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Proc.nº 861/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 09 de Março de 2017
Descritores:
-Ampliação do pedido
-Suspensão da instância
-Valor extraprocessual das provas
-Princípio de prova

SUMÁRIO:

I. Nos termos do art. 217º, nº2, do CPC, a alteração ou modificação pode ser permitida desde que o pedido de ampliação seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido inicial.

II. Se os pedidos de ampliação são baseados nos mesmos factos invocados pelos autores da acção, será possível a ampliação, ainda que o requerente lhes dê uma solução jurídica diferente, baseada numa diversa qualificação dos factos.

III. Mesmo quando se esteja em face de uma cumulação sucessiva de pedidos, a sua admissibilidade decorre do facto de a ela se aplicarem as regras da alteração e da ampliação da causa de pedir e do pedido.

IV. Para efeito de suspensão da instância por pendência de causa prejudicial, o que é necessário é que a causa prejudicial esteja proposta no momento em que a suspensão seja ordenada, sendo irrelevante que ainda não tivesse sido intentada na data em que a causa dependente foi instaurada.

V. O art. 446º, nº1, do CPC apresenta duas previsões:

Pela primeira, o depoimento prestado num anterior processo pode valer como meio de prova num segundo, desde que no primeiro tenha sido respeitado o princípio do contraditório.

Pela segunda, desde que o regime de prova do primeiro processo ofereça menores garantias do que as oferece o segundo, o depoimento testemunhal prestado naquele deixa de valer como meio de prova (desde que gravado ou reproduzido por escrito em audiência), para passar a valer simplesmente como princípio de prova.






Proc. nº 861/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, casado, de nacionalidade chinesa, residente em Hong Kong, …, portador do Bilhete de Identidade de Residente de Hong Kong n.º …, e ---
B, divorciada, de nacionalidade italiana, residente em Hong Kong, …, portadora do Bilhete de Identidade de Residente de Hong Kong n.º .., ----
Intentaram acção declarativa na forma ordinária contra:
1 - C, viúva, de nacionalidade portuguesa, portadora do Bilhete de Identidade de cidadã portuguesa n.º…, residente em Macau, …;
2 - D, casado, de nacionalidade britânica, residente em Hong Kong, na …, por si e na qualidade de procurador da primeira R.;
3 - E INC., sociedade anónima, com sede no Panamá, representada pelos seus directores, os 1ª e 2º R.R.,
4 - G INTERNATIONAL ENTERPRISES LIMITED, sociedade anónima, com sede em Hong Kong, …, representa pelos seus administradores, a 1ª e o 2º RR.
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Os autores pediram:
- A procedência da acção e a consequente declaração de nulidade, por simulação, do negócio entre a 1ª R. e a 3ª R. e, assim, impedidos estes ou o 2º R. de registarem as acções em causa a favor da E e bem assim de o 2º R. se abster de utilizar a procuração passada a seu favor.
- Que G, como titular das acções da E, seja obrigada a não onerar aquelas acções ou a delas dispôr.
- Que a decisão final seja comunicada à X a fim de esta não proceder ao registo em causa das acções da 1ª R.
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A fls. 565 a 2ª autora B apresentou um termo de desistência do pedido a fls. 565, que viria a ser homologada a fls. 662 dos autos.
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Foi requerida (fls. 720) e admitida (fls. 791) a intervenção principal espontânea de F, irmã dos A e filha da ré C, aliás, C.
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A interveniente no requerimento de fls. 729 formulou a ampliação do pedido para além dos já apresentados na petição inicial pelos primitivos autores, mas este pedido foi indeferido por despacho de fls. 796.
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Contra tal decisão foi apresentado recurso jurisdicional (fls. 809), em cujas alegações a recorrente F apresentou as seguintes conclusões:
«A. A ora Recorrente veio, no seu pedido de intervenção principal provocada, aderir à petição inicial apresentada pelo Autor e requerer a ampliação do pedido original formulado por aquele, requerendo, à cautela, no caso de ser dado como provada a data de 1983 como data da celebração do contrato, e subsidiariamente à matéria expendida pelo Autor na petição inicial - à qual a Interveniente aderiu -, a ampliação do pedido invocando outras soluções de direito que poderiam ser aplicadas à celebração do negócio em causa;
B. Assim, a Interveniente requereu, subsidiariamente, que fosse declarada a nulidade da compra e venda de 6251 acções da X celebrada entre a 1.ª Ré e a 3.ª Ré por ter sido celebrado em fraude à lei, visando circunvir o artigo 877.º do CC português, que se encontrava em vigor em 1983, e as normas relativas à legítima dos descendentes. E, subsidiariamente, fosse declarada anulada a compra e venda de 6251 acções da X em causa por aplicação da norma do artigo 877.º do CC. Português;
C. No caso concreto, a Interveniente limitou-se a ampliar o pedido, no sentido em que formulou pedidos subsidiários aos do Autor, ou melhor ainda, a Interveniente limitou-se a apresentar, subsidiariamente, outras plausíveis soluções de direito face aos factos constantes dos autos;
D. Terá entendido o Tribunal a quo que “o regime jurídico da nulidade é diferente da anulabilidade (artigo 279.º e 280.º do actual CC e artigos 286.º e 287.º do CC anteriormente em vigor), entendo que o requerimento da ampliação do pedido não se trata de desenvolvimento e consequência do pedido primitivo nos termos do n.º 2 do artigo 217.º do CPC.” - daqui tendo a Interveniente retirado que, no entendimento daquele Tribunal, não há desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo por não haver coincidência de regimes jurídicos nos pedidos formulados;
E. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Interveniente que o conceito de “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo” não se prende com a identidade dos regimes jurídicos subjacentes aos pedidos formulados, mas sim com pedidos que mantenham a identidade da causa de pedir e dos factos que lhe estão na base, que se encontrem abrangidos, de certo modo, pelo pedido original, sem que impliquem qualquer modificação da relação substancial em apreço, e sem que conduzam à necessidade de qualquer alteração ou aditamento, à base instrutória;
F. Ora, o requerimento de ampliação do pedido da Interveniente no sentido de, subsidiariamente, ser o negócio descrito nos autos subsumido ao instituto da fraude à lei ou, ainda, ao regime da anulabilidade, nos termos do artigo 887.º do anterior Código Civil, corresponde a um pedido subsidiário, baseado nos mesmos factos do pedido principal, e neste sentido, baseado na mesma causa de pedir. Tal pedido está virtualmente contido no pedido primário, na medida em que ali se impugna o mesmo negócio - o que se pretende com o pedido subsidiário;
G. Face ao exposto, entende a Interveniente que os pedidos subsidiários formulados, que, no fundo, mais não são que outras soluções plausíveis de direito a aplicar, são desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo e, como tal, deverão ser admitidos, nos termos da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 272.º do CPC;
H. Mais entende que a aplicação de tal artigo e a admissibilidade de ampliar o pedido não depende da igualdade de regime jurídico entre o pedido primitivo e o subsequente - tal leitura, defendida pelo Tribunal a quo, parece circunscrever de forma injustificada a amplitude que o legislador terá pretendido dar ao artigo 273.º do CPC e, ao fazê-lo, está necessariamente a violá-lo.
I. Acresce que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - vide artigo 567.º do CPC, ou seja, o juiz é livre na escolha do direito que considera aplicável, sem estar limitado ao que foi invocado pelas partes, tendo no entanto, as limitações resultantes da segunda parte do artigo 567.º do CPC, bem como as limitações advindas de factos ou efeitos jurídicos que não são de conhecimento oficioso (iura novit cura);
J. Ora, foram exactamente questões de conhecimento oficioso, ou seja, abuso de direito, na vertente da fraude à lei, e questões de vício formal do negócio, que a Interveniente trouxe aos autos em sede de ampliação de pedido;
K. Logo, para além de ser a ampliação do pedido válida nos termos do artigo 273.º do CPC, por maioria de razão, também teria que ser admitida, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso que até poderia ser trazida aos autos mais tarde pelo próprio Tribunal - ao não fazê-lo, viola o artigo 273.º, bem como, nos termos expostos, o artigo 567.º ambos do CPC;
L. Por último, entende ainda a Recorrente que o despacho recorrido padece de insanável oposição entre a fundamentação e a decisão tomada, pois que se a fundamentação do despacho vai no sentido de que apenas pedidos com regime jurídico idêntico podem ser desenvolvimento e consequência do pedido nos termos do n.º 2 do artigo 217.º do CPC, então, por maioria de razão esse despacho teria que admitir o pedido subsidiário da Interveniente de declaração de nulidade do negócio, pois que esse pedido segue o regime jurídico do pedido primitivo - a nulidade do negócio, nos termos do artigo 279.º do actual CC, com redacção exactamente igual ao artigo 286.º do anterior CC;
M. A decisão de não admissão da ampliação do pedido de nulidade, que partilha de idêntico regime jurídico do pedido primitivo - nulidade - está assim em clara contradição com a fundamentação apresentada, sendo tal despacho nulo nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 517.º, aplicável ex vi do n.º 3 do artigo 569.º, ambos do CPC, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o despacho recorrido e admitida a ampliação do pedido nos termos formulados pela Interveniente, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.».
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Não houve contra-alegações.
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A mesma F, interveniente, pediu a suspensão dos autos com fundamento na existência dos autos nº CV3-12-0151-CPE, que tem por objecto o requerimento de interdição de C (fls. 851-853).
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Tal requerimento foi, porém, indeferido pelo despacho de fls. 884.
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Contra este despacho foi então interposto recurso jurisdicional pela interveniente F, cujas alegações concluiu da seguinte maneira:
«A. Em 24 de Julho de 2012, a Interveniente intentou acção de interdição contra a 1.ª Ré C nos termos e para os efeitos dos artigos 122.º e seguintes do Código Civil e 846.º e seguintes do CPC, a qual corre termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau, como Processo n.º CV3-12-0151-CPE, invocando que a ali requerida, por motivo de anomalia psíquica, se encontra incapacitada de entender e querer e de governar a sua pessoa e bens e, em 15 de Abril de 2013, requereu a suspensão dos presentes autos alegando que a acção de interdição é causa prejudicial face aos presentes autos, para os efeitos da primeira parte do número 1 do artigo 223.º do CPC (cfr. requerimento de fls. 851);
B. O Tribunal a quo proferiu douto despacho de indeferimento da suspensão requerida, do qual ora se recorre, invocando, em síntese, que i) ainda não foi decretada a interdição da 1.ª Ré, ii) esta encontra-se representada por mandatário nos presentes autos e opõe-se à suspensão, iii) os presentes autos foram instaurados antes da entrada do requerimento inicial do Processo n.º CV3-12-0151-CPE, e iv) não existe causa prejudicial entre os presente autos e a acção de interdição (cfr. douto despacho de fls. 884);
C. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Interveniente que nenhum dos aludidos fundamentos invocados é procedente e que se verifica a relação de dependência ou prejudicialidade entre causas de que depende a suspensão da instância nos termos da primeira parte do número 1 do artigo 223.º do CPC;
D. Quanto ao primeiro fundamento apontado no douto despacho recorrido, dir-se-á que não deve exigir-se, como pressuposto da suspensão dos autos nos termos requeridos, que já exista decisão final da causa prejudicial, porque a lei não o exige e não se antevê, nem o Tribunal a quo refere, qualquer motivo que o justifique;
E. Quanto à circunstância de a 1.ª Ré se ter oposto à suspensão requerida pela Interveniente, não se antevê qualquer argumento válido para que se atribua a tal facto uma relevância decisiva, como, aparentemente, se faz no douto despacho recorrido;
F. O douto Tribunal a quo invoca, para indeferir o requerimento da Interveniente, que os presentes autos foram instaurados antes da entrada do requerimento inicial do Processo n.º CV3-12-0151-CPE, no entanto, acompanhando a Doutrina (designadamente, Professor José Alberto dos Reis, Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima e José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, ob. cit., loc. cit.) e a Jurisprudência dominantes, a Interveniente entende que é irrelevante que a causa prejudicial já pendesse à data da propositura da acção em que se formula o pedido dela dependente;
G. Deve considerar-se que a expressão “já proposta”, constante do número 1 do artigo 223.º do CPC, se reporta ao momento em que “o Tribunal pode ordenar a suspensão”, referido no mesmo preceito. Consequentemente, o facto de os presentes autos terem sido instaurados antes da entrada do requerimento inicial do Processo n.º CV3-12-0151-CPE não impede, ao contrário do que se indicia no douto despacho recorrido, o deferimento da suspensão da presente instância nos termos do número 1 do artigo 223.º do CPC;
H. Na acção de interdição discute-se a capacidade da 1.ª Ré, ou seja, um pressuposto processual dos presentes autos, cuja falta, a confirmar-se, carece de ser suprida, devendo considerar-se que, salvo o devido respeito por opinião diversa, estão reunidos os requisitos que a Jurisprudência e a Doutrina apontam para a aplicação da primeira parte do número 1 do artigo 223.º do CPC, designadamente, na acção (prejudicial) de interdição ataca-se a capacidade judiciária da 1.ª Ré (facto jurídico) que é pressuposto processual necessário da presente acção, sendo esta, portanto, dependente daquela (cfr., por todos, Professor José Alberto dos Reis, ob. cit., loc. cit. e Acórdão de 12 de Julho de 2012 deste Tribunal de Segunda Instância);
I. Acresce que, o início da incapacidade da 1.ª Ré pode ser fixado em data anterior à prática dos actos impugnados nos presentes autos, caso em que, a decisão da causa prejudicial terá acrescidos efeitos sobre a situação jurídica dos presentes autos, modificando a relação material controvertida, podendo mesmo fazer surgir no ordenamento jurídico uma causa autónoma de invalidade dos negócios impugnados nestes autos, nos termos dos artigos 133.º, 250.º e 280.º, todos do Código Civil, verificando-se também nessa situação a relação de dependência a que se refere o citado Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25 de Julho de 2012: “ [...] quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.”;
J. Estão preenchidos todos os pressupostos de que depende a suspensão dos autos nos termos requeridos, por existir uma relação de dependência ou prejudicialidade entre a acção de interdição da 1.ª Ré e os presente autos, pelo que o douto despacho recorrido, ao indeferir essa suspensão, violou, salvo o devido respeito por melhor opinião, o número 1 do artigo 223.º do CPC e os princípios da economia e celeridade processuais, devendo ser revogado;
K. Por último, entende ainda a Recorrente que o douto despacho recorrido padece do vício de pronúncia indevida, na medida em que um dos fundamentos invocados no mesmo é o facto de que “ainda não foi decretada a interdição da 1.ª Ré C”. Tal facto não foi alegado pelas partes, é referente a um outro processo judicial e não se afigura relevante para a decisão sobre a aplicação do número 1 do artigo 223.º do CPC;
L. Consequentemente, o douto despacho recorrido é, salvo o devido respeito por opinião contrária, nulo nos termos da segunda parte da alínea d) do número 1 do artigo 571.º do CPC, aplicável ex vi do número 3 do artigo 569.º, ambos do CPC, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o douto despacho de fls. 884 ora recorrido e admitida a suspensão requerida pela Interveniente a fls. 851, nos termos da primeira parte do número 1 do artigo 223.º do CPC, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.».
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Não houve resposta a este recurso.
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O autor A, em plena audiência de discussão e julgamento datada de 28/05/2015, a fls. 1201-1203, prescindiu da sua testemunha faltosa, H, mas requereu que o seu depoimento gravado em 1/02/2002 nos autos de procedimento cautelar apenso aos autos fosse atendido como princípio de prova nos termos e para os efeitos do art. 446º, nº2, do CPC, mas este pedido foi indeferido no acórdão de 17/07/2015, no qual procedeu ao julgamento da matéria de facto (fls. 1252-1255).
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Face a tal decisão, o autor apresentou recurso jurisdicional (fls. 1259), cujas alegações sintetizou assim (fls. 1316-1323):
«A. A audiência contraditória da parte é requisito para que um depoimento possa ter valor probatório extra processual, podendo assim ser invocado como prova noutro processo contra a mesma parte, nos termos da 1.a parta do n.º 1 do artigo 446.º do CPC.
B. No entanto, salvo o respeito devido, o Recorrente entende que a audiência contraditória não é requisito autónomo para que um depoimento possa ser invocado noutro processo como mero princípio de prova, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 446.º do CPC.
C. De facto, a falta de audiência contraditória leva a que se deva considerar que a prova testemunhal foi produzida com garantias inferiores para as partes, que é precisamente a circunstância que, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 446.º do CPC, limita o respectivo valor extra processual a mero princípio de prova.
D. Como defende o Senhor Professor João de Castro Mendes, citado neste articulado, a prova produzida num processo mantém o seu valor no outro se cumulativamente se verificarem os seguintes resultados:
A) Ser a prova testemunhal.
B) Correr o processo entre as mesmas partes (sendo indiferente o pedido ou a causa de pedir).
C) Não oferecer o regime de produção de prova do primeiro processo garantias inferiores às do segundo - senão os depoimentos produzidos no primeiro só valem como princípio de prova,
devendo o caso dos autos subsumir-se à situação referida em C).
E. Pelo exposto supra, o douto despacho recorrido viola, salvo o respeito devido, a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 446.º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que V. Exas. mui douta e certamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência:
a) revogado o douto despacho de fls. 1253 ora recorrido, por violação da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 446.º do CPC, e substituído por outro que ordene seja valorado como princípio de prova o depoimento gravado prestado pela testemunha H na audiência de 1 de Fevereiro de 2002, realizada no âmbito do procedimento cautelar preliminar e apenso aos presentes autos (Proc. n.º CV3-02-0015-CAO-A); e
b) revogado o douto Acórdão de fls. 1252 e seguintes e, consequentemente, ordenada a repetição do julgamento da matéria de facto, valorando como princípio de prova o depoimento melhor identificado na alínea a) que antecede, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
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Os réus primitivos contra-alegaram (sem concluírem), manifestando-se contra o provimento do recurso em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Na oportunidade foi proferida sentença, onde foi julgada improcedência a acção e indeferido o pedido de condenação dos RR como litigantes de má fé.
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O autor A apresentou recurso jurisdicional contra tal sentença, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. O douto Tribunal a quo julgou não provado que A Recorrida C Mdm. C tem dívidas para com a X, que ascendem, nesta data, a mais de HK$82.000.000,00 (oitenta e dois milhões de dólares de Hong Kong) (artigo 1.º da base instrutória).
B. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
C. Considerando o depoimento das testemunhas I e J, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. 1 a 7 juntos aos autos pelos Recorridos em 20 de Maio de 2015, ficou demonstrada a existência de dívidas da Recorrida C à X. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado o artigo 1.º da base instrutória.
D. O douto Tribunal a quo julgou não provado que A Recorrida C não tem nenhum outro bem no seu património de valor idêntico ou aproximado ao que possuem as acções de que é titular na X (artigo 2.º da base instrutória).
E. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
F. Considerando o depoimento das testemunhas I, J e B, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. juntos aos autos pelo Recorrente em 21 de Maio de 2015, ficou demonstrado que, face ao muito elevado valor das acções da X e ao desconhecimento de bens, designadamente imóveis, no património da Recorrida C, aquelas constituem o bem mais valioso no seu património. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado o artigo 2.º da base instrutória.
G. O douto Tribunal a quo julgou não provado que A quase totalidade do seu [da Recorrida C, C] património está onerada (artigo 3.º da base instrutória).
H. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
I. Considerando o depoimento das testemunhas J e B, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, ficou demonstrado que a Recorrida C chegou a empenhar bens para garantir o pagamento das suas dívidas. Reconhece-se que a prova produzida não é suficiente para determinar que a quase totalidade do património da mesma está onerada. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado, em resposta ao artigo 3.º da base instrutória, que “diversos bens do património da Recorrida C estão onerados”.
J. O douto Tribunal a quo julgou não provado que A Recorrida fez tudo para beneficiar o 2.º R. em detrimento dos demais descendentes (artigo 4.º da base instrutória).
K. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
L. Considerando o depoimento das testemunhas I, J, B e K - bem como o de H, irmã mais velha da Recorrida C, em sede de procedimento cautelar apenso aos presentes autos, cuja apreciação é objecto de recurso independente do presente -, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, ficou demonstrado o afastamento da Recorrida C face à família e aos filhos, a aproximação ao filho L, ora Recorrido, bem como a sua preferência por este filho. Mais ficou demonstrado que, desde a década de 90, a Recorrida C sempre tratou preferencialmente, pelo menos em termos financeiros, o filho L, em detrimento de todos os outros, situação que se agravou no início da década de 2000, sendo evidência desse tratamento preferencial a procuração referida no facto assente E). Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado o artigo 4.º da base instrutória.
M. O douto Tribunal a quo julgou provado que A procuração referida em E) dos Factos Assentes surgiu na sequência do impasse das diligências junto da X com vista à confirmação do averbamento, em nome da terceira Recorrida, da transferência das acções no livro competente, e à consulta dos demais livros e contas da empresa (artigo 4.1. da base instrutória) e que As cedências das acções referidas em G) visavam obter a autorização do Governo da Região Administrativa Especial de Macau para que a transmissão das acções da 1ª Recorrida para a 3ª Recorrida pudesse, de novo, ser objecto de averbamento no livro de registo de acções da X (artigo 4.3. da base instrutória).
N. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
O. Quanto ao facto vertido no artigo 4.1. da base instrutória, nenhuma das testemunhas referiu que a intenção da Recorrida C, quando outorgou a procuração ali em causa, tenha sido ultrapassar um impasse referente ao averbamento de acções em nome da E e, face à relação conflituosa entre L e, em especial, o Dr. M, não é sequer lógico que tenham sido delegados em L poderes para ultrapassar diferendos com a X.
P. Quanto ao artigo 4.3. da base instrutória, para além de não ter sido produzida qualquer prova em sede de audiência de discussão e julgamento, não pode deixar de se assinalar que o douto Tribunal a quo não poderia ter julgado aquele facto provado com a sua redacção actual, pois a expressão “de novo” indica que a transmissão em causa já havia sido averbada no livro de registo de acções da X, não havendo qualquer prova nestes autos de que a transmissão das 6.251 acções da Recorrida C para a Recorrida E alguma vez tenha sido averbada nesse livro (do depoimento da testemunha do Recorrente I resulta, precisamente, o contrário).
Q. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgados não provados os artigos 4.1. e 4.3. da base instrutória.
R. O douto Tribunal a quo julgou não provado que Da transmissão referida na alínea M) dos Factos Assentes, nunca entrou no património da 1ª R. qualquer valor correspondente ao real valor das acções de que é titular (artigo 5.º da base instrutória).
S. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
T. Considerando o depoimento das testemunhas I e B, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, e apesar de se tratar de facto negativo de prova excepcionalmente difícil, ficou demonstrado que no âmbito da projectada transmissão de acções da Recorrida C para a Recorrida E nunca foi pago qualquer preço, tal como nenhum grande accionista da X recebeu quaisquer quantias quando transmitiu as suas acções para as suas sociedades offshore. Aliás, o facto (julgado provado a coberto do artigo 3.5. da base instrutória) de não ser conhecida qualquer actividade à Recorrida E aponta no sentido de que esta não teria meios de pagar à Recorrida C qualquer quantia. Acresce que, como é normal e natural, quando um indivíduo transmite bens para uma sua sociedade offshore acabada de constituir, é previsível que o faça sem pagamento real de qualquer preço. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado o artigo 5.º da base instrutória.
U. O douto Tribunal a quo julgou provado que Em 1983 a 1ª Recorrida transferiu através do endosso de todas as acções de que ela era titular na S. T.D.M. a favor da E Inc. (artigo 6.º da base instrutória).
V. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer.
W. Por um lado, Ainda que fosse verdade que em 1983 a Recorrida C endossou as acções de que era titular na X, a favor da E Inc., saber se houve ou não uma transmissão das mesmas é, desde logo, uma das questões de direito em causa nos autos, não devendo, salvo o respeito devido por opinião diversa, ser alvo de resposta em sede de Acórdão sobre a matéria de facto. O único facto provado, é que “em 1983 a 1ª Recorrida endossou todas as acções de que ela era titular na X, a favor da E Inc.”, entendendo o era Recorrente que o julgamento da matéria de facto deveria ter-se ficado pela confirmação desse facto sem se debruçar sobre os seus efeitos jurídicos.
X. Por outro lado, considerando o depoimento das testemunhas I, B, R e S, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, ficou demonstrado que a projectada transmissão de acções da Recorrida C para a Recorrido E nunca se completou. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado não provado o artigo 6.º da base instrutória.
Y. Tal como pode ler-se na douta fundamentação do Acórdão sobre a matéria de facto de 17 de Julho de 2015, “a 1ª Recorrida é uma boa mãe e tratava bem a todos os filhos”. No entanto, como ficou provado, ao longo dos tempos a Recorrida C afastou-se dos filhos e familiares próximos, deixando de conviver com eles, passando a estar unicamente com L - cfr. alínea K) dos factos assentes.
Z. Essa aproximação exclusiva a L vem explicada pelas testemunhas indicadas pelo Recorrente. A personalidade de L levou a que este passasse a utilizar a posição da Recorrida C em proveito próprio, ao contrário dos irmãos. É nesse sentido que, em 2002, quando foram anunciados os concursos para atribuição de novas concessões de exploração de jogo em Macau, L rapidamente fez com que se tornasse público que ia concorrer com a X, através da Recorrida E Inc. (cfr. Doc. n.º 8 junto com o requerimento inicial da providência cautelar).
AA. Para tomar essa atitude, L, a quem não era, como não é, reconhecida qualquer experiência pessoal, profissional ou social minimamente relevante em Macau, teve que se estribar na pessoa e no património da Recorrida C, até como forma de financiamento da sua campanha. A Recorrida C voltou a demonstrar ser uma Mãe generosa e que não sabia negar a vontade dos filhos (o que todos eles sabiam, mas só aproveita a L). E assim L como que tornou a sua Mãe refém involuntária numa campanha contra a X.
BB. Apesar de a Recorrida E ter sido constituída tendo como sócios o ora Recorrente e a sua Mãe, a Recorrida C (cfr. fls. 185 e 186), a verdade é que em 2001 a posição do ora Recorrente já pertencia ao Recorrido L (cfr. acta da reunião da Assembleia Geral dos respectivos accionistas, a fls. 203). Tendo conhecimento de que existia um endosso das acções da X da sua Mãe, L garantiu o controlo da Recorrida E e, depois, tentou tomar para essa sociedade aquelas acções da X.
CC. Retomando um processo de transmissão de acções da X iniciado em 1983 mas depois esquecido, requereu-se em 2001 o registo de tal alegada transmissão no livro de registo de acções da X.
DD. Trata-se, claramente, de um processo de transmissão de acções que a Recorrida C nunca quis.
EE. Nos termos do artigo 240.º do Código Civil de 1996 (equivalente ao artigo 232.º do Código Civil de Macau):
“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo.”.
FF. E, nos termos do n.º 2 do artigo 242.º do Código Civil de 1996 (equivalente ao n.º 2 do artigo 234.º do Código Civil de Macau), o Recorrente tem legitimidade para invocar a nulidade do negócio, por simulação.
GG. Encontrando-se preenchidos, in casu, todos os requisitos da simulação absoluta: (i) acordo entre declarante e declaratário, (ii) o intuito de enganar terceiros, e (iii) a divergência entre a declaração negocial e a vontade real.
HH. Quanto ao primeiro requisito, verifica-se a existência de um pretenso negócio entre as Recorridas C e E: o alegado endosso de 1983.
II. O segundo requisito surge como o elemento volitivo do instituto da simulação. Os intervenientes tiveram a intenção de enganar terceiros. Quanto a este aspecto, não pode deixar de se atribuir devida relevância ao facto de que as Recorridas C e E nunca agiram como se tivesse existido um negócio entre elas em 1983, apenas o invocando em 2001, quando esse negócio se mostrou útil à candidatura da E Inc., alimentada pelo Recorrido L a uma concessão de jogo em Macau, contra a própria X.
JJ. Depois de quase 20 anos de silêncio e inércia, repentinamente houve interesse em ressuscitar um negócio esquecido para levar a X a registar as acções em nome da Recorrida E. E tal pedido só surge quando a Recorrida E já não é dominada pelo Recorrente, mas sim pelo Recorrido L, o que confirma o claro intuito de enganar e prejudicar o Recorrente e as suas irmãs B e F. Tal transmissão tem o intuito de prejudicar, e efectivamente prejudica, o Recorrente e aquelas suas irmãs. Se as acções da Recorrida C na X passarem para a Recorrida E, a sua transmissão passa a reger-se pelas leis do Panamá (caso o Recorrido L queira vender as acções da E) ou de Hong Kong (caso o Recorrido L queira alienar as acções da 4.ª R.).
KK. O Recorrente e as suas irmãs perderão a protecção da lei de Macau - que estabelece requisitos para a transmissão de acções -, as acções da 3.ª e/ou da 4.ª Recorridas passam a poder ser transmitidas de forma oculta, ficando totalmente despido de conteúdo o direito daqueles à herança, já que não é conhecido nenhum património à Recorrida C para além das acções da X. Ao passo que o Recorrido L ficará inversamente beneficiado com esse valiosíssimo bem, de que passa a poder dispor livremente. Assim se demonstrando o intuito de enganar terceiros, manifestado em 2001, com o aproveitamento de um acto de 1983 a que nunca nenhuma das partes reconheceu quaisquer efeitos.
LL. Por fim, o último requisito do instituto da simulação também está preenchido no caso dos autos: a divergência entre a declaração negocial e a vontade real.
MM. Alega-se que a Recorrida E comprou as acções da Recorrida C em 1983, mas esse pretenso negócio não tem qualquer manifestação ao longo dos tempos.
NN. A Recorrida C continuou a constar nos livros da X como accionista, continuou a exercer cargos sociais a título pessoal e continuou a estar presente por si nas Assembleias Gerais, a exercer o seu próprio direito de voto e a e demais direitos sociais.
OO. A Recorrida C manteve também a posse das acções em causa – ainda que tenha referido à testemunha I que os títulos estivessem na posse de L -, nunca se tendo operado a traditio típica das aquisições derivadas, nem se alterando ao longo dos anos o animus dessa posse.
PP. Sobretudo, a Recorrida C continuou a receber dividendos das suas acções (e a levantar dinheiro por conta deles).
QQ. E a Recorrida C sempre quis ser accionista da X, sempre pediu adiantamentos por conta de dividendos e salários, sempre participou e votou nas Assembleias Gerais em nome próprio, sempre recebeu dividendos em nome próprio, sempre foi administradora da X em nome próprio.
RR. Para além do facto de não ter sido pago qualquer preço pela alegada transmissão de acções. Nunca a Recorrida E sequer alegou nestes autos ter pago qualquer quantia pela pretensa compra das acções da X que pertencem à Recorrida C.
SS. Após 1983, a Recorrida C não praticou qualquer acto que reflectisse que já não se considerava uma accionista da X, ou que considerava que a E o era.
TT. Após 1983, a Recorrida E não praticou qualquer acto que reflectisse que se considerava uma accionista da X. Até 2001, o ora Recorrente, accionista e administrador inicial da Recorrida E (cfr. Doc. n.º 58 da contestação), não tomou conhecimento qualquer transmissão de acções da X a favor da mesma.
UU. E a X nunca reconheceu que a Recorrida E fosse sua accionista, qualidade que sempre reconheceu exclusivamente à Recorrida C, a título pessoal.
VV. Assim, não é apenas a falta de pedido de averbamento da transmissão em jogo no livro de registo de acções da X que demonstra a falta de vontade real de proceder a essa transmissão. É todo o comportamento do transmitente e do transmissário ao longo de mais de 20 anos, que nunca se comportaram como quem vende nem como quem compra acções. Esse comportamento, ao longo de tão longo período de tempo, é revelador.
WW. Veja-se, por comparação, o comportamento dos outros grandes accionistas (que vem demonstrado nos autos). O Dr. M, N e O requereram imediatamente que a Lanceford, a Littleton e a Many Town, respectivamente, passassem a constar como accionistas da X e a exercer todos os seus direitos sociais.
XX. A Recorrida C constituiu uma sociedade offshore tal como os restantes accionistas da X (e resulta claro dos Does. n.os 62 a 64 da contestação que não o fez sozinha mas sim com a ajuda de um alto cargo da X, P, tendo ainda sido nomeado um outro alto cargo da X, Q, como administrado inicial da E, cfr. Doc. n.º 58 da contestação), para poder transmitir as suas acções para tal sociedade, como todos os outros grandes accionistas. Mas ao passo que todos os outros grandes accionistas passaram a conformar a sua actuação posterior com essa transmissão, a Recorrida C, como se expôs supra, nunca o fez.
YY. Perante esta actuação das Recorridas E e C, é evidente que nunca entre elas houve a intenção de transmitir acções, seja a que título for. Mesmo que tenha sido assinado um endosso das acções da Recorrida C em 1983, essa assinatura nunca correspondeu a uma vontade real de venda das acções. A Recorrida C sempre se considerou e foi considerou e foi considerada com accionista da X.
ZZ. Devendo, assim ser decretada a nulidade do negócio alegadamente realizado entre as Recorridas C e E, mantendo-se as acções em nome e na propriedade da Recorrida C, a fim de precaver os direitos dos restantes herdeiros legitimários, com as consequências daí decorrentes e os efeitos legalmente previstos nos artigos 285.º a 290.º do Código Civil de 1966 (artigos 278.º a 283.º do Código Civil de Macau) para a nulidade.
AAA. Ao decidir que a transmissão das acções da Recorrida C para a Recorrida E não é nula, por simulação, a douta sentença do Tribunal a quo viola o artigo 240.º e o n.º 2 do artigo 242.º, ambos do Código Civil de 1996 (equivalentes ao artigo 232.º e ao n.º 2 do artigo 234.º, ambos do Código Civil de Macau), devendo, salvo o respeito devido, ser revogada.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a douta decisão de fls. 1333 a 1344, ora recorrida, por ser violar o artigo 240.º e o n.º 2 do artigo 242.º, ambos do Código Civil de 1996 (equivalentes ao artigo 232.º e ao n.º 2 do artigo 234.º, ambos do Código Civil de Macau), e substituída por outra que julgue procedente, por provada, a presente acção, assim de fazendo a costumada JUSTIÇA!».
*
Sem concluírem, os RR responderam ao recurso, pugnando pelo improvimento do recurso em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- Os AA. são filhos da R. C. (alínea A) dos factos assentes)
- A 1ª R. possui 6.251 (seis mil, duzentas e cinquenta e uma) acções de um total de 85.250 (oitenta e cinco mil, duzentas e cinquenta) acções representativas do capital social da X, S.A.R.L. (adiante simplesmente designada por X), que ascende a MOP85.250.000,00 (oitenta e cinco milhões, duzentas e cinquenta mil patacas). (alínea B) dos factos assentes)
- Não obstante ser de oitenta e cinco milhões, duzentas e cinquenta mil patacas o capital social registado daquela sociedade, a X possui activos no montante de MOP33.759.000.000,00 (trinta e três mil setecentos e cinquenta e nove milhões de patacas) e uma situação líquida de MOP23.397.000.000,00 (vinte e três mil, trezentos e noventa e sete milhões de patacas) - conforme balanço publicado no Boletim Oficial, II série, nº 25, de 20/06/2001. (alínea C) dos factos assentes)
- De acordo com o balanço referido em C) dos Factos Assentes só no ano transacto e relativamente aos lucros apurados em 2000 perfizeram um total de MOP1.436.000.000,00 (mil quatrocentos e trinta e seis milhões de patacas). (alínea D) dos factos assentes)
- A 1ª R outorgara, em 3 de Janeiro de 2002, uma procuração irrevogável a favor de seu filho D, ora 2º R, para a representar, por tempo indeterminado, no exercício dos direitos sociais que lhe assistem na qualidade de accionista da referida X (alínea E) dos factos assentes)
- A E Inc. é uma sociedade com sede no Panamá, de que são Directores a 1ª e o 2º RR., com um endereço em Hong Kong … - que é também a morada do 2º R. (alínea F) dos factos assentes)
- A totalidade das acções de E Inc. foi cedida a favor de D - ora 2º R - em 31 de Julho de 2001 e, na mesma data, transferida para a sociedade G International Enterprise Limited, constituída e sediada em Hong Kong, na morada do 2º R (…). (alínea G) dos factos assentes)
- A sociedade G International Enterprise Limited possui um capital social de HK$10.000,00 (dez mil dólares de Hong Kong), dividido em 10.000 (dez mil) acções ao portador de HK$1,00 (um dólar de Hong Kong), estando duas já pagas e emitidas, uma a favor do R. D e outra em nome da R. C. (alínea H) dos factos assentes)
- A R. completará em 2002 oitenta anos. (alinea J) dos factos assentes)
- Ao longo dos últimos tempos, tem-se verificado um afastamento entre a progenitora dos AA. e os seus familiares mais próximos, designadamente os outros filhos, deixando de se conviverem juntos, e passando a Ré de estar unicamente com o R. D. (alínea K) dos factos assentes)
- A Ré deixou de comparecer às reuniões de família, nomeadamente por ocasião de festas de aniversário e de homenagem aos antepassados, e deixou de conviver assiduamente com os irmãos e com os próprios filhos ora AA., faltando a reuniões sociais onde compareçam aqueles familiares mais próximos. (alínea L) dos factos assentes)
- A 1ª R. transmitiu a totalidade das suas acções que detém na X à 3ª Ré E Inc. (alínea M) dos factos assentes)
- Resulta da Acta do Conselho de Administração da X que a «Srª C, pretende que as suas acções sejam registadas em nome da Sociedade E Inc., uma sociedade constituída no Panamá, com acções ao Portador e da qual são accionistas conhecidos a mesma Srª Administradora e um dos seus filhos, D, em virtude da transmissão ter sido efectuada em 1983 e nunca registada na Sociedade». (alínea N) dos factos assentes)
- A 4ª R. detém a totalidade das acções da 3ª R. (alínea O) dos factos assentes)
- Em 1983, eram sócios da E Inc. a ora primeira Ré e o Autor A. (alínea P) dos factos assentes)
- A Ré C perdeu a nacionalidade portuguesa conforme registo lavrado em 08 de Abril de 2005 na Conservatória dos Registos Centrais, em Portugal e averbado no seu assento de nascimento no dia 15 de Abril de 2005. (alínea Q) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- A 4ª Ré tem dois sócios, sendo a 1ª Ré titular de 9.000 acções e o 2º Réu as restantes 1.000 acções. (resposta ao quesito 3.4º da base instrutória)
- Quer a E Inc. quer a G International Enterprises Ltd. não têm e nem tiveram qualquer outra actividade pública conhecida. (resposta ao quesito 3.5º da base instrutória)
- A procuração referida em E) dos Factos Assentes surgiu na sequência do impasse das diligências junto da X com vista à confirmação do averbamento, em nome da terceira Ré, da transferência das acções no livro competente, e à consulta dos demais livros e contas da empresa. (resposta ao quesito 4.1º da base instrutória)
- As cedências das acções referidas em G) visavam obter a autorização do Governo da Região Administrativa Especial de Macau para que a transmissão das acções da 1ª Ré para a 3ª Ré pudesse/ de novo/ ser objecto de averbamento no livro de registo de acções da X (resposta ao quesito 4.3º da base instrutória)
- Em 1983 a 1ª Ré transferiu através do endosso de todas as acções de que ela era titular na X, a favor da E Inc. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)».
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III – O Direito
1 - Introdução
Pela ordem que a seguir se enuncia, foram quatro os recursos interpostos, dois apresentados pela interveniente/autora F e os restantes dois pelo primitivo autor A.
A interveniente/autora recorreu:
- Primeiro: do despacho de indeferimento de ampliação do pedido que formulou no requerimento em que pediu a sua intervenção principal espontânea (recurso interlocutório);
- Segundo: do indeferimento do pedido de suspensão dos autos até à decisão de interdição da 1ª ré, C (recurso interlocutório).
O autor da acção A recorreu:
- Primeiro: da decisão do colectivo na parte em que não teve em conta o depoimento gravado pela testemunha H no âmbito da providência cautelar CPV-001-02-3 apensada aos presentes autos (recurso interlocutório);
- Segundo: da sentença proferida nos autos na 1ª instância, que julgou totalmente improcedente a acção (recurso sobre o mérito).
Ora, em nossa opinião, a situação descrita rigorosamente escapa à previsão estrita do nº2, do art. 628º do CPC, uma vez que se não pode dizer que o autor A é recorrido relativamente ao recurso sobre o mérito, pois que o recurso da sentença foi por ele mesmo interposto.
Daí que, haveria quanto a ele que começar pela análise do recurso interlocutório.
Acontece que há mais dois recursos interlocutórios apresentados pela interveniente/autora. E quanto a estes, o recurso interposto pelo autor Ka não a torna recorrida, dada a sua posição jurídico-processual e o efeito pretendido nos referidos recursos.
Assim, somos a pensar que haverá que conhecer de todos os recursos e respeitar a ordem de entrada de cada um deles.
Começaremos, pois, pelos recursos interpostos pela interveniente/autora.
*
2 - 1º Recurso interlocutório da interveniente F
É objecto de impugnação o despacho de indeferimento de ampliação do pedido que formulou no requerimento em que pediu a sua intervenção principal espontânea.
A interveniente pediu ali o seguinte, para além dos pedidos já formulados na petição inicial apresentada pelos autores A e B, seus irmãos:
a) Que fosse declarada a nulidade da compra e venda de 6251 acções da X celebrada entre a 1ª ré e a 3ª ré por ter sido celebrado em fraude à lei, visando circunvir a norma do art. 877º do Código Civil e a norma relativa à legítima dos descendentes; ou, subsidiariamente, caso assim não fosse entendido
b) Que fosse anulada a compra e venda de 6251 acções da X celebrada entre a 1ª e 3ª rés por aplicação da norma do art. 877º do CC.
O despacho em crise, na parte que aqui interessa, asseverou:
«Compulsados os elementos dos autos, o regime jurídico da nulidade é diferente da anulabilidade (artigos 279º e 280º do CC actual e artigos 286º e 287º do CC anteriormente em vigor), entendo que o requerimento da ampliação do pedido não se trata do desenvolvimento e consequência do pedido primitivo nos termos do nº2, do art. 217º do CPC. Pelo exposto, indefiro o requerimento da ampliação do pedido formulado» (fls. 796 e vº).
Ou seja, segundo o que dele decorre, o despacho em apreço considerou que a situação da ampliação peticionada não significava o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, na medida em que o regime da nulidade é diferente do da anulabilidade.
Só que com tal fundamentação, o despacho carece de razão.
Antes de mais nada, se os autores primitivos peticionaram a nulidade do negócio, o mesmo o fez a interveniente. Portanto, o argumento do despacho, quanto a este aspecto específico, tem que claudicar.
-
Em segundo lugar, e atendendo ao disposto no art. 217º, nº2, do CPC, a alteração ou modificação pode ser permitida desde que o pedido de ampliação seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido inicial.
Ora, os pedidos formulados pela interveniente são, exactamente, baseados nos mesmos factos invocados pelos autores da acção. O que acontece é que a interveniente lhes confere uma solução jurídica diferente. No fundo, trata-se de uma ampliação justificada em razão de uma diversa qualificação dos factos: além da nulidade por simulação, a interveniente também acha que o negócio é inválido, tanto por fraude à lei, como por violação do art. 877º do CC de 1966.
E por assim ser, se até o juiz não está limitado pela alegação dos autores no tocante à aplicação do direito (art. 567º, do CPC), crê-se que da mesma maneira, ou até por maioria de razão, não se poderia, neste caso, impedir a interveniente de apresentar uma diferente solução jurídica e pedi-la expressamente. Aliás, essa solução está expressamente prevista no art. 263º do CPC, que prevê que o interveniente possa fazer um direito particular em articulado próprio, onde, com é bom de ver, pode formular os pedidos correspondentes.
Não há dúvida, portanto, que este pedido apresentado pela interveniente é o desenvolvimento e consequência do pedido inicial com uma mesma origem fáctica.
E mesmo que se ache que a causa de pedir correspondente a estes pedidos da interveniente se afaste parcialmente da causa de pedir inicial, nem isso constitui motivo para inviabilizar a pretensão da interessada, uma vez que as causas de pedir, mesmo nessa hipótese, se entrecruzam ou relacionam em virtude de factos essencialmente comuns (Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, 1978-1979, pág. 347 e Cândida Pires e Viriato Lima, Código de Processo Civil de Macau, anotado e comentado, II, pág. 46).
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Em terceiro lugar, é certo que estes pedidos foram apresentados tardiamente1 e podem ser vistos como a afirmação autónoma de uma nova pretensão. Contudo, nessa hipótese, ainda que estejamos perante uma cumulação sucessiva de pedidos, a sua admissibilidade decorre do facto de a ela se aplicarem as regras da alteração e da ampliação da causa de pedir e do pedido (neste sentido, Ac. da Relação de Coimbra, de 14/02/2012, Proc. nº 1032/09). Ou seja, o pedido a apresentar pelo interveniente não tem que ser exactamente o mesmo que os autores iniciais apresentaram na petição inicial. Logo, assim como o autor inicial pode ampliar o pedido e a causa de pedir dentro de certas condições, assim o pode também fazer o interveniente.
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Tudo isto significa que nenhuma razão impediria a pretensão da recorrente de “ampliar” o pedido inicial traduzida nos pedidos formulados cumulativamente a fls. 728 vº.
Deve ser, pois, provido o recurso.
*
3 – 2º Recurso interlocutório da interveniente F
Agora, está em causa o indeferimento do pedido que a recorrente formulara a fls. 851-853 no sentido de obter a suspensão dos autos até à decisão de interdição da 1ª ré, C.
A decisão recorrida, tomada a fls. 884 dos autos foi a seguinte:
“Compulsados os elementos autos, a F pediu a suspensão dos presentes autos, alegando a existência dos autos de CV3-12-0151-CPE, que tem por objecto o requerimento de interdição de C. Após a consulta dos referidos autos, verifica-se que ainda não foi decretada a interdição de C. Ela encontra-se representada pelo mandatário judicial nos presentes autos, e opõe-se à suspensão dos presentes autos. Os presentes autos foram instaurados antes da entrada do requerimento dos autos de CV3-12-0151-CPE. Entendo que não existe causa prejudicial entre aqueles e os presentes autos. Pelo exposto, indefiro o requerimento de suspensão. Aguarde pelo julgamento dos presentes autos. Notifique e DN ” (fls. 884).
Os argumentos do despacho são, portanto, estes:
- Ainda não foi decretada a interdição da 1ª ré;
- A 1ª ré encontra-se representada por mandatário nos presentes autos, opondo-se neles à suspensão;
- Os presentes autos foram instaurados antes da entrada do requerimento dos autos onde é pedida a interdição da 1ª ré;
- Não existe causa prejudicial entre ambos os processos.
-
3.1- Quanto ao primeiro, é patente que ele não faz sentido. Na verdade, a suspensão visa precisamente evitar que se decida determinada questão no processo suspendendo até que se efectue o julgamento da acção já proposta (nº1, do art. 223º, do CPC). Ou seja, a norma citada pressupõe precisamente, com toda a lógica, que a acção “já proposta” esteja ainda “pendente” (nº2, do art. 223º, do CPC), isto é, ainda não tenha sido já julgada definitivamente. Obviamente, se essa acção já estiver definitivamente julgada deixa de existir razão para que outra possa ser suspensa.
Isto não quer dizer que a suspensão não possa ser ordenada por causa diferente da pendência de outra acção (nº3, do art. 223º, do CPC). Só que esse não foi o fundamento utilizado neste primeiro argumento, pelo que se torna despicienda qualquer abordagem a razões que não fazem parte do despacho impugnado.
De resto, deve acrescentar-se que a referida acção de interdição (CV3-12-0151-CPE) está já finda através de decisão que julgou os tribunais de Macau incompetentes para conhecer o pedido de interdição de C, decisão que viria a ser confirmada por acórdão do TSI, datado de 17/07/2014, conforme pudemos constatar por consulta do referido processo.
Improcede, pois, este fundamento.
-
3.2 - Quanto ao segundo, ele é pouco compreensível, dada a escassez substantiva da sua fundamentação.
Parece o despacho querer dizer que não seria possível decretar a suspensão dos presentes autos pelo facto de, nestes, a interditanda ser também parte interessada (1ª ré) e se ter oposto expressamente à pretensão. A contrario parece legítimo deduzir-se desta fundamentação que só poderia ordenar-se a suspensão se a causa prejudicial corresse contra alguém que nos presentes autos não fosse parte. Ora, se estivermos certos na compreensão de uma tal fundamentação, então não a podemos sufragar.
Realmente, nem o facto de haver simultaneidade de igual posição processual da pessoa visada, nem o de haver oposição expressa desta no âmbito da presente acção pode servir de obstáculo à suspensão. O que a esta importa é que a decisão da outra causa pendente realmente interfira decisivamente no quadro da presente, quer prejudicando o sentido e substância da própria sentença a proferir nesta, quer prejudicando o próprio conhecimento dos pedidos formulados nesta.
Improcede, pois, este argumento.
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3.3 - Quanto ao terceiro, o que está em discussão é saber se a precedência da instauração da presente acção relativamente àquela outra em que foi pedida a interdição da 1ª ré também impediria a suspensão.
E quanto a nós, não. Efectivamente, o que é necessário é que a causa prejudicial esteja proposta no momento em que a suspensão seja ordenada, sendo irrelevante que ainda não tivesse sido intentada na data em que a causa dependente foi instaurada (neste sentido, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, pág. 288-289; José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, I, 2ª ed., pág. 544; Cândida Pires e Viriato Lima, Código de Processo Civil de Macau anotado, II, pág. 82).
Improcede, pois, este argumento do despacho.
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3.4 - Quanto ao quarto, o que importa é ver se existe ou não verdadeira prejudicialidade da referida acção de interdição em relação à presente.
Ora, quanto a este específico aspecto, não estamos de acordo com a recorrente quando a defende.
É preciso ter em conta que a causa de pedir inicial trazida à p.i. pela mão dos primitivos autores se traduz num grupo de factos que pretensamente ilustram um caso de simulação. E, por outro lado, atentar que a intervenção principal espontânea da ora recorrente F, partindo essencialmente do mesmo grupo de factos, os alarga na sua dimensão invalidante tendo em vista a nulidade e anulação da transmissão das acções da 1ª ré com fundamento em fraude à lei e no art. 877º do CC de 1966.
Sendo assim, a causa de pedir da acção tem um recorte muito próprio, de todo independentemente da causa de pedir da acção de interdição.
É certo que o resultado daquela acção de interdição da 1ª ré pode ter alguns reflexos na validade dos actos celebrados pela interditanda. Basta olhar para os artigos 131º a 133º do Código Civil para se ver que assim é. Contudo, a anulação prevista nos referidos preceitos dependerá de requisitos diferentes consoante eles tenham sido praticados posteriormente ao registo da acção, no decurso dela ou antes da publicidade da acção, tal como se pode ver nos normativos em causa. Ou seja, o reflexo invalidante dos actos não é automático e é variável em função das circunstâncias concretas. Quer isto dizer que a decisão de interdição que eventualmente seja tomada não se reflecte necessária e imediatamente no âmbito da presente acção que assenta em fundamentos e causa de pedir substancialmente diferentes2.
Note-se, aliás, que a causa de pedir descrita pelos AA na presente acção implica que se tenha por pressuposto que a ré tenha tido a intenção de prejudicar os demandantes, pois só assim a simulação se poderia dar alguma vez por provada. Contudo, a interdição, se decretada, está diametralmente oposta à intenção subjacente à simulação, uma vez que o negócio teria sido, nesse caso, realizado por quem era eventualmente incapaz (onde a vontade deixa de estar presente nos termos em que o está quando subjaz a um negócio realizado pelos capazes).
Isto é, a incapacidade resultante da interdição é tão inconciliável com a causa de pedir ilustrativa de uma simulação, que jamais se pode aceitar que a decisão daquela causa possa ser prejudicial da presente, uma vez que a vontade que tem que estar presente além (só assim se justifica a nulidade com base no exercício da vontade livre e esclarecida por quem pode reger a sua pessoa e bens), já não pode naturalmente estar presente nos actos praticados pelo interdito (caso em que a pessoa visada não é capaz de se auto-determinar, de ter a consciência dos seus actos e das suas consequências).
É, pois, também por causa desta contradição insuperável que não se pode achar que o resultado da acção de interdição interfere automática e necessariamente, como causa prejudicial, no resultado da presente acção.
Aliás, e como já se disse, os autos de interdição terminaram com uma decisão, transitada, que decretou a incompetência dos tribunais de Macau para o julgamento da causa.
-
Dito isto, somos a entender que o recurso não pode ser provido.
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4 – 1º Recurso (interlocutório) do autor A
Está em causa a decisão que indefere o requerimento do A. (fls. 1202 vº) para que o depoimento gravado da testemunha H (irmã da ora 1ª ré) num procedimento cautelar apenso aos autos fosse atendido como princípio de prova nos termos e para os efeitos do art. 446º, nº2, do CPC.
A fundamentação para o pedido correspondente residia na sua avançada idade (mais de 90 anos) e no seu estado de saúde, circunstância que não lhe permitiria deslocar-se pessoalmente ao tribunal para prestar o seu depoimento.
O colectivo, porém, relegou a apreciação deste pedido para o momento da apreciação das provas (cfr. fls. 1202 vº). E no acórdão em que mais tarde fez a apreciação da prova (cfr. fls. 1252 a 1255) decidiu:
“A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência (…).
Em especial, para efeito das provas produzidas, não se considera o registo do depoimento prestado pelo H quando foi ouvida em 1 de Fevereiro de 2002 nos autos da providência cautelar nº CPV-001-02-3, apensado aos presentes autos, por, na altura, essa pessoa ter sido inquirida sem prévia audição das Rés, o que, naturalmente, lhes impediram o exercício do direito de contraditório, portanto, esse registo não pode ser invocado e atendido como prova, ao abrigo do disposto no nº1 do art. 446º do CPC” (fls. 1253 e vº).
Que dizer?
Não é uma questão meramente formal aquela que aqui está em discussão, que possa ser ultrapassada facilmente. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de um tema da maior importância e que ultrapassa as simples extremas do respeito formal pelas regras do contraditório.
Repare-se que aquilo que o autor pretendia era que a referida testemunha - que não pôde apresentar-se pessoalmente ao tribunal para prestar o seu depoimento testemunhal, alegadamente pela sua idade e pela sua fraca saúde - fosse tida em consideração no âmbito do depoimento que havia prestado no procedimento cautelar apenso aos autos.
Esta pretensão formulada pelo autor terá enquadramento legal no art. 446º, nº1, do CPC? É o que veremos.
Dispõe o nº1 do artigo em causa que:
«Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocadas noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no no nº3 do art. 348º do Código Civil; se, porém, o regime de produção de prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova” (destaque nosso).
Como se vê, o dispositivo legal tem duas previsões:
Pela primeira, o depoimento prestado num anterior processo pode valer como meio de prova num segundo, desde que no primeiro tenha sido respeitado o princípio do contraditório.
Pela segunda, desde que o regime de prova do primeiro processo ofereça menores garantias do que as oferece o segundo, o depoimento testemunhal prestado naquele deixa de valer como meio de prova (desde que gravado ou reproduzido por escrito em audiência), para passar a valer simplesmente como princípio de prova.
Ora, o que acontece é que aquele depoimento testemunhal fora gravado na providência cautelar e o autor queria que ele fosse tido em conta, não como meio de prova, mas apenas como simples “princípio de prova” (fls. 1202 vº).
A decisão impugnada, porém, tratou o caso como se ele coubesse na 1ª parte do nº1 do art. 446º, quando a ideia do requerente era que ele fosse integrado na previsão da 2ª parte do nº 1 do art. 446º. Ou seja, o despacho em crise afirmou a impossibilidade de considerar o depoimento gravado da referida testemunhal “como prova” (fls. 1253), com o argumento de que no referido procedimento cautelar não foram oferecidas as garantias de audiência contraditória, sendo certo, porém, que não era isso o que se pretendia.
O que estava em causa era que o referido depoimento, precisamente por não ter sido observado o princípio do contraditório no procedimento cautelar em que foi prestado, não valesse como “meio de prova” - com o valor de prova legal ou prova livre que lhe competisse - mas sim como mero “princípio de prova”. Mas, aí, o inciso legal aplicável já não seria a 1ª parte do nº1 do art. 446º, do CPC, tal como decorre dos termos em que foi invocado no despacho aqui sindicado, mas sim a 2ª parte do mesmo nº1.
Ora, o princípio da prova é algo que, por si só, não conduz à prova, pois que é “insuficiente para provar o facto e só susceptível de o conseguir quando conjugado com outros meios. Trata-se de um contributo para o resultado probatório final sem força autónoma, mas concretamente relevante quando os meios de prova com que se combine não sejam, por si só, suficientes para gerar no julgador a convicção de que o facto probando se verificou” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, 2º, 2ª ed., pág. 450).
E aqui está a razão pela qual não concordamos com a decisão tomada: é que a 1ª instância não relevou o depoimento gravado como “prova” com o valor que lhe competisse (nº1, 1ª parte, do art. 446º cit.). Ou seja, não o considerou minimamente e, em vez disso, pura e simplesmente retirou-lhe toda a possibilidade de ser considerado no âmbito da prova, nem como meio de prova, nem como princípio de prova.
O tribunal errou, portanto, na aplicação do artigo 446º, nº1, do CPC ao desconsiderar a destrinça que o preceito estabelece a propósito da eficácia extraprocessual das provas.
E este tribunal não se pode substituir à 1ª instância nessa matéria, em obediência ao princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que a avaliação do depoimento da referida testemunha, podendo trazer alteração no julgamento dos factos, só pode ser feita pelo tribunal recorrido. Basta pensar que o depoimento da testemunha prestada no procedimento cautelar, mesmo que indiciariamente relevado, concatenado com outros elementos, possa levar o colectivo a outra convicção sobre a matéria de facto provada. Ou seja, o provimento do recurso em análise justifica-se por a infracção verificada ter influência no exame e decisão da causa (art. 628º, nº3, do CPC).
Logo, é preciso que esse mesmo tribunal faça uma primeira análise em julgamento sobre os factos e declare quais os que se mostram provados de acordo com esse novo elemento. E só posteriormente, na hipótese de inconformismo manifestado em novo recurso jurisdicional sobre esse julgamento, o tribunal de recurso pode lançar sobre a factualidade provada o seu novo olhar censório.
Sendo assim, provido o recurso, impõe-se revogar o dito despacho e determinar que o processo baixe à 1ª instância a fim de que seja:
- Notificado o autor para informar para que artigos da Base Instrutória pretende que o depoimento da testemunha H prestado no Proc. nº CPV-001-02-03 seja valorado.
- Refeito, posteriormente, o julgamento de toda a matéria de facto ao abrigo do art. 556º, nº2 do CPC, relevando e valorando o depoimento em causa como princípio de prova; e, posteriormente, seja:
- Proferida nova sentença em função da matéria de facto que vier a ser dada como provada; e nela, ---
- Apreciado o pedido formulado pela interveniente F no seu articulado de fls. 729, face ao provimento do 1º recurso interlocutório apresentado por essa interessada.
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5 – Recurso da sentença interposto pelo autor A
Em vista do que se acaba de dizer, fica prejudicado o conhecimento do recurso da sentença, uma vez que a revogação acima mencionada importará a anulação dos actos processuais posteriores, incluindo a própria sentença.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
1.1 – Conceder provimento ao 1º recurso interlocutório interposto pela interveniente F.
Em consequência:
a) Revoga-se o despacho de indeferimento de ampliação do pedido, que deverá ser substituído por outro que a admita;
b) Determina-se a anulação de todos os actos processuais posteriores, incluindo a própria sentença.
1.2 – Negar provimento ao 2º recurso interlocutório interposto pela referida interveniente.
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2.1– Conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pelo autor A.
Em consequência:
a) Revoga-se o despacho impugnado;
b) Determina-se que o processo, uma vez baixado à 1ª instância, prossiga nos termos definidos no ponto III- 4 supra.
2.2 – Julgar prejudicado o conhecimento do recurso da sentença.
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Custas em função do decaimento.
TSI, 09 de Março de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Tardiamente, queremos dizer, no sentido de que não são os pedidos da petição inicial.
2 O Ac. da R.L., de 3/09/2013, Proc. nº 1084/10, considerou que “A validade dos actos praticados pelo interdito, mesmo após a data a partir da qual foi considerada a sua incapacidade, terá sempre de ser discutida em processo autónomo”.
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861/2016 45