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Processo nº 114/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A, (1ª) arguida com os sinais dos autos, como autora da prática em concurso real de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 17/2009, e outro de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da mesma Lei, fixando-lhe o Colectivo a quo as penas parcelares de 3 anos de prisão e 2 meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 3 anos e 1 mês de prisão; (cfr., fls. 516 a 525-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, vem o Ministério Público recorrer, alegando – em síntese – que o Colectivo do T.J.B. incorreu em “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a condenação da arguida como autora de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da dita Lei, (como acusada estava), ou o reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., fls. 531 a 533-v).

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Respondeu a arguida, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 536 a 541).

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Aquando da vista dos autos juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fis.531 a 533v. dos autos, a ilustre magistrada do M.°P.° solicitou a revogação do douto Acórdão sob sindicância (vide. fls.516 a 525 verso), bem como a substituição do mesmo por aresto judicial que vai condenar a 1ª arguida A na prática dum crime p.p. pelo disposto no n.°1 do art.8° da Lei n.°17/2009, assacando ao acórdão recorrido o erro notório na apreciação de prova.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014):
O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
No caso sub iudice, os factos dados por provados pelo Tribunal a quo garantem a firmeza da penetrante observação da ilustre colega quem apontou com clareza: «本案中,嫌犯A房間內的64包冰毒的份量,經過定量分析後,甲基苯丙胺的份量是30.0725 (28.2+1.84+0.0325) 克;還有嫌犯A身上搜出的64包冰毒的份量,經過定量分析後,甲基苯丙胺的份量是1.57克,即嫌犯A持有的冰毒份量合共為31.6425克。» Os materiais estupefacientes do tipo metanfetamina na posse da 1ª arguida atingem a 31.6425 gramas. Esta quantidade total constitui facto provado.
Ora, é de 0.2 gramas a quantidade de referência do uso diário de metanfetamina prescrita na Lei n.°17/2009. Determina o n.°2 do art.11° desta Lei: Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante (sublinha nossa). O que significa que não excede a 1.0 grama.
Daí resulta que, a convicção do Tribunal a quo conduz a conclusão de que 30.6425 gramas de metanfetamina se destinam ao uso pessoal da dita 1ª arguida, e apenas 1.0 grama à venda a outrem, visto que, como se refere acima, é de 31.6425 gramas a quantidade total de metanfetamina na posse dela.
Em esteira com a prudente jurisprudência supra citada, subscrevemos a seguinte conclusão da ilustre colega: «10.根據第17/2009號法律所載之每日用量參考表,“甲基苯丙胺”的每日用量為0.2克,5日份量為1克。根據一般的經驗法則,嫌犯A不會吸食30克的冰毒,而僅將1克的冰毒出售他人。»
Assim, e com todo o respeito pela opinião diferente, afigura-se-nos que a convicção do Tribunal a quo quanto à prova contradiz seriamente com as regras de experiência, e em consequência disso, existe in casu o erro notório na apreciação de prova.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do recurso do Ministério Público”; (cfr., fls. 553 a 554).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 519 a 521, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão prolatado pelo T.J.B., insurgindo-se contra a decisão de condenação da (1ª) arguida A como autora da prática de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da Lei n.° 17/2009.

Em síntese, é de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a condenação da arguida como autora de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da dita Lei, (como acusada estava), ou o reenvio dos autos para novo julgamento.

Vejamos.

De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.01.2017, Proc. n.° 498/2016, de 26.01.2017, Proc. n.° 776/2016 e de 16.02.2017, Proc. n.° 341/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.01.2017, Proc. n.° 382/2016, de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016 e de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016).

No caso, é o Recorrente de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “erro” ao dar como “provado” que o estupefaciente que a arguida (recorrida) detinha era “para venda e para consumo próprio”, e não, como constava da acusação, que o dito estupefaciente era (apenas) destinado à “venda a terceiros”; (cfr., “facto 16°” da acusação, e o mesmo “facto 16°” da decisão da “matéria de facto provada” e factos não provados).

Que dizer?

Eis como se nos parece de solucionar a questão.

Pois bem, antes de mais, começa-se por dizer que, em nossa opinião, não existe “erro”, (muito menos notório).

Com efeito, não vislumbramos como, onde ou em que termos tenha o Colectivo a quo desrespeitado qualquer “regra sobre o valor da prova tarifada” – que, no caso, nem o recorrente indica – o mesmo sucedendo com as “regras de experiência” e “legis artis”.

Como atrás se deixou consignado (em relação ao sentido e alcance do dito vício), não constitui erro uma “leitura possível, aceitável ou razoável da prova produzida”, não bastando uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.

Ademais, de olvidar não é que o Tribunal a quo, em sede da fundamentação, deu nota clara e explícita que do julgamento não se conseguiu apurar (provar) que “todo” o dito estupefaciente era destinado à venda, notando também que igualmente possível não foi apurar qual a “quantidade” daquele mesmo estupefaciente que a arguida destinava à venda, (daí ter dado – apenas – como provado que “uma parte era para venda, e uma outra parte, para consumo”, sem especificar).

E, nesta conformidade, o decidido não merece censura (no que toca ao imputado vício), o mesmo sucedendo em relação à “decisão de direito”, quanto à qualificação jurídico-penal da factualidade dada como provada.

Com efeito, em face da referida factualidade, (que nos dá conta que em causa está um total de estupefaciente inferior a 32 gramas), e apurada não estando a “quantidade de estupefaciente” que, em concreto, era pela arguida destinada ao “tráfico”, correcta se apresenta a decisão da sua condenação como autora de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da Lei n.° 17/2009, (e 1 outro de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009).

Importa pois ter presente que o Colectivo a quo deu também como “não provada” outra matéria de facto que “suportava” a acusação pelo crime do art. 8° da Lei n.° 17/2009, em especial, quanto ao dinheiro que a arguida detinha e, que, de acordo com a acusação, era proveniente da venda de estupefaciente, e que da restante matéria de facto dada como provada também não resulta nenhuma “transacção” (antes) efectuada.

Em síntese, não se tendo provado o que da acusação constava, e provando-se apenas que “parte” do estupefaciente apreendido nos autos era para venda, e que (a outra) “parte”, era para consumo, não se tendo especificado, por não ter conseguido apurar, qual as “respectivas quantidades”, proferiu o Tribunal a decisão ora recorrida.

E, em nossa opinião, bem andou o T.J.B., pois que, no fundo, em sede de decisão de matéria de facto aplicou correctamente o princípio “in dubio pro reo”, daí retirando as devidas consequências, nenhuma censura merecendo assim o decidido.

Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem custas dada a isenção do Recorrente.

Honorários ao Exmo. Defensor da arguida no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 16 de Março de 2017
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Choi Mou Pan
Proc. 114/2017 Pág. 6

Proc. 114/2017 Pág. 7