de boa fé, de forma titulada, com a convicção e comportando-se como seus únicos donos e proprietários,
- Qualidade em que, em 20 de Maio de 2013, o arrendaram a Wong Hoi Ian, que nele explora o estabelecimento “XX Coffee”;
- Desde tempos imemoriais que o mencionado prédio se encontrava na família dos RR., sempre o detendo e possuindo, dele fazendo sua habitação.
- Os RR., que nele moraram, tomaram-se seus donos após o falecimento dos respectivos pais, H, ou H, e I, ou I, anteriores titulares do prédio conforme as inscrições matriciais,
- Com o seu falecimento, passaram os RR. a deter, utilizar e possuir, como donos, o referido prédio, nele habitando, portanto, de boa fé, publicamente, em exclusividade e sem oposição de quem quer que fosse.
- Em 8 de Março de 2010, os RR. cederam os seus direitos sobre o mencionado prédio aos ora Autores e desde então, são os Autores são quem possui o prédio.
A partir destes fundamentos, pediram que o Tribunal ordenasse a abertura da descrição predial do imóvel identificado e fosse registada a seu favor a respectiva posse.
*
O tribunal “a quo” indeferiu liminarmente a petição ao abrigo do art. 394º, nº1, al. d), do CPC por entender que a pretensão dos autores manifestamente não poderia proceder.
*
Contra esta decisão recorrem os autores da acção, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
“A) A douta decisão recorrida faz errada interpretação da Lei de Terras, nomeadamente do disposto nºs seus artigos 4.º, 8.º e 9.º, e, bem assim do disposto no art.º 7.º da Lei Básica;
B) A decisão recorrida viola o princípio da segurança jurídica consagrado na al. 9) do art.º 2.º da lei de Terras, e
C) Desconsidera direitos adquiridos.
D) A decisão recorrida não está conforme com a definição legal de (e a distinção jurídica entre) coisas do domínio público, fora do comércio, e coisas imóveis, decorrentes dos artigos 193 e 195.º do Código Civil.
E) O artigo 4.º da Lei de Terras consagra como domínio público os «terrenos», que o Código Civil refere no seu artigo 193.º, disposição para a qual expressamente remete, mas não os «imóveis», os quais são definidos no art.º 195.º do Código Civil.
F) Não pode ignorar-se tal distinção.
G) Pois, na fixação do sentido e alcance da lei, deve presumir-se que «o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (art.º 8., n.º 3 do Código Civil).
H) A douta decisão recorrida incorre no vício interpretativo de equiparar «terrenos» e «imóveis», fazendo coincidir ambos os conceitos jurídicos.
I) Tivesse sido intenção do legislador alargar o regime dos terrenos aos imóveis, tê-lo-ia feito expressamente. Em apoio deste entendimento labora o facto de a Lei de Terras, Lei n.º 10/2013, ter sido promulgada recentemente, em 2 de Setembro de 2013, em plena discussão jurisprudencial sobre a questão abordada na decisão recorrida.
J) Se o legislador quisesse estender as restrições que estabeleceu para os terrenos de modo a abranger também os imóveis (art.º 195.º do Código Civil), certamente que teria usado outra terminologia jurídica quando da redacção da Lei de Terras, onde refere, repetidamente, tão só os terrenos.
K) A Lei de Terras regula, claramente, apenas os «terrenos», que não os «imóveis».
L) Daqui se conclui que os prédios urbanos, em especial os imóveis, construções ou edifícios, poderão estar fora do âmbito de aplicação da Lei de Terras.
M) In casu, o direito de superfície incide sobre um imóvel há muito existente.
Não incide sobre o terreno. A Lei de terras impede a aquisição de direitos sobre terrenos, não sobre imóveis.
N) Admitindo a impossibilidade legal de usucapir terrenos do domínio público ou privado da RAEM, deve entender-se que tal não impede que a posse seja tutelada, em toda a sua amplitude, com as únicas excepções da prescrição positiva ou aquisição da propriedade (do terreno) por usucapião e da aquisição (do terreno) por acessão.
O) O que a lei (de terras) quis impedir foi a usucapião (e acessão). Não quis impedir que se constituíssem outros direitos sobre os aludidos terrenos, e menos ainda, direitos sobre imóveis existentes nesses terrenos.
P) Portanto, mesmo sendo terreno não usucapível, não se vê porque não há-de um imóvel construído nesse terreno ser objecto de relações jurídico-privadas.
Termos em que, e nºs melhores de Direito aplicáveis, deve proceder o presente recurso, e, consequentemente, ser revogada a douta decisão a quo, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com o que
Se fará a costumada JUSTIÇA!”
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
Os primeiros RR celebraram com os autores o seguinte contrato:
Contrato de Transferência da Posse
(cfr. orig. rubricas)
(E)
(F)
(D)
(G)
(C)
(B)
(A)
Outorgantes:
Transmitentes:
C, do sexo masculino, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Alameda Dr. Carlos d' Assumpção n.º 606E, edf. Chang Fu, Bloco 2.º, 15.º andar “C”, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(7), emitido pela DSI no dia 26/04/2004.
D, do sexo feminino, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Alameda Dr. Carlos d' Assumpção n.º 606E, edf. Chang Fu, Bloco 2.º, 15.º andar “C”, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(4), emitido pela DSI no dia 5/09/2006.
E, do sexo masculino, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Alameda Dr. Carlos d' Assumpção n.º 606E, edf. Chang Fu, Bloco 2.º, 15.º andar “C”, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(8), emitido pela DSI no dia 4/05/2005.
F, do sexo masculino, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Alameda Dr. Carlos d' Assumpção n.º 606E, edf. Chang Fu, Bloco 2.º, 15.º andar “C”, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(2), emitido pela DSI no dia 26/04/2004.
G, do sexo masculino, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Alameda Dr. Carlos d' Assumpção n.º 606E, edf. Chang Fu, Bloco 2.º, 15.º andar “C”, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(6), emitido pela DSI no dia 26/04/2004.
Sendo cessionários da propriedade abaixo dita, obtiveram a posse por sucessão dos pais, os mesmos são designados por Parte A.
Transmissário: A, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(5) e cônjuge B, do sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º XXXXXXX(3),casados no regime de comunhão de adquiridos, residentes em Macau, Taipa, na Rua das Virtudes n.º 7, edf. San Fong Tan, 2.º andar “A”, adiante designados por Parte B.
A Parte A é possuidor da propriedade que sita em Macau, na Taipa, …………………... A posse da referida propriedade pertencia aos seus pais falecidos, os quais obtiveram no Período Republicano através da celebração do contrato com o anterior possuidor (o referido contrato tornará parte do presente contrato). Agora a Parte B por vontade própria aceita a posse da propriedade, que, por outro lado, a Parte A pretende transferir a posse à Parte B. A Parte B aceita também que a Parte A é como o possuidor da referida propriedade, no entanto a referida propriedade nunca foi registada em nome da Parte A, nem foi feita qualquer registo. A Parte B só quer morar, utilizar e receber rendimentos com a referida fracção.
Vem ambas as Partes de forma voluntária celebrar o presente contrato, bem como cumprem em conjunto as seguintes cláusulas:
1. A Parte A pelo preço de HKD 2.380.000,00, que equivale a MOP$2.456.160,00 transfere a posse da propriedade a Parte B, que sita em Macau, na Taipa, Largo Maia de Magalhães n.ºs 15A, 17 e 19, esta Parte subscreve e declara que aceita.
(cfr. orig. Data pagamento/ Guia no./ Valor Imposto / Total Pago)
(cfr. orig. Data pagamento/ Guia no./ Valor Imposto / Total Pago)
2. Ambas as partes A e B, concordam a seguinte forma de pagamento:
(1.) No dia 16/01/2010, a Parte B já pagou à Parte A o montante de HKD900.000,00. (2.) Ao celebrar o presente contrato, a Parte B paga integralmente o restante montante de HKD1.480.000,00 aos vendedores.
3. Ao celebrar e entregar o presente contrato a fracção será entregue e transferida à Parte B, a fim de a Parte B residir, utilizar e receber rendimentos, a Parte B está ciente de que a referida propriedade é propriedade de dois pisos.
4. A partir da presente data, a Parte A não pode a título de proprietário outorgar contratos de promessa de compra e venda/escrituras de compra e venda, procuração/substabelecimentos, contratos de arrendamento, receber preços ou obter interesses com a referida propriedade, nem pode hipotecar para qualquer entidades financeiras ou bancos para efeitos de empréstimo. Caso contrário, a Parte B tem direito de nºs termos legais acusar a Parte A e recorrer. Todas as despesas legais e prejuízos económicos serão responsabilizados pela Parte A.
5. A Parte B deve a contar da data de entrega responsabilizar-se no pagamento de todos os encargos originados pela referida fracção, incluindo a contribuição predial. Antes da entrega da fracção todos os impostos e deveres da referida propriedade, devem ser encarregados pela Parte A.
6. Após celebração do presente contrato, se a Parte B renunciar a transferência, o supracitado preço pertencerá à Parte A. Caso a Parte A não retire da propriedade terá que pagar o sinal em dobro à Parte B.
7.No pagamento do montante restante ou seja no último pagamento, a Parte A necessita de entregar à Parte B todos os documentos de posse da referida propriedade, nomeadamente o contrato de aquisição celebrado com o anterior possuidor, todos os recibos da contribuição predial e outros. A Parte A necessita de quando outorgar o contrato celebrar uma procuração a Parte B.
8. O que não está estipulado no presente contrato, será tratado de acordo com a lei vigente em Macau.
9. O presente contrato tem dois duplicados, que após celebração de ambas as Partes A e B estará de imediato em vigor. A Parte A e B ficam respectivamente com uma.
8/03/2010, Macau
(cfr. orig. Carimbo do 1.º Cartório Notarial)
Parte A: (cfr. orig. ass.) Parte B: (cfr. orig. ass.)
C A
D B
E
F
G
(carimbos do 1.º Cartório Notarial)
***
III – O Direito
1 - Porque o prédio adquirido não tinha registo predial anterior a favor dos primeiros RR e seus antecedentes, os autores pretenderam, com a acção em apreço, obter a primeira inscrição a seu favor e o reconhecimento da mera posse, ao abrigo dos arts. 104º, nº, 107º e 113º, do Código do Registo Predial.
A sentença ora em crise, a coberto do art. 7º da Lei Básica e do art. 3º da Lei nº 10/2013 (Lei de Terras), servindo-se de argumentos que afastam a possibilidade de titularidade do direito de propriedade após a criação da RAEM, solução que acabou igualmente por estender à mera posse, face ao disposto no art. 1175º e 1193º do Código Civil, acabou por indeferir liminarmente a petição inicial.
Os recorrentes põem em crise esta argumentação, colocando a tónica na circunstância de que aquilo que pretendem, diferentemente do que a Lei Básica proíbe e do que o entendeu a decisão judicial em crise, não é o reconhecimento da posse sobre o terreno (solo), mas sobre o prédio urbano nele edificado.
Vejamos.
É ponto assente, efectivamente, e com base no art. 7º da Lei Básica, que, não tendo sido reconhecido o direito de propriedade sobre terrenos de Macau antes do estabelecimento da RAEM, deixou de ser possível a aquisição deste direito após esse estabelecimento, nem mesmo por usucapião (v.g., Ac. do TUI, de 6/02/2013, Proc. nº 2/2013; 16/02/2011, Proc. nº 71/2010; 20/05/2010, Proc. nº 17/2010; Ac. TSI, de16/02/2012, Proc. nº 625/2011; 15/12/2011, Proc. nº 971/2010, entre outros).
Esta asserção, contudo, não impede que o domínio útil possa ser adquirido por usucapião em certas condições (Ac. do TSI, 11/10/2002, Proc. nº 170/2012, nomeadamente se o terreno tiver sido concedido por aforamento pelo Território de Macau a particulares, por escritura pública e registado na Conservatória do Registo Predial (Ac. TUI, de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007).
Assim, desde que o domínio útil assentasse nalgum título legalmente válido – como é o caso de escritura pública de concessão por arrendamento do terreno onde legitimamente depois disso se tenha construído um prédio urbano – então a aquisição desse direito real pelas forças da usucapião pode ser declarado em tribunal, ainda que o transcurso do prazo desta forma de aquisição apenas se concretize após o estabelecimento da RAEM. É o que se extrai do Ac. do TUI de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007.
Isto mesmo está dito, ainda que por outras palavras, no art. 9º, nº 4, da actual Lei de Terras (Lei nº 10/2013).
Ora, o que aqui está em causa não é a aquisição da propriedade, nem sequer do domínio útil, sobre o solo. O que se discute é se o prédio urbano, sobre o qual estão descritos actos de posse, pode ser apossado pelos AA.
A sentença afirmou que não, uma vez que “os justificantes não “possuem” nos termos de um qualquer direito previsto no ordenamento jurídico…” e porque “Os justificantes apenas beneficiam da tolerância da RAEM, essa sim verdadeira possuidora do terreno” e ainda em virtude de a situação apenas ser tida como de mera detenção, nos termos do art. 1177º, al. b), do Código Civil.
Ora, segundo o art. 1175º do CC, importa que o interessado demonstre os actos de posse (corpus) através de uma actuação correspondente ao exercício de um direito de propriedade ou de outro direito real (é a este segundo segmento que se designa animus, em especial quando o confrontamos com o disposto no art. 1177º, al. a) ).
Segundo alguns autores, o preceito traduz um postulado que está intimamente ligado, não à intenção com que se exerce a posse (o que está inerente à concepção subjectivista de Savigny), mas sim ao próprio poder que se exerce (concepção objectivista de Ihering), tal como nos dá conta, entre outros, A. Santo Justo (Direitos Reais, 2007, pág. 148-149).
E é aqui que reside o problema. É que a doutrina está dividida quanto a este aspecto, pois segundo uns autores, o Código Civil segue a corrente subjectivista, enquanto para outros o diploma professa a tese subjectivista (com muito interesse, e sobre esta dialéctica, ver com interesse, A. Santos Justo, ob. cit., pág. 150- 156).
Ora bem. Já Orlando de Carvalho sustentava que “o possuidor em nome próprio pode agir por força do direito real de que é titular, caso em que a sua posse é uma projecção ou expressão de um jus in re existente. Tal posse não é então uma posse autónoma, pois constitui uma faculdade jurídica secundária do direito subjectivo” Chama-se a essa posse posse causal, porque tem causa no direito” (Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, pág. 269).
Mas este autor estabeleceu uma outra via para a posse. E disse a propósito: “Mas o possuidor pode também agir sem direito real nenhum (ou porque nunca intentou adquiri-lo, ou o intentou adquirir por acto inválido ou inexistente), posto aja, mesmo assim, como se o tivesse. Tem então uma posse sem fundamento, sem causa, num direito dado, uma posse autónoma a que se chama posse formal. É esta posse formal ou autónoma que constitui um fenómeno jurídico sui generis, fonte de consequências de direito que não logram imputar-se senão a ela e só a ela (…) o titular de um jus in re pode igualmente invocar a sua posse causal como se fosse formal, abstraindo do direito com que se titula” (ob. cit., pág. 269).
No fundo, o que o autor quer significar com estas palavras di-lo também Carvalho Fernandes, seguidor da tese objectivista, quando observa que, e uma vez que a lei não faz referência ao animus, desde que haja corpus, em princípio haverá posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade que não se coaduna com uma actuação dotada de animus possidendi (Lições de Direitos Reais, 274).
Considerando também que o art. 1251º do CC Português (equivalente ao art. 1175º do CC de Macau) acolhe uma concepção objectivista, ver, por exemplo, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, 1979, pág. 397 e 401.
Ora bem. Independentemente desta sempre difícil “vexata questio” e da consequente opção do intérprete acerca da preponderância da qualquer das teses no texto da lei, uma coisa parece ser, pelo menos, consensual. É que o preceito não subjuga necessariamente a posse a actos correspondentes a uma intenção de apropriação. Quer dizer, não há posse apenas nas situações em que a propriedade está na mente do possuidor, podendo haver posse noutros casos de direitos reais, não faltando mesmo quem ache que a posse se pode dar mesmo em situações de direitos não reais.
Para uma tese, portanto, o que importa é um comportamento que na prática corresponda ao exercício de um direito, mesmo que não seja definida a intenção subjacente.
Mas ainda faz falta sublinhar mais uma vez a ideia que atrás se começou por invocar a respeito da natureza causal ou formal da posse. A posse causal é aquela em que existe uma coincidência entre os actos de exteriorização por parte do possuidor e a titularidade substantiva.
Mas, a posse será formal se o interessado não é titular do direito sobre a coisa, mas se comporta como se o fosse, exercendo sobre ela os poderes de conteúdo respectivo (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, pág. 859). Aqui o possuidor actua abstraindo do direito com que se titula.
Que posse é aquela que está aqui em jogo?
Com a devida vénia, socorramo-nos do que este TSI já afirmou há pouco tempo:
“Deixemos, por ora, este particular aspecto da base de incidência da pretensão relativa ao terreno "tout court".
Quanto ao registo da posse, o que se verifica é que não concretizam em comportamentos, nem fazem prova de qualquer posse causal. Na verdade, seguramente, de todo, não alegam nem fazem prova de qualquer direito real de que sejam titulares.
Resta-nos, então, uma posse formal, "pretensamente titulada" numa escritura de aquisição de posse. E se dizemos "pretensamente titulada" é porque nos deparamos apenas com uma escritura de transmissão/venda de posse que se afigura não ter a virtualidade de configurar uma posse titulada, pois que se arrogam tão somente os transmitentes a qualidade de possuidores. Desde logo, porque não se mostra apta a transmitir qualquer direito; tão somente a posse e, como vimos, a posse não é direito, pelo menos na acepção do que se dispõe no art. 1183°.
Mas mesmo que, por mero exercício de raciocínio, se entendesse que essa escritura, transmissiva da posse, transmitia também esse direito, qual posse, situarmo-nos- íamos apenas ao nível de um mero negócio obrigacional, ficando por preencher o conteúdo relativo aos actos materiais em que se deve traduzir a posse.
Dizer-se que se é possuidor é uma afirmação manifestamente conclusiva, que não pode deixar de ser concretizada em concretos actos materiais donde se infira um comportamento a que corresponda o exercício de um direito.
Ora, sobre essa realidade, nada se comprova. Aliás, em bom rigor, independentemente da prova, os factos alegados nem sequer consubstanciam verdadeiros actos de posse, bem se podendo compatibilizar com uma situação de mera detenção utilização com exclusividade; viver nas construções (que tipo de construções"); detenção das chaves; sem oposição de ninguém. Não é difícil imaginar que também um arrendatário ou comodatário bem podia praticar tais actos. Muito menos por o transmitente o afirmar no instrumento dito transmissivo da posse. (…)
Perante isto, pouco mais haverá que dizer, na certeza de que os AA. não lograram provar, desde logo, os requisitos da posse formal que lhes competia fazer, na certeza de que em nada podem ancorar qualquer posse causal.” (Ac. TSI, de 16/02/2017, Proc. nº 783/2016).
Concordamos inteiramente com o teor do trecho do aresto acabado de transcrever, até mesmo porque a situação que ali estava em discussão é precisamente igual àquela que ora nos preocupa.
Efectivamente, o autor da acção não pode dizer que a sua posse seja causal, uma vez que o contrato em apreço não foi celebrado para transmitir um direito real de propriedade, mas simplesmente para, alegada e expressamente, transmitir a posse.
Significa que apenas poderíamos estar perante uma posse formal e autónoma, o que implicaria a demonstração de o autor ter tido em relação à coisa uma actuação (art. 1175º, do CC) manifestada por actos materiais, que no caso não ficaram provados.
Tanto basta para se negar provimento ao recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 23 de Fevereiro de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
702/2016 1