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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 36 / 2006

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança






1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso contra o Secretário para a Segurança, impugnando o despacho deste que lhe indeferiu o pedido de autorização de residência.
   Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.° 305/2005, foi negado provimento ao recurso contencioso.
   Deste acórdão vem A agora recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O objecto do presente recurso é a decisão do Tribunal de Segunda Instância que decidiu negar provimento ao recurso interposto da decisão do Senhor Secretário para a Segurança que indeferiu o pedido de autorização de residência do recorrente para junção à sua companheira e seu filho menor, ambos residentes nesta Região Administrativa Especial de Macau.
   2. Decidindo deste modo, o acórdão recorrido encontra-se igualmente inquinado de vícios de violação da lei, por manifesto erro na apreciação dos pressupostos de facto, entre outros vícios, porque, quer a entidade recorrida e quer o acórdão recorrido, não ter levado em consideração elementos de facto levados aos autos pelo recorrente.
   3. Na verdade, em sede de defesa, o recorrente afirma que se desviou há mais de vinte anos do mundo da criminalidade, sendo que de então para cá, tem-se dedicado exclusivamente aos seus negócios e a vida familiar, e que a partir de meados de 1985, ou seja há mais de 20 anos, nunca mais foi referenciado como sendo autor material ou moral da prática de qualquer tipo de crime, sendo que toda a referência que se faz à sua pessoa, quer seja ligado ao crime, quer de eventual pertença a associação criminosa, remonta ao período anterior àquela data de 1985.
   4. Efectivamente, tais excessos foram praticados durante a sua juventude, numa altura difícil da sua vida, pelo que considere ter cumprido e pago pelos excessos cometidos. Daí que, ciente do comportamento desviante em que traduzira a sua vida nessa altura, deu um rumo diferente à mesma, dedicando-se à vida familiar e ao comércio, sendo que poderá considerar que hoje vive numa situação de desafogo económico.
   5. Acresce que foi aqui, nesta Região Administrativa Especial de Macau, que nasceu e reside o seu filho menor de sete anos de idade e a sua companheira, com quem vive em união de facto, constituindo essa a principal razão do pedido de autorização de residência. Uma vez que tenciona ser uma figura sempre presente no crescimento, educação e bem estar do referido menor, sobretudo nesta fase inicial dos seus estudos, de modo a evitar que a separação do pai e do filho cause danos psicológicos, morais e materiais ao menor irreparáveis, que, por outro lado, se repercutem destrutivamente no recorrente.
   6. Razão porque entende que no acórdão recorrido podia e devia ter sido levado em consideração os elementos de facto que levou ao processo, sendo que o passado criminal não poderá receber uma valoração superior aos restantes elementos, mormente a questão da junção familiar, que tem, como se sabe, consagração e protecção na Lei Básica da RAEM, mormente no art.º 38.º.
   7. Alegando em sede de defesa, não pertencer a nenhuma associação criminosa e que se tinha desviado do mundo da criminalidade desde a sua última condenação na RAEHK, a entidade recorrida tinha a responsabilidade de averiguar se tal alegação corresponde ou não a verdade.
   8. Não o fazendo entendemos que o acto recorrido padece de vício de violação da lei por claro déficit de instrução, sendo que este vício conduz a anulação do acto recorrido.
   9. Na verdade, a falta de diligências reputadas necessárias para a constituição da base fáctica da decisão afectará esta, não só se tais diligências forem obrigatórias (acarretando, assim, violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos não estiver comprovada, ou faltarem, nessa base, factos relevantes e alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a administração poderia e deveria ter colhido (o que gera erro nos pressupostos de facto).
   10. As omissões, inexactidões ou insuficiências na instrução estão na origem de um déficit de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão, derivado não só da omissão ou preterição das diligências legais, mas também, de não se tomar em devida conta, na instrução, interesses que tenham sido introduzidos pelo recorrente, ou factos que fossem necessários para a decisão do procedimento.
   11. O recorrente sempre se mostrou ser um exímio cumpridor das leis desta RAEM, região onde não tem antecedentes criminais e se encontre ligado por fortes razões de ordem afectiva pois foi cá que nasceu e vive o seu filho menor.
   12. Não sendo indiciado da prática de qualquer tipo de crime e estando em condições de se fixar a sua residência na RAEM, por junção familiar, cremos que a entidade recorrida esteve mal ao indeferir a sua pretensão.
   13. Desde logo, por se entender que tendo os ilícitos penais, constantes do registo criminal, sido praticados há mais de vinte anos, no nosso ordenamento jurídico, mormente na disciplina do Decreto-Lei n.º 27/96/M, de 3 de Junho, há que se considerar o agente reabilitado, quer do ponto de vista de direito e quer do ponto de vista judicial, uma vez que entre nós a reabilitação é concedido automaticamente, para além de ser irrevogável.
   14. Importa-se, pois, uma vez que os ilícitos foram praticados na RAEHK e tendo em conta a necessidade e às exigências de ressocialização dos delinquentes, indagar se as condenações ocorridas há mais de vinte anos na RAEHK, relevam para efeitos de autorização de residência na RAEM, ou, se ao invés, deva-se considerar que o mesmo delinquente se encontre reabilitado de direito e se se aplica o regime do Decreto-Lei n.º 27/96/M, de 3 de Junho.
   15. O regime de entrada, permanência e autorização de residência na RAEM encontra-se regulado na Lei n.º 4/2003.
   16. Daí resulta que a Administração da RAEM tem a faculdade de recusar a autorização de residência a pessoas que a solicitem, sempre que esses possuem antecedentes criminais, não respeitam as leis da RAEM ou as circunstâncias referidas no art.º 4.º da referida lei. No entanto, a lei fala em antecedentes criminais em sentido genérico, devendo-se entender que o antecedente criminal deva ser levado em linha de conta mesmo que o crime tenha sido cometido fora da RAEM.
   17. O Decreto-Lei n.º 27/96/M, de 3 de Junho, estatui no n.º 1 do art.º 24.º que a reabilitação de direito tem lugar, automaticamente, decorridos certos prazos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se entretanto não houver lugar a nova condenação por crime.
   18. Compulsadas as informações constantes do registo criminal enviadas pelas autoridades da RAEHK, verifica-se que a última condenação do ora recorrente remonta-se a 30 de Maio de 1985, numa pena de prisão de 9 meses, suspensa na sua execução por um período de 18 meses.
   19. Significa isto que mesmo levando em linha de conta o período da suspensão da pena, podemos afirmar que o recorrente se encontra reabilitado de direito, pois a reabilitação é automática bastando para tal que se cumpra os prazos legais estatuídos para o efeito (5 anos).
   20. No caso concreto em análise, atendendo que já decorreu muito tempo sobre a prática do crime e considerando que o agente manteve de então para cá boa conduta, deve-se considerar, para efeitos não judiciais, que o agente se encontra reabilitado e como tal não poderá ser prejudicado pelos factos cometidos em 1985 e que já se encontram prescritos para todos os efeitos legais.
   21. Entendimento de resto sufragado na declaração de voto constante do acórdão ora posto em crise e que aqui se dá por inteiramente reproduzido.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso e revogado o acórdão recorrido.
   
   O recorrido apresentou as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. Para efeitos de autorização de residência e de avaliação dos seus pressupostos a Administração da RAEM basta-se com a notícia de que no passado o recorrente sofreu diversas condenações pela prática de vários crimes, entre os quais o crime de pertença a uma associação criminosa.
   2. As autoridades da RAEM gozam de uma amplíssima margem de discricionaridade cujo exercício, em matéria de autorização de residência de estrangeiros ou não-residentes, não contende com quaisquer direitos fundamentais, e por isso não se sujeita a quaisquer restrições de quaisquer dispositivos legais, incluindo os que se referem às noções de reabilitação e ressocialização dos delinquentes.
   3. Tão somente àquela discricionaridade não é consentido traduzir-se na prática de acto fundado em pressupostos ilegais ou mostrar-se totalmente desrazoável em face dos interesses relativos que protege e sacrifica.
   4. Total desrazoabilidade essa que de todo não pode imputar-se ao acto recorrido uma vez que neste se contrapõem o interesse individual de obter o estatuto de residente numa Região vizinha à de origem, ao interesse público de a sociedade não ter que suportar, por desmerecimento, a concessão de tal estatuto, e bem assim os potenciais perigos, de natureza securitária, que daí resultariam.
   5. O crime de pertença a uma associação criminosa indicia, por definição, a continuação dessa pertença ou pelo menos a manutenção de “ligações” ao crime organizado, também sancionáveis pela lei de Macau e de que deve a sociedade defender-se.
   6. Não se pode punir continuamente a pertença a associação criminosa como também não se pode efectuar diligências instrutórias no sentido de demonstrar a ausência de pertença ou “ligações” ou da não continuação dessas pertença ou ligações.
   7. A ausência de condenações por um certo período nada diz quanto a um, aliás improvável, corte com a pertença ou ligação a uma associação criminosa, e muito menos afasta o juízo que se faz quanto à “propensão” para o envolvimento numa espécie particularmente grave de criminalidade.
   8. Na formação do acto recorrido não era plausível nem exigível a realização de quaisquer outras diligências instrutórias, pelo que o mesmo não padece de ilegalidade pela falta destas nem por erro nos pressupostos de facto.
   9. Igualmente por se tratar de um acto cuja discricionaridade de que se mostra impregnado se funda na oposição ao desmerecimento da outorga do estatuto de residente, e na defesa do interesse público em matéria de segurança, não é legítimo alegar-se a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
   10. A disciplina do DL n.º 27/96 não tem qualquer aplicabilidade em matéria de autorização de residência.
   11. Nem a lei impõe quaisquer impedimentos ou limitações em matéria de autorização de residência nem se pode afirmar da existência de um direito dos não-residentes de lhes ser concedida a autorização de residência na RAEM.
   12. A autorização de residência é um acto quase totalmente discricionário em termos de quase se poder dizer que a Administração da RAEM (obviamente fora dos casos em que o indivíduo possui, pelo nascimento, o direito “originário” de residência, o qual se impõe por si e não depende de qualquer discricionaridade) concede essa autorização se quiser, e se não quiser não concede.
   13. Além do mais, a autorização de residência é um acto de importância maior que confere ao seu titular, à face da Lei Básica, um estatuto de quase cidadania, muito idêntico ao estatuto constitucional de cidadania dos Estados, com todo o inerente acervo de direitos e garantias, deveres e responsabilidades.
   14. A vontade da Administração em matéria de autorização de residência norteia-se pela avaliação de pressupostos relacionados, nomeadamente, com o merecimento ou desmerecimento da concessão de um estatuto de significativa importância com expressão constitucional fundamental, e com a segurança e ordem públicas.
   15. Na avaliação dos pressupostos de autorização de residência sempre pesarão os crimes cometidos pelo indivíduo em causa, não importa se num passado próximo ou longínquo ou se se encontra ou não reabilitada de direito, pois de facto sempre sobre o mesmo impenderá não qualquer tipo de estigma ou impedimento objectivo mas o receio da continuação ou reatamento da actividade criminosa (mormente quando, como no caso em apreço, existe a notícia de ligações ao crime organizado).
   16. O exercício de avaliação e ponderação de um percurso de vida, de uma personalidade baseada num currículo criminal, nada tem que ver com o instituto da reabilitação e ao mesmo não deve qualquer obediência nem positiva nem negativamente.
   17. Nem o cadastro desacompanhado da reabilitação faz com que obrigatoriamente seja negada a autorização de residência, nem a reabilitação impõe a mesma autorização qualquer que haja sido o passado criminal do indivíduo, qualquer que seja o grau de desmerecimento, qualquer que seja o perigo que, no entender do órgão administrativo para tal vocacionado, o mesmo represente para a segurança e ordem públicas.”
   Pugnando pela manutenção dos acórdão e acto administrativo recorridos.
   
   A Procuradora-Adjunta do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
   “O recorrente imputa ao douto acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância os seguintes vícios:
   - Violação da lei por manifesto erro na apreciação dos pressupostos de facto;
   - Violação da lei por claro déficit de instrução;
   - Violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça; e
   - Total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários
   Vejamos se tem razão o recorrente.
   
   Por despacho proferido em 20-7-2006, o Senhor Secretário para a Segurança decidiu indeferir o pedido de autorização de residência formulado pelo ora recorrente, tendo em especial consideração os antecedentes criminais do recorrente e a sua referência pelas autoridades de Hong Kong como pertencendo a uma associação criminosa.
   Como se sabe, na concessão da autorização de residência na RAEM, a lei manda para atender aos antecedentes criminais do interessado, para além dos outros elementos (art.º 9.º n.º 2 da Lei n.º 4/2003).
   Consta dos autos que, conforme a informação oferecida pelas autoridades de Hong Kong, o recorrente foi condenado por várias vezes, incluindo uma condenação por ser membro de associação criminosa, sendo que a última condenação foi registada em 30-5-1985.
   
   Alega o recorrente que tanto a entidade recorrida como o acórdão recorrido não tomaram em consideração elementos de facto por si levados aos autos, afirmando que se desviou há mais de 20 anos do mundo da criminalidade e toda a referência que se faz à sua pessoa, quer seja ligado ao crime, quer de eventual pertença a associação criminosa, remonta ao período anterior ao ano de 1985.
   A insuficiência da instrução invocada pelo recorrente prende-se com a não realização de diligências para averiguar a veracidade da sua alegação em causa.
   No entanto, face à forma como vem fundamentado o despacho impugnado nos presentes autos, que se limitou a mencionar os antecedentes criminais do recorrente e a sua referência como pertencendo a associação criminosa, não nos parece que à alegada falta de diligências se possa imputar o vício de déficit de instrução.
   Por um lado, por comando legal contido na al. 1) do n.º 2 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a Administração deve atender aos antecedentes criminais do interessado, elemento este para o qual o legislador não estabelece quaisquer condições ou termos, pelo que, independentemente da data em que foi praticada a infracção, a respectiva condenação deve ser considerada para efeitos da concessão da autorização de residência.
   Não é imposta à Administração a obrigação de indagar se o interessado mantém, ou não, o bom comportamento no período, mais ou menos longo, contido entre a última condenação e a concessão da autorização de residência.
   Por outro lado, não é exigida a certeza de que o recorrente pertence a associação criminosa, bastando, a nosso ver, as informações oferecidas pelas Autoridades de Hong Kong com referência à ligação e pertença do recorrente a uma associação criminosa .
   E face à natureza deste tipo de crime, que é o crime permanente, não nos parece inadequada a ilação tirada pela Administração, no que concerne à referência do recorrente como pertencendo a uma associação criminosa, da informação oferecida pelas Autoridades de Hong Kong sobre a condenação do recorrente por ser membro da associação de malfeitores.
   É evidente que, na avaliação dos pressupostos que se prendem com o mecanismo em causa, o que interessa é ponderar o risco, que possa ser eventualmente provocado pela concessão da autorização de residência, para a segurança e a ordem públicas da comunidade de Macau, tal como sucedeu no douto despacho impugnado.
   Face aos elementos reportados nos autos e acima referidos, facilmente se compreende a preocupação da Administração que motivou a sua decisão de não conceder ao recorrente a autorização de residência.
   E parecem credíveis e idóneas, para além de serem concretas e determinadas, as informações vindas das Autoridades competentes de Hong Kong.
   É de julgar improcedente o vício, alegado pelo recorrente, da violação da lei, quer por erro na apreciação dos pressupostos de facto quer ainda por déficit de instrução.
   
   Na matéria ora em causa, de concessão da autorização de residência, a Administração goza de uma ampla margem de discricionariedade, com certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade sobre o respectivo deferimento, tal como afirma o Magistrado do Ministério Público no seu parecer dado no recurso contencioso.
   E a intervenção do Tribunal fica reservada apenas aos casos de erro grosseiro ou injustiça manifesta.
   Evidentemente é que a discricionariedade não é sinónimo de arbítrio, encontrando-se pois vinculada, para além das outras regras, aos princípios jurídicos como a igualdade, proporcionalidade e justiça, cuja violação foi invocada pelo recorrente.
   Com é sabido, a igualdade de tratamento só é exigida quando estão em causa situações idênticas, o que não ficou provado nos autos e, muito menos, foi alegado pelo recorrente.
   Ao abrigo do princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do art.º 5.º do CPA, as limitações de direitos e interesses das pessoas devem revelar-se idóneas e necessárias para garantir os fins visados pelos actos dos poderes públicos.
   Impõe-se que o meio utilizado pela Administração seja idónea e necessária à prossecução do objectivo da decisão e proporcional à luz do interesse público em causa.
   A aferição da proporcionalidade põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável.
   Ou seja, exige-se a ponderação e comparação dos bens, interesses ou valores prosseguidos e sacrificados com o acto concreto.
   Não nos parece, no caso vertente, inaceitável ou intolerável o sacrifício trazido ao ora recorrente pela não concessão da autorização de residência, tendo em consideração os interesses gerais que se prendem concretamente com a manutenção da ordem pública e segurança de Macau que podem ser postos em perigo com aquela autorização.
   E não se vislumbra a manifesta injustiça na decisão tomada pela Administração, sem intenção de negar os interesses económicos e familiares que o recorrente tem na peticionada concessão da autorização de residência.
   Improcedem também os argumentos deduzidos a propósito de desrazoabilidade da Administração no exercício de poderes discricionários.
   
   De resto e acrescentando, não nos parece ter aplicabilidade na matéria ora em causa o regime de reabilitação.
   Com a previsão deste regime, nos termos dos art.ºs 23.º e seguintes do DL n.º 27/96/M, o que se visa é a ressocialização dos delinquentes na comunidade, que é a questão completamente diferente da matéria de autorização de residência.
   E não se pode esquecer que o instituto de reabilitação só se aplica aos condenados por decisões proferidas pelos tribunais de Macau, ficando fora as decisões condenatórias tomadas por entidades competentes do exterior de Macau.
   
   Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto não merece provimento.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Tribunal de Segunda Instância considera provados os seguintes factos:
“ ‘Despacho
   Assunto: Pedido de autorização de residência
   Requerente: A
   Refª: INF. MIG XXX/2005/E
   
   O requerente, residente permanente da Região Administrativa Especial de Hong Kong, vem pedir a autorização de residência para junção à sua companheira e seu filho, residentes de Macau.
   Atento ao teor da informação n.º MIG XX/2005/FR do Serviço de Migração, que aqui dou por integralmente reproduzida e tendo em especial consideração a informação constante do registo criminal emitido pelas autoridades competentes de Hong Kong, verifica-se que o requerente para além de possuir vários antecedentes criminais, vem referenciado pelas autoridades policiais da vizinha Região como pertencendo a uma associação criminosa.
   O que evidenciando uma personalidade desviante do requerente, a eventual autorização de residência na RAEM comporta riscos que nele se potenciam para a ordem e segurança da comunidade residente.
   Foi o requerente ouvido nos termos do artigo 94.º do CPA do sentido provável do indeferimento do seu pedido.
   O requerente vem, na fase da audiência escrita, alegar reiteradamente o seu contributo para a economia local com o investimento que tem vindo a efectuar na RAEM. Todavia, em sede de autorização de residência ao abrigo da Lei n.º 4/2003 e do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 não é o critério do investimento aquele que mais releva para a outorga do estatuto de residente, outrossim, além deste e de outros, fundamentalmente o da segurança de pessoas e bens das comunidades residentes.
   A disciplina do Decreto-Lei n.º 27/96/M não tem aplicabilidade em sede de concessão de autorização de residência. Aqui o que é relevante é o passado criminal do requerente, seja na RAEM ou fora dela, cujo conteúdo permita avaliar dos riscos para a ordem e segurança públicas da RAEM.
   Assim, nos termos da alínea 1) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, e em prol da defesa da ordem e segurança públicas da comunidade residente da RAEM determino-me pelo indeferimento do seu pedido, ficando prejudicada a apreciação dos demais aspectos substanciais do pedido.
   Porquanto, nos termos da citada disposição legal e no uso da competência que me advém das disposições conjugadas da alínea 4) do anexo IV a que se refere ao n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, com a nova redacção dada pelo Regulamento Administrativo 25/2001, e n.º 1 da Ordem Executiva n.º 13/2000, determino o INDEFERIMENTO do seu pedido de autorização de residência, com os fundamentos de facto e de direito já invocados.
   [...]’
   Tendo, por outro lado, a informação de registo criminal do recorrente prestada pelas Autoridades competentes de Hong Kong o seguinte teor literal:
   ‘[...]
   Dear Sir/Madam,
   Mr. A
   Please be advised that in connection with the application by the abovenamed person for a ‘Certificate of No Criminal Conviction’, records held by the Hong Kong Police Force show that this person appeared before a criminal court as follows:
Date
Offence
Result
27-11-1974
Robbery (S.10(1) Cap. 210)
Detention Centre (Case No. 8PK/J835/74)
07-06-1976
Being a member of a triad society (S20(2) Cap 151)
Bound Over $500 for 18 months (Case No. SK/8505/76)
07-03-1983
Engaging in bookmaking
Fined $7,500 (Case No. CB/2405/83)
30-05-1985
A. Criminal damage (S.60 Cap 200)
6 months imprisonment suspended 18 months compensation $2,600

B-C. Assault occasioning actual bodily harm (S.39 Cap 212)
9 months imprisonment suspended 18 months each concurrently, concurrently A and compensation $500 each (Case No. SPK/10637/85)
   [...]’ ”
   
   
   2.2 Vício de violação da lei por erro na apreciação dos pressupostos de facto e deficit de instrução
   O recorrente entende que o acórdão recorrido encontra-se inquinado do vício de violação da lei por não ter levado em consideração elementos de facto levados aos autos pelo recorrente e por deficit de instrução uma vez que a entidade recorrida não averiguou os factos alegados pelo recorrente em sua defesa.
   
   Estão em causa os seguintes factos alegados pelo recorrente em sede de defesa: o recorrente desviou-se há mais de vinte anos do mundo da criminalidade, sendo que de então para cá, tem-se dedicado exclusivamente aos seus negócios e à vida familiar, e que a partir de meados de 1985, ou seja há mais de 20 anos, nunca mais foi referenciado como sendo autor material ou moral da prática de qualquer tipo de crime, sendo que toda a referência que se faz à sua pessoa, quer seja ligado ao crime, quer de eventual pertença a associação criminosa, remonta ao período anterior àquela data de 1985.
   O recorrente afirma que a entidade recorrida não tomou em devida conta, na instrução, os referidos factos necessários para a decisão do procedimento.
   
   No entanto, isso não corresponde à verdade.
   Na realidade, o ora recorrido considerou, no seu despacho objecto do presente recurso contencioso, todos os factos alegados pelo recorrente. Do despacho consta “Atento ao teor da informação n.º MIG XX/2005/FR do Serviço de Migração, que aqui dou por integralmente reproduzida ...”.
   E nesta informação foi feita uma exposição bastante pormenorizada sobre a situação familiar e patrimonial do recorrente, os antecedentes criminais, bem como o conteúdo das suas declarações escritas, onde o recorrente afirma nomeadamente que, em 1976, por ignorância de juventude conheceu uns maus amigos, foi detido e considerado erroneamente por polícia como membro de tríade e por isso foi condenado; depois arrependeu profundamente e nunca mais teve contacto com aquelas pessoas; em relação a outros registos da prática de ilícitos foi por causa do então mau ambiente da vida familiar e ignorância de juventude, sem a consciência da gravidade das consequências; após a sua chegada a Macau e dedicar-se ao negócio, nunca teve mais contacto com os delinquentes, tem cumprido as leis locais, sem mais prática de crimes.
   Portanto, os factos alegados pelo recorrente sobre a sua situação pessoal foram considerados pelo recorrido e consta do despacho deste por remissão. Só que, a Administração valorou mais os antecedentes criminais e as informações da polícia da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), em detrimento dos factos alegados pelo recorrente, pois consta expressamente do acto recorrido: “... tendo em especial consideração a informação constante do registo criminal emitido pelas autoridades competentes da RAEHK, verifica-se que o requerente para além de possuir vários antecedentes criminais, vem referenciado pelas autoridades policiais da vizinha Região como pertencendo a uma associação criminosa.”
   Não há aqui falta de investigação ou consideração dos factos alegados pelo recorrente, mas simplesmente a entidade recorrida entende que tais factos não são suficientes para sustentar a decisão favorável ao seu pedido. A questão devia ser colocada no âmbito da qualificação jurídica dos factos.
   Improcede, portanto, o recurso nesta parte.
   
   
   2.3 Reabilitação
   O recorrente sustenta que é aplicável o regime de reabilitação de direito previsto no art.º 24.º do Decreto-Lei n.º 27/96/M porque as condenações ocorreram há mais de vinte anos na RAEHK.
   
   Ora, a tese do recorrente é simplesmente insustentável.
   O Decreto-Lei n.º 27/96/M estabelece o regime de registo criminal da RAEM. É certo que está prevista a reabilitação de direito no seu art.º 24.º. Mas esta norma e o diploma visam sobretudo as condenações criminais proferidas na RAEM. Não há qualquer disposição deste Decreto-Lei que permite considerar um indivíduo reabilitado das condenações criminais proferidas fora da RAEM.
   Por outro lado, os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro.
   
   Também não há aqui deficit de instrução por a entidade recorrida não ter indagado junto das autoridades da RAEHK no sentido de saber se o recorrente se encontra ou não reabilitado. A questão é líquida, pois, em relação ao pedido de certificado criminal formulado pelo recorrente à Polícia da RAEHK, esta respondeu que não é possível passar o certificado de inexistência de condenações criminais.
   
   
   2.4 Princípio da proporcionalidade
   O recorrente considera que a decisão recorrida é desproporcional, inadequada e injusta relativamente aos direitos e interesses que o ordenamento jurídico da RAEM lhe confere, bem como não ponderou o direito à família, a unidade e estabilidade familiar, causando-lhe prejuízos graves e de difícil reparação.
   
   De acordo com o art.º 9.º, n.º 2 da referida Lei n.º 4/2003:
   “2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
   1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
   2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
   3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
   4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
   5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
   6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.”
   A lei fixa apenas os aspectos que a Administração tem de atender para apreciar os pedido de autorização de residência, deixando à Administração, no uso deste poder discricionário, a grande liberdade de decisão conforme as situações concretas.
   O Tribunal de Última Instância tem entendido que no recurso contencioso, se o acto impugnado for praticado no âmbito de poderes discricionários, o tribunal só pode sindicar o mérito deste tipo de acto quando se verifica o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, ou a violação, de forma intolerável, dos princípios fundamentais do Direito Administrativo.1
   
   A entidade recorrida, ao indeferir o pedido de autorização de residência do recorrente, considerou especialmente os seus antecedentes criminais e as informações da polícia da RAEHK de referência do mesmo como pertencendo a uma associação criminosa. E concluiu pela existência de risco para a ordem e segurança pública da comunidade da Região.
   Para a lei não é particularmente relevante o tempo decorrido desde a prática de crimes e as condenações. Na óptica do legislador, as condenações criminais anteriores, bem como os fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes susceptíveis de ser motivo de recusa da entrada dos não residentes na RAEM (art.º 4.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 4/2003), constituem sempre motivo de alarme para a ordem e segurança públicas da Região.
   Em princípio, os interesses públicos de tranquilidade prevalecem sobre os interesses individuais de interessados de entrar e residir na Região.
   Ou seja, os antecedentes criminais, seja qual for o período já decorrido depois da condenação, são sempre o factor a considerar na apreciação do pedido de autorização de residência.
   Para o recorrente, os seus interesses de permanecer na Região e de unidade familiar não ficará particularmente afectados por indeferimento do seu pedido de autorização de residência. Na realidade, a Administração tem admitido a sua entrada e permanência na RAEM. Nos dois anos anteriores ao pedido em causa, o recorrente permaneceu durante 349 dias na Região, conseguindo a autorização de permanência por um ano logo depois da última entrada na Região antes da entrega do presente pedido, o que permite, de certa forma, a sua reunião familiar e tratamento dos seus negócios.
   Assim, não há manifesta violação do princípio de proporcionalidade ao indeferir o pedido do recorrente de autorização de residência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 5 UC.
   
   
   Aos 13 de Dezembro de 2007.









Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei


1 Acórdãos do Tribunal de Última Instância de 3 de Maio de 2000, 6 de Dezembro de 2002, 21 de Junho de 2006, processos n.ºs 9/2000, 14/2002, 1/2006.
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Processo n.° 36 / 2006 23