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Processo n.º 784/2016
(Recurso Cível)

Relator: João Gil de Oliveira
Data : 2/Março/2017


ASSUNTOS:
- Indagação da qualidade de herdeiro em processo de inventário;
meios comuns


    SUMÁRIO :
   Vista a complexidade da questão, relativa à indagação da qualidade de herdeiro e da determinação do direito aplicável, arrogando-se o requerente do inventário a qualidade de herdeiro de pessoa falecida, chinesa, e casada em primeiras e únicas núpcias de ambos, com o pai do requerente, de nacionalidade peruana, tendo a falecida apenas consentido na adopção do interessado por parte do seu marido, não obstante as diligências empreendidas, não será de censurar o despacho do Mmo Juiz que remeteu o interessado para os meios comuns a fim de se apurar daquela qualidade de herdeiro.
  
             O Relator,


Processo n.º 784/2016
(Recurso Civil)
Data : 2/Março/2017

Recorrente : A (preso)

Objecto de Recurso : Despacho que decidiu a aguardar a interposição
da acção por parte do cabeça de casal


    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    1. A, cabeça-de-casal nos autos acima identificados, notificado do conteúdo do despacho de fls. 176 que admitiu o recurso que interpôs do despacho de fls. 171 a 172, vem, nos termos do artigo 613º do Código de Processo Civil ("CPC"), apresentar as ALEGAÇÕES, o que faz, em síntese conclusiva:
    1. O Despacho recorrido padece de erros na apreciação de factos e padece de vícios por errada aplicação do Direito.
    2. Andou mal o Tribunal a quo quando, no Despacho de fls. 176, fixou ao recurso o efeito meramente devolutivo.
    3. O Recorrente indicou como efeitos a atribuir ao presente recurso, a subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, por entender serem de se aplicar os termos conjugados dos artigos 606°, n.º 2 a) e 607° n.º 1 do Código de Processo Civil.
    4. A questão incidental de se apurar se o ora Recorrente foi também adoptado pela Inventariada foi levantada pelo Tribunal a quo, pela primeira vez, a fls. 56 dos autos, por considerar que o ora Recorrente não fez prova bastante dessa sua qualidade.
    5. Desde então, o processo tem-se debruçado exclusivamente sobre esta questão, que surgiu no decurso do processo de inventário iniciado pelo Recorrente, e cuja discussão tem carácter incidental,
    6. Daí que o Recorrente tenha enquadrado o presente recurso na alínea a) do n.º 2 do artigo 606° do CPC.
    7. O Despacho de fls. 176 refere o seguinte: "por legal e tempestivamente interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso, que é de ordinário e sobe imediatamente (artigo 601º n.º 2 do CPC), nos proprios autos (tendo em conta a suspensão da instância - artigo 603º do CPC), com efiito meramente devolutivo".
    8. O Tribunal a quo entendeu que o presente recurso deveria subir imediatamente pois a sua retenção o tornaria absolutamente inútil (efr. n.º 2 do artigo 601° do CPC) e nos próprios autos, nos termos previstos no artigo 603° do CPC.
    9. Todavia, fixou-lhe um efeito meramente devolutivo, sem qualquer fundamentação legal e em manifesta contradição com o estatuído no n.º 1 do artigo 607° do CPC: "têm efiito suspensivo os recursos que subam imediatamente nos próprios autos",
    10. Se o presente recurso deveria subir imediatamente e nos próprios autos, o efeito a atribuir-lhe deveria ser o suspensivo e não o devolutivo (vide artigo 607° n.º 1 do CPC).
    11. O Recorrente solicitou esclarecimento ao Tribunal a quo, a fls. 179 dos autos. Na resposta a fls. 180, o Tribunal a quo não rectificou a errada atribuição de efeitos ao recurso preferindo mantê-lo, mais informando que, afinal, a instância não ficou suspensa e que a alusão ao artigo 603° do CPC tinha apenas o objectivo de referir que o Despacho produz uma situação "análoga à "suspensão da instância"'.
    12. O Despacho de fls. 180 mantém a violação do disposto no n.º 1 do artigo 607º do CPC.
    13. O Despacho de fls. 176 andou bem ao atribuir a subida imediata nos termos do n.º 2 do artigo 601° do CPC, pois é verdade que a retenção deste recurso o tornaria absolutamente inútil.
    14. No entanto, andou mal ao não lhe atribuir efeito suspensivo, quer porque, assim, viola a norma do n.º 1 do artigo 607° do CPC, quer porque, efectivamente, a instância deveria ficar suspensa até que se decida, de forma definitiva, se o Recorrente é ou não filho da Inventariada.
    15. Não faz sentido que o Despacho recorrido continue a produzir os seus efeitos, impondo que o Recorrente proponha uma nova acção a fim de se decidir, em acção autónoma, se este é ou não herdeiro da Inventariada.
    16. Se o presente recurso for julgado procedente, decidindo Vossas Excelências que o Recorrente é herdeiro da Inventariada, então o processo judicial que a propositura de nova acção irá desencadear deixará de fazer sentido, tornando-se inútil.
    17. Por razões de economia processual, por forma a evitar que seja distribuído mais um processo judicial no Tribunal Judicial de Base, e de modo a evitar que o Recorrente tenha o acréscimo dos custos associados à propositura de uma nova acção, se requer, nos termos do artigo 619° n.º 1, alínea b), se dignem Vossas Excelências corrigir o efeito atribuído à interposição do presente recurso, atribuindo-lhe, assim, o efeito suspensivo.
    18. Os próprios autos de inventário deverão ficar suspensos até que se resolva a questão incidental, (lue reveste carácter essencial, pois que do seu resultado depende a distribuição ou não, a favor do único herdeiro da Inventariada, do único bem por esta deixado.
    19. Se o único herdeiro da Inventariada é o Recorrente, carece de sentido que os autos de inventário continuem a correr, enquanto se confirma, no presente recurso, aquela qualidade do Recorrente, pelo que, nos termos do artigo 619° n.º 1, alínea c), se requer a Vossas Excelências seja declarada a suspensão da instância, nos termos expostos.
    20. Entende o Tribunal a quo (cfr. Despacho de fls. 171 e 172) que da Convenção de Adopção não resulta que a inventariada foi figurada expressamente como adoptante do cabeça-de-casal e que este não logrou provar que, com a celebração da Convenção, adquiriu a qualidade de herdeiro da Inventariada.
    21. Não tem razão o Tribunal recorrido.
    22. A Convenção a fls. 21 e 22 dos autos, com tradução certificada junta a fls. 37 a 41 dos autos, terá sido celebrada "entre os senhores C, de nacionalidade chinesa, cujo documento de identificação de estrangeiro é (...) e D, de nacionalidade chinesa, com o documento de identificação de estrangeiro (…)".
    23. Todavia, no corpo da Convenção, verifica-se que, efectivamente, intervieram no acto mais duas partes, do sexo feminino: senhora E e senhora F, que, com aqueles, a assinaram.
    24. A senhora F e o senhor D eram os pais biológicos/naturais do Recorrente e ambos intervieram no acto para, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 326° do Código Civil Peruano de 1936, darem o seu consentimento à adopção.
    25. Além de darem o seu consentimento, ambos declararam naquela Convenção que "é com muita satisfafão que aceitam esta adopção, por parte dos nossos compadres em relação ao nosso filho menor e estão certos de que tratarão do seu filho como verdadeiros pais",
    26. A intenção dos pais biológicos do Recorrente era a de que o seu filho fosse adoptado pelos seus "compadres", estando aqueles certos de que os dois elementos do casal tratariam do seu filho "como verdadeiros pais", em verdadeira harmonia familiar.
    27. Apesar de apenas o senhor D surgir identificado no preâmbulo da Convenção como parte da mesma, a verdade é que tanto o Senhor D como a senhora F prestaram o seu consentimento expresso, intervindo na Convenção na mesma qualidade, assim dando cumprimento a um dispositivo legal que exigia o consentimento de ambos os pais do adoptado.
    28. Apesar de apenas o senhor C surgir identificado no preâmbulo da Convenção como parte da mesma, o Senhor D e a senhora F pretenderam dar o seu filho biológico à adopção tanto do senhor C como da senhora E.
    29. Não obstante apenas os homens figurarem como intervenientes no preâmbulo da Convenção, com a aparência de que a mesma seria celebrada apenas entre estes dois, a verdade é que a Convenção foi celebrada entre quatro pessoas, sendo que duas dão o seu consentimento à adopção e duas recebem o menor em adopção, em conformidade com os desejos dos seus pais biológicos/naturais.
    30. Este procedimento tem a sua origem em razões histórico-culturais. Em 1948, quando a Convenção foi assinada, o Peru era um país notoriamente patriarcal. O papel da Mulher no Perú era limitado à vida familiar e ao trabalho no campo. Só nos anos 90 do século XX é que a mulher começou a trabalhar no sector da indústria.
    31. Citam-se vários dispositivos do Código Civil Peruano de 1936 bastante explicativos desse contexto socio-cultural.
    32. É o marido quem dirige e representa a sociedade conjugal.
    33. Apenas nas necessidades ordinárias do lar, a sociedade conjugal poderia ser representada indistintamente pelo marido ou pela mulher e, quando esta "abusasse" desse poder, o mesmo poderia ser-lhe retirado a pedido do marido.
    34. A mulher apenas poderia exercer uma profissão se tivesse obtido o consentimento do marido.
    35. Citam-se artigos que caracterizam a época e reflectem o que se expos.
    36. A mulher simplesmente não tinha "categoria" ou "importância" suficientes para "celebrar convenções", daí que só o pai biológico e o pai adoptivo do Recorrente aparecessem nessa qualidade, num papel de destaque.
    37. A mãe biológica e a mãe adoptiva, que não teriam "dignidade" suficiente para celebrar uma convenção, surgiram apenas para dar o seu consentimento, assim cumprindo imperativos legais.
    38. Foi na qualidade de representante da sociedade conjugal que C aparece como interveniente principal, aquele que celebra a Convenção.
    39. Não há outro motivo que justifique que apenas o nome do pai biológico apareça no preâmbulo da Convenção, quando a participação e o consentimento de ambos os pais biológicos era necessária.
    40. A vontade manifestada pelos pais biológicos naquele acto de adopção era a de que ambos os seus "compadres" adoptassem o ora Recorrente, como verdadeiros pais.
    41. O consentimento dos pais biológicos era um imperativo legal e foi dado nos termos já descritos. A sua declaração de vontade é parte integrante do consentimento dado, pelo que, deve ser esse o conteúdo e a extensão do acto - a de o menor ser adoptado por ambos os. elementos do casal, sob pena de não estar a dar-se pleno cumprimento ao que foi consentido pelos pais biológicos do Recorrente.
    42. Pode ler-se na cláusula terceira da Convenção que a senhora E declarou que "não tem filhos do casamento, nem filhos ilegítimos, quer antes, quer depois do dito casamento".
    43. Se a Inventariada apenas interviesse no acto de adopção para prestar o seu consentimento, não assumindo o papel de adoptante, não haveria interesse para o direito peruano que esta declarasse não ter filhos ilegítimos anteriores ou posteriores ao casamento. Se a senhora E não estivesse também a adoptar o Recorrente, os seus hipotéticos descendentes não ficariam prejudicados com a adopção nos seus direitos sucessórias, porquanto o filho adoptivo do seu marido não seria seu (dela) herdeiro, já que, consabidamente, os afins não herdam.
    44. Citam-se os artigos do Código Civil Peruano de 1936 relativos à legitimação.
    45. Se, pela adopção do Recorrente, este apenas se tomasse filho legítimo do adoptante marido, senhor C (cfr. artigo 332° do Código Civil Peruano de 1936), de nada interessaria ao processo de adopção que a senhora E declarasse, como o fez na cláusula terceira da Convenção, que não tem filhos ilegítimos, quer antes, quer depois do casamento.
    46. Se o Recorrente só fosse adoptado pelo adoptante marido, então a senhora E apenas teria de declarar que não tinha filhos do casamento com C, pois, caso contrário, este não poderia adoptar o Recorrente, nos termos previstos no supra citado e traduzido artigo 319°, n.º 2 do Código Civil Peruano de 1936.
    47. A intenção de todas as partes intervenientes da Convenção foi a de que o Recorrente fosse adoptado por ambos os elementos do casal, tendo sido essa (i) a vontade manifestada pelos pais biológicos do Recorrente, sendo também esse (ii) o espírito do documento preparado e testemunhado pelo advogado, Dr. José I. Bastillo e (iii) a vontade de ambos os adoptantes.
    48. O Tribunal a qllo interpretou mala Direito que ao caso cabe - o Direito peruano aplicável em 1948.
    49. O sentido com que as normas supracitadas, que importam para a boa decisão da causa e que constituem o fundamento jurídico da decisão emitida no Despacho recorrido, deviam ter sido interpretadas e aplicadas é o sentido que o Recorrente lhes dá nas presentes Alegações de Recurso, e que têm em conta elementos histórico, teleológico e sociocultural.
    50. O Recorrente entende que os documentos por si juntos e as alegações vertidas nos seus Requerimentos são bastantes para fazerem prova de que a Inventariada era adoptante do cabeça-de-casal, ora Recorrente.
    51. A análise que acima de fez do conteúdo da Convenção permite concluir que a Inventariada ali figurou também como adoptante e que, com a sua celebração, o Recorrente adquiriu a qualidade de herdeiro da Inventariada.
    Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve-se:
    i. Corrigir o efeito atribuído ao recurso, atribuindo-lhe o efeito suspensivo, nos termos expostos;
    ii. Declarar a instância suspensa, nos termos expostos;
    iii. Mandar expedir ofício para a suspensão da execução do Despacho recorrido, nos termos expostos;
    Em todo o caso, e sem prescindir, acordar na alteração do despacho recorrido ou na sua anulação, substituindo-o por um outro que julgue verificada a qualidade do recorrente de herdeiro da inventariada, nos termos e com os fundamentos acima descritos, devendo os autos de inventário seguir os ulteriores termos do processo.
    
    II – FACTOS
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
    O recorrente requereu inventário, arrogando-se a qualidade de herdeiro da inventariada B, também conhecida por B.
     Nos presentes autos, resulta da "convenção de adopção" (fls. 21 e 22) que o cabeça-de-casal foi adoptado pelo C, com conhecimento e consentimento da ora inventariada, de nacionalidade chinesa, com quem casou no Peru, em primeiras e únicas núpcias de ambos.
    Foram juntas as normas e um parecer jurídico sobre o estabelecimento da relação adoptiva no ordenamento peruano.
    
    III – FUNDAMENTOS
    1. Do efeito do recurso
    Reponderando a decisão proferida tabelarmente pelo Juiz-relator, este Colectivo pronuncia-se no sentido de conceder razão ao recorrente, no que respeita ao efeito a dar ao recurso.
    Na verdade, a partir do momento em que o recurso subiu imediatamente e nos próprios autos, o efeito deve ser o suspensivo nos termos do art. 607º/1 do CPC, o que comporta apenas as excepções previstas no n.º 2.
    O despacho traduziu-se em remeter a parte, o requerente do inventário e ora recorrente, para os meios comuns, devendo este propor a acção de reconhecimento da qualidade de herdeiro, no prazo de 60 dias. No caso de o não fazer o processo aguardaria nos termos do art. 40º do RCT.
    A questão não deixa de ter algum efeito prático.
    Mas vejamos.
    Se o recurso tem efeito devolutivo (note-se que importa considerar dois tipos de efeitos: sobre o andamento do processo e sobre a decisão proferida), isso significa que o despacho deve ser obedecido, o que implica que o processo fica a aguardar por 60 dias e, se a acção não for interposta, o processo aguarda nos termos do art. 40º do RCT. Se o recurso vier a confirmar o decidido, ou a acção foi realmente proposta ou a processo ficou já aguardar. Se não for confirmada a decisão recorrida, essa decisão irá prejudicar a propositura da acção ou irá paralisar os efeitos que decorrem do art. 40º do RCT.
    Por outro lado, se o recurso tem efeito suspensivo, isso significará que a parte só terá de pôr a acção, depois dessa decisão recursória, se a acção vier a ser confirmada. Mas o processo também não anda até que seja proferida a decisão. Se o recurso confirmar o decidido, das duas uma: ou a parte põe a acção ou não; se põe a acção, o inventário aguarda; se não põe a acção, o inventário aguardará nos termos do art.40º do RCT.
    Entre os dois quadros, não se deixa de ter o delineado em primeiro lugar como mais gravoso, para além de que se mostra desconforme ao preceituado na lei processual, nos termos acima vistos. Pelo que se fixa ao recurso o efeito suspensivo.
    
    2. A questão
    O objecto do presente recurso passa, na sua génese, por saber se o requerente do inventário, A, é o herdeiro da falecida B, também conhecida por B, e, equacionado o “thema decidendum”, se essa indagação deve ser feita no processo de inventário.
    A questão assume contornos de alguma complexidade, visto o facto de a falecida, de nacionalidade chinesa, ter consentido na adopção do requerente do inventário, ora recorrente, importando saber da relevância e efeitos desse consentimento, se esse acto lhe confere o estatuto de herdeiro, se é fonte de uma relação jurídico-familiar entre o adoptado e a falecida, indagação essa que passa pelo apuramento do direito aplicável à luz das regras do direito internacional privado, vista a nacionalidade peruana do requerente e de seu pai adoptivo, Emilio Chian Sion, com quem a falecida, chinesa, casou, em primeiras e únicas núpcias de ambos, no Peru, no ano de 1963.
    O requerente impugna o despacho do Mmo Juiz que entendeu remeter o interessado para os meios comuns, defendendo aquele que essa questão é passível de ser decidida em processo de inventário.
    Quid júris?
    3. Foi do seguinte teor a decisão proferida:
    “Nos presentes autos, resulta da "convenção de adopção" (fls. 21 e 22) que o cabeça-de-casal foi adoptado pelo C, com conhecimento e consentimento da sua cônjuge, ora inventariada.
    Como o que foi exposto a fls. 56, pesa embora a inventariada tivesse dado o seu consentimento à adopção, do mesmo documento ~ªg resulta que a inventariada foi figuarda expressamente como adoptante do cabeça-de-casal.
    Assim, para se poder saber se o cabeça-de-casal deve também ser considerado como filho adoptivo da inventariada, que deu consentimento à adopção, fé de investigar, se, conforme a lei peruana vigente na altura e com a celebração de "convenção de adopção", a inventariada passou a ser mãe adoptiva do cabeça-de-casal.
    Analisadas as respectivas normas estipuladas no Código Civil peruano de 1936, não se consegue concluir peremptoriamente nesse sentido.
    Recorde-se que, nos termos do disposto no art. 341º n.º 1 do CC, àquele que invocar direito consuetudinário ou direito exterior ao território de Macau compete fazer a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento.
    Foi junto pelo cabeça-de-casal o parecer jurídico a fls. 153 e ss.
    Salvo melhor opinião, somos de opinião de que o cabeça-de-casal ainda não logrou provar que com a celebração da "convenção de adopção", ele adquiriu a qualidade de herdeiro da inventariada.
    Tal como já referimos; a inventariada não foi expressamente figurada como adoptante na referida convenção, limitando-se, conforme os e1ementos textuais da convenção, a dar o seu consentimento.
    Que efeito é que produz esse consentimento?
    Não foi invocada uma norma que expressamente confirme que a esposa, quem dava o seu consentimento à adopção, adquiriria também a qualidade da mãe adoptiva.
    No parecer jurídico junto pelo cabeça-de-casal também não foi citada nenhuma doutrina ou jurisprudência nacional peruana que apoia a tese do cabeça-de-casal.
    Antes pelo contrário, nos termos do disposto no art. 329º e 333º do referido Código Civil Peruano, "Ninguno puede ser adoptado por más de una persona, a no ser por los dos cónyuges.1” e "E1 parentesco proveniente de la adopción se limita al adoptante y al adoptado y a los descendientes legítimos de éste.”2. Estas normas sugerem a ideia de que uma pessoa pode ser adoptada por dois cônjuges, que é uma situação diferente de uma adopção por um dos cônjuges com o conhecimento e consentimento de outro; e que a relação parentesco proveniente de adopção é apenas uma relação entre o adoptante e o adoptado.
    Assim, não se pode considerar cumprido o ónus de prova do cabeça-de-casal no sentido de que, conforme a respectiva norma peruana, ele deve ser considerado herdeiro da inventariada.
    Recorde-se que a matéria de adopção era desconhecida no Código de Seabra, e que, conforme o Código Civil actual do nosso foro, a esposa que dá consentimento para que a outra adopte um filho não adquire também a qualidade de adoptante. Por tanto, se se recorremos às regras do direito comum de Macau, o resultado vai sempre contra a posição do cabeça-de-casal.
    Contudo, mesmo que o cabeça-de-casal não consegue comprovar o conteúdo do ordenamento jurídico peruano para apoiar a sua tese, também não temos, nestes autos de inventário, prova que permite concluir peremptoriamente que o cabeça-de-casal não é herdeiro da inventariada.
    Assim, porque o afastamento da qualidade do cabeça-de-casal como herdeiro de inventariada por forma definitiva nestes autos de inventário implica a redução das garantias do cabeça-de-casal, remetemos o cabeça-de-casal para os meios comuns, visto que a complexidade da matéria torne inconveniente a decisão incidental no inventário.
    Aguarde a interposição da acção por parte do cabeça-de-casal por 60 dias, devendo o cabeça-de-casal juntar a certidão para comprovar a interposição da acção.
    Se findo o prazo e nada foi dito pelo cabeça-de-casal, os autos aguardarão pelo impulso processual do cabeça-de-casal, sem prejuízo do disposto no art. 40º do RCT.”
    
    4. Para além do que vem dito pouco mais haverá a acrescentar.
    A questão assume contornos de alguma complexidade, no particular aspecto respeitante ao apuramento e interpretação do regime aplicável, havendo que indagar se algum dos direitos em conexão com o presente caso permite estender o vínculo familiar da adopção ao cônjuge que se limitou a consentir na adopção.
    Tanto mais que, estando em causa, aparentemente, apenas um interessado particular no inventário, esse interesse pode conflituar eventualmente com o interesse e com os direitos das restantes classes de sucessíveis na titularidade da herança.
    Note-se que não está aqui em causa apurar se o requerente cabeça de casal é ou não herdeiro da falecida, mas somente o de apurar se esse apuramento se compagina facilmente com um fácil deslindamento em sede de inventário. Atente-se ainda que alguma coisa não deixou de ser feita naquele processo, não se podendo concluir no sentido de que a solução encontrada foi a mais fácil, qual seja a de “chutar para o lado”. Não. Houve a preocupação, como se observa até do despacho de fls 56, em fazer instruir o processo com elementos que habilitassem a uma correcta decisão.
    Acresce que o parecer jurídico e a legislação que foi junta até parecem contraditórios. O Mmo Juiz não se furtou a essa análise. Concluiu apenas que a questão era mais complexa e devia ser decidida por via dos meios comuns.
    Somos, pois, a sufragar esse entendimento, atento o disposto no art. 970º/ 1 e 2 do CPC, pelo que, além do mais que vem dito, ainda com fundamento no disposto no art. 631º/5 do CPC, negar-se-á provimento ao recurso.
    
    IV – DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 2 de Março de 2017,
Joao A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Jose Candido de Pinho


1 Tradução portuguesa: "Ninguém pode ser adoptado por mais de uma pessoa, a não ser pelos dois cônjuges."
2 Tradução portuguesa: "O parentesco proveniente da adopção se limita ao adoptante e ao adoptado e aos descendentes legítimos deste."
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