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Processo nº 467/2016
(Revisão de Sentença do Exterior)

Relator: João Gil de Oliveira

Data: 16/Março/2017

   
   Assuntos:
- Revisão de Sentença do Exterior

    
    SUMÁRIO :
    
    É de confirmar uma sentença homologatória de conciliação civil, proferida pelos Tribunais do Interior da China, relativa a um divórcio por mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna, tendo sido acautelada a regulação do poder paternal do filha menor do casal.

O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira


Processo n.º 467/2016

Data : 16/Março/2017

Recorrente : A

Recorrido : B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    A, mais bem identificada nos autos, vem requerer contra B, também ele aí mais bem identificado, nos termos do art.º 1199.º e os seguintes do CPC de Macau, processo especial de " revisão de decisões proferidas por tribunais do exterior de Macau", com os seguintes fundamentos de facto e de direito:
  1.
   Aos 13 de Março de 2013, a requerente e o requerido casaram-se através de registo no Interior da China. (vd. o documento 1)
   2.
   Aos 12 de Agosto de 2013, a requerente deu à luz o filho C. (vd. o documento 2)
   3.
   Aos 28 de Agosto de 2015, a requerente requereu ao Tribunal Popular do Município Taishan, Província Guangdong, China, para se divorciar.
   4.
   Através da conciliação presidida pelo juiz do tribunal, as duas partes chegaram ao acordo de divórcio voluntário. O poder paternal seria exercido pela A sobre o filho menor; e foi elaborado o documento de conciliação civil. (vd. o documento 1)
    5.
   Aos 23 de Novembro de 2015, o documento de conciliação civil já começou a produzir efeitos jurídicos. (documento 3)
    6.
   O documento de conciliação civil sobre este divórcio e o exercício do poder paternal observa as disposições legais das autoridades chinesas. Não há qualquer dúvida sobre a autenticidade do documento acima mencionado do qual consta a decisão, nem sobre a inteligibilidade da decisão.
    7.
   A requerente é residente de Macau. Mas o casamento em causa foi estabelecido no Interior da China; o divórcio foi requerido no Tribunal Popular do Município Taishan, Província Guangdong, China. Nos termos do CC de Macau e dos direitos internacionais privados relacionados, não há qualquer situação de fraude à lei. Ao mesmo tempo, a decisão de divórcio acima referido não se refere a qualquer assunto de competência exclusiva dos Tribunais de Macau.
    8.
   No presente processo, também não se pode levantar a excepção de litispendência, com o motivo de o caso já ter sido conhecido pelo tribunal de Macau; ou a excepção da existência da decisão com trânsito em julgado no processo.
    9.
   O presente requerimento de divórcio é um requerimento de divórcio litigioso. No entanto, mais tarde as duas partes chegaram ao acordo de divórcio por mútuo consentimento. As duas partes também foram citadas nos termos legais e apresentaram-se. Já foram observados os princípios de contraditório e de igualdade das partes.
    10.
   A decisão em causa não contém decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
    11.
   Nestes termos, a decisão em causa observa todas as disposições legais do art.º 1200.º, da alínea a) à f), do CPC de Macau.
   
   Apoio judiciário
   
   As condições económicas da autora não são boas. Ela não consegue sustentar as despesas do processo. Também lhe foi concedido o apoio pelo Comissão de Apoio Judiciário, pelo qual ela goza da dispensa do pagamento de preparos e custas, da nomeação do patrono no tribunal, e da dispensa do pagamento dos honorários. Aqui nos termos dos artigos relacionados da Lei n.º 13/2012, os preparos da autora neste processo e todas as custas processuais derivadas deste processo devem ser dispensados. (vd. o documento 4)
   
   Requerimento
   Nestes termos, requer-se ao Mm.º Juiz confirmar a presente decisão de divórcio litigioso e de exercício do poder parental, nos termos legais.
  
O requerido não contestou.

O MP nada opõe.

    Foram colhidos os vistos legais.
    
    
    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.

    Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
    
    
    II - FACTOS
    
    Vêm certificados os factos seguintes:
1. “Documento de conciliação civil

  Tribunal Popular do Município Taishan, Província Guangdong


  Tribunal Popular do Município Taishan, Província Guangdong
  
  Documento de conciliação civil
  
  N.º "(2015) 江台法民三初字第199號"
  
  A autora: A, do sexo feminino, nascido aos 25 de Julho de 1981, ora reside em Macau, BIRM permanente n.º XXX.
  Patrono constituído (procuração especial): XX, advogado do Escritório de Advogados XX, Guangdong
  O réu: B, do sexo masculino, nascido aos 3 de Outubro de 1973, da etnia Han, da Cidade Taishan, ora reside na XXX, Cidade Taishan, Bilhete de Identidade de Cidadão n.º XXX.
  Aos 28 de Agosto de 2015, este tribunal abriu o processo e conheceu do caso de litígio de divórcio em que a autora A processou o réu B. Foi constituído o tribunal colectivo nos termos legais e julgou o processo publicamente. Em Maio de 2011, a autora e o réu conheceram-se por eles próprios; aos 13 de Março de 2013, os dois casaram-se através de registo nos Serviços dos Assuntos Civis do Município Taishan (certificado de casamento n.º J440781-2013-002108). Aos 12 de Agosto de 2013, nasceu o filho C. Nos tempos iniciais depois do casamento, as duas partes tinham boas relações; mais tarde, conflitos vieram a sendo desenvolvidos, e as relações conjugais deterioraram-se. A partir do dia 1 de Maio de 2015, a autora e o réu começaram a viver separadamente até agora. Aos 28 de Agosto de 2015, a autora intentou uma acção a este tribunal e requereu divorciar-se do réu, com o motivo do rompimento das relações conjugais. O filho legítimo C seria alimentado pela autora. O réu respondeu à demanda e concordou com o requerimento da demanda da autora.
  Durante o processo do conhecimento deste processo, através da conciliação presidida pelo Tribunal Popular, as duas partes chegaram aos seguintes acordos voluntariamente:
  I. A autora A e o réu B divorciam-se por vontades próprias.
  
  II. O filho legítimo C será alimentado pela autora A, e ela vai sustentar os custos da alimentação.
  
  III. Não há outros litígios.
  
  A despesa para o processamento do presente processo é de RMB¥ 150, a ser paga pela autora.
  Os acordos acima mencionados observam as respectivas disposições legais e são confirmadas por este tribunal.
  Depois de ser assinados e recebidos pelas duas partes, este documento de conciliação começa a ter efeitos legais.
  
  Chefe do julgamento: XX
  Juiz auxiliar do povo: XX
  Juíza auxiliar do povo: XX
  
  (carimbo: vd. o original)
  
  Aos 11 de Novembro de 2015
  A escrivã: XX”


  
  2. “Tribunal Popular do Município Taishan
  Certificado da produção dos efeitos
  
  O documento de conciliação civil n.º "(2015) 江台法民三初字第199號" deste tribunal do processo de litígio de divórcio entre a autora A e o réu B já começou a produzir efeitos aos 23 de Novembro de 2015.
  
  Serve o presente para efeitos de prova.
  
  Aos 8 de Dezembro de 2015
  O Tribunal Popular do Município Taishan”
    
    
    III - FUNDAMENTOS

    O objecto da presente acção - revisão do termo de conciliação civil efectuado no âmbito do processo N.º "(2015) 江台法民三初字第199號", proferido em processo de divórcio pelo Tribunal Popular da cidade de Taishan, da província de Guangdong, da República Popular da China -, de forma a produzir eficácia na R.A.E.M., passa pela análise das seguintes questões:
    
    1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
    2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
    3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”

    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º2 do CPC.

A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.

    Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença/decisão estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.

Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.

Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma conciliação civil perante o Tribunal Popular do Município de Taishan, da Província de Guangdong, da República Popular da China, de 11 de Novembro de 2015, tendo sido decretado o divórcio entre requerente e requerida e homologação de um termo de conciliação civil, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento e demais obrigações impostas, como guarda e alimentos do filho do casal -, sendo certo que é esta que deve relevar.2

Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
    
    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
  
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.

É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5

Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos; no caso, observa-se até que vem mesmo certificado o trânsito da decisão que teve efeitos a partir de 23 de Novembro de 2015.

2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CPC:

“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”

    Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio litigioso requerido apenas por um dos cônjuges, a esposa, ora requerida, que foi autora na acção de divórcio mas que terminou por mútuo consentimento.

   3. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6

E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.

    No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre a ora requerente e o seu marido, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública. Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, igualmente com fundamento na cessação dos laços e convivência conjugal, tal como se verifica no presente caso, seja por mera manifestação de vontade nesse sentido, preenchidos os respectivos requisitos, por parte de um dos cônjuges, como quando se comprove que houve violação dos deveres conjugais geradora da ruptura da relação matrimonial.

Também em relação ao que mais foi decidido, nomeadamente no que concerne às obrigações relativas à regulação do poder paternal, tendo o filho ficado aos cuidados da mãe, ora requerente, que suportará os custos da sua alimentação, nada fere as regras de confirmação do Exterior em relação ao ordenamento da RAEM, ainda que não se tenham pormenorizado outros termos da regulação do poder paternal.

O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.


V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão que homologou o termo de conciliação civil efectuado no âmbito do processo N.º "(2015) 江台法民三初字第199號", proferido em processo de divórcio pelo Tribunal Popular da cidade de Taishan, da província de Guangdong, da República Popular da China, de 11 de Novembro de 2015, com efeitos a partir de 23 de Novembro de 2015, nos seus precisos termos, tal como consta dos documentos acima transcritos.

Custas pela requerente.
               Macau, 16 de Março de 2017,
               João A. G. Gil de Oliveira
               Ho Wai Neng
               José Cândido de Pinho
    

1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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