Processo n.º 400/2016
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 16/Março/2017
ASSUNTOS:
- Responsabilidade pelo pagamento de rendas feito pelo cônjuge com fundamento em venda não autorizada de bem comum do casal
SUMÁRIO :
O réu não está obrigado a pagar as rendas de uma casa em Zhuhai, na pendência do casamento, e outra, em Macau, após o divórcio, se não se comprova o nexo causal entre o facto ilícito da venda de um bem comum do casal e tais arrendamentos, isto é, não se comprovando que esses arrendamentos feitos pela autora, sua mulher e ex-mulher, decorreram de uma necessidade que seria satisfeita com a não celebração daquela venda, restando ainda dúvida sobre a ilicitude de uma venda que é feita por impossibilidade de pagamento do empréstimo bancário.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 400/2016
(Recurso Civil)
Data : 16/Março/2017
Recorrente : - B
Recorrido : - C
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. B, a Autora no processo acima referido, identificada nos autos acima referidos (doravante designada como "recorrente"), notificada sobre a admissão do recurso da sentença que absolveu o ex-marido por despesas feitas com arrendamentos, imputando-lhe a responsabilidade pelos mesmos por aquele ter vendido sem seu consentimento bem comum do casal, vem alegar para tanto, o seguinte, em termos conclusivos:
a) A fracção mencionada na decisão recorrida era antes a única residência da recorrente e do Réu; e foi decidido adquiri-la para o uso de habitação familiar, a fim de fazer os preparativos para a vinda da filha, antes de esta ter nascido.
b) De Julho de 2001 a Junho de 2005, o Réu arrendou esta fracção a outrem, Por causa disso, quando a recorrente voltou a Macau com a filha de 8 meses nem tinha lugar para viver.
c) Mais tarde, em Janeiro de 2005, o Réu vendeu a fracção; a Recorrente não sabia nada disso.
d) O Réu defendeu que os dois não tinham habitação comum de família em Macau; isso foi verdadeiramente mentira. Mais tarde, a Recorrente veio a Macau por várias vezes; tinha casa aonde não podia voltar.
e) Este apartamento não foi adquirido pelo Réu sozinho; a Autora também partilhou no pagamento inicial e nos impostos.
f) A Recorrente perguntou ao Réu várias vezes; e o Réu disse sempre que estava a pagar as amortizações para o apartamento pontualmente; portanto, a Recorrente não sabia que não tinha pago por vários meses.
g) A Recorrente não sabia que o Réu já não tinha pago as amortizações para o apartamento por vários meses. Eis porque o Réu dizia sempre à Recorrente que estava a pagar as amortizações para o apartamento; e o Réu nunca pagou quaisquer alimentos à filha dele; até disse à Recorrente que, para pagar as amortizações para o apartamento, não tinha dinheiro para pagar os alimentos.
h) O Réu disse também que, pela necessidade de pagar as amortizações para o apartamento, não tinha dinheiro para pagar os alimentos. Portanto todos os alimentos da filha foram pagos pela Recorrente sozinha.
i) Mais tarde quando a Recorrente tomou conhecimento da verdade, o Réu já tinha pagamentos para o apartamento em atraso e tinha vendido o apartamento.
j) O Réu também mentiu e disse que tinha vendido a casa a apenas MOP$516,000, mas foi verificado que era antes a HKD$698,000; o mentiroso Réu disse que não tinha obtido interesse, isso não foi verdade; na realidade o Réu obteve interesses no montante de MOP$333,696.96.
k) Quando o Réu adquiriu a casa, já era casado; no entanto, adquiriu o apartamento usando o BIR que mostrava que era solteiro; quando vendeu o apartamento, também o fez como um solteiro.
l) Independentemente de o Réu ter ou não adquirido o apartamento sozinho, esse foi sempre uma propriedade pós-nupcial, e era a única residência da Recorrente.
m) Portanto, o Réu vendeu de forma oculta, não pagou as amortizações para o apartamento, não pagou os alimentos; até apropriou-se sozinho dos interesses obtidos através da venda do apartamento; isso na realidade trouxe prejuízos aos interesses da Recorrente.
n) Portanto, nos factos provados, lê-se que o Réu vendeu a casa não a MOP$516,000, mas antes a HKD$698,000; na realidade o Réu obteve interesses no montante de MOP$333,696.96.
o) Além disso, tendo em conta a necessidade de alugar apartamentos desde agora até à chegada da maioridade da descendente, as rendas devem ser apresentadas e contadas com base em contrato de arrendamento anual.
p) Nestes termos, pede aos Mm.ºs Juízes do tribunal colectivo do TSI julgar procedentes os fundamentos atrás mencionados defendidos pela Recorrente (parte dos factos deve ser julgada como provada, e que existe erros no exame de provas), revogar a decisão recorrida, substituindo-a com uma outra que dê provimento ao requerimento da Recorrente, e que julgue todos os requerimentos da Recorrente procedentes.
2. Este recurso não foi contra-alegado.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“- No dia 25 de Junho de 1999 a Autora e o Réu contraíram casamento um com o outro em Macau, sem convenção antenupcial. (alínea A) dos factos provados)
- No dia 25 de Junho de 2001 nasceu, em Macau, uma filha da Autora e do Réu. (alínea B) dos factos provados)
- Em 21 de Junho de 2001, o Réu adquiriu a fracção autónoma de prédio urbano, para habitação, designada por M, do 16.º andar, do Edf. "...... Garden", Bloco ..., sito na Avenida ...... da Taipa, Macau, por MOP $638.600,00. (alínea C) dos factos provados)
- Por escritura pública celebrada em 06/01/2005, o Réu vendeu o referido imóvel. (alínea D) dos factos provados)
- E recebeu a totalidade do preço - MOP$516.000,00. (alínea E) dos factos provados)
- No ano de 2008, a relação conjugal da Autora e Réu foi dissolvida por divórcio decretado por sentença proferida no processo de divórcio litigioso n.º CV1-06-0014-CDL do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base. (alínea F) dos factos provados)
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A base instrutória:
- A partir de 20 de Janeiro de 2007 até 20 de Julho de 2008, a Autora arrendou um apartamento em Zhuhai para viver com a filha. (n.º 4 da base instrutória)
- A renda mensal do apartamento atrás mencionado era de RMB$3.800,00. (n.º 5 da base instrutória)
- Pelo arrendamento de tal casa de Zhuhai a Autora despendeu a quantia total de MOP$68.400,00 em pagamento de rendas ao senhorio. (n.º 7 da base instrutória)
- Entre Agosto de 2008 e Julho de 2012 a Autora arrendou uma fracção autónoma em Macau para viver com a filha. (n.º 8 da base instrutória)
- A renda mensal da tal fracção era de MOP$4.473,00. (n.º 9 da base instrutória)
- A autora pagou a quantia total de MOP$214.704,00 a título de rendas de tal imóvel. (n.º 10 da base instrutória)
- Em Agosto de 2012 a Autora celebrou novo contrato de arrendamento pela renda mensal de MOP$6.500,00. (n.º 11 da base instrutória)
- Desde Agosto de 2012 até à dedução da presente acção (Maio de 2013) a Autora pagou a quantia total de MOP$58.500,00 a título de rendas. (n.º 12 da base instrutória)
- O Réu adquiriu a fracção ora em causa com o recurso a crédito bancário e vendeu-a para pagar o remanescente do empréstimo bancário. (n.º 18 da base instrutória)
- A Autora sabia que o Réu iria vender a fracção autónoma. (n.º 19 da base instrutória)
- A Autora tinha conhecimento das dificuldades que o Réu enfrentava economicamente e que a venda do imóvel foi unicamente devida ao facto de o Réu não ter conseguido a pagar o empréstimo bancário (n.º 20 da base instrutória)
- O Réu vendeu a fracção autónoma e pagou as amortizações em falta. (n.º 21 da base instrutória)
- A Autora sabia que tinha sido o Réu a adquirir sozinho a fracção autónoma em causa e que estava em sérias dificuldades para pagar o mútuo contraído para o efeito e com prestações bancárias em atraso. (n.º 23 da base instrutória)
- Com a realização da venda, o Réu pagou o empréstimo bancário. (n.º 25 da base instrutória)”
III – FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa, fundamentalmente, por saber se há lugar à indemnização à autora pelo pagamento das rendas por si pagas, por casas arrendadas em Zhuhai e em Macau, e se essa despesa foi causada por acto ilícito praticado pelo réu, concretizado na venda de um bem comum do casal e alegadamente casa de morada de família.
No fundo, o que importa apurar é saber se o réu é responsável pelo pagamento das rendas pagas pela sua mulher, por ele ter vendido um bem comum do casal, por ser aí que a mulher vivia ou projectava viver e por esta se ter visto, por causa daquela venda, na necessidade de efectuar aquele concreto arrendamento.
2. A questão podia revestir alguma complexidade, se os factos alegados e configurados, ainda aqueles que se pudessem adivinhar, viessem comprovados.
Importa registar, desde já, e para que não haja quaisquer dúvidas em relação à singeleza da abordagem que vamos tomar, que a recorrente não impugna a matéria de facto, seja na vertente de entender que não se comprovaram factos que o deviam ter sido, quer na vertente de que foi comprovada matéria que o não devia ter sido.
Os factos estão fixados, tal como resulta do elenco acima descrito.
3. Para melhor enquadramento da questão que se coloca passamos a transcrever a parte relativa à fundamentação jurídica da douta sentença recorrida (trad. sic):
“Através da presente acção, com o motivo de que o Réu vendeu a residência da família, sem ela ter tomado conhecimento, o que levou ao seu pagamento de rendas imobiliárias extra, a Autora requer que o Réu lhe pague as rendas já pagas e por pagar, a os respectivos juros.
Segundo relata a petição inicial da Autora, aos 25 de Junho de 1999, a Autora e o Réu casaram-se através de registo em Macau, sem ter fixado acordo antenupcial. Nos termos legais, o regime de bens dos dois eram o regime supletivo de bens. O filho menor dos dois nasceu aos 25 de Junho de 2001 em Macau. Aos 21 de Junho de 2001, o Réu adquiriu uma fracção de habitação "M16", do Edf. "...... Garden", sito na Avenida ...... da Taipa, ao preço de MOP$638,600.00, como a residência da família das três pessoas. Mais tarde, aos 6 de Janeiro de 2005, sem a Autora saber disso, ele vendeu-a a um terceiro; e quando assinava na escritura pública, mentiu e disse que não era casado; e tomou sozinho o preço total de MOP$516,000.00; a Autora afirmou que "M16" era na altura a única habitação da família; antes de vender a fracção, o Réu devia ter adquirir o consentimento da Autora, e ele sabia que se vendesse a fracção, então a família toda ia procurar um outro lugar para viver através de arrendamento. Só que o Réu ocultou o facto de propósito, e tomou a liberdade de vender a "M16", e fez declarações falsas; só aos 30 de Junho do mesmo ano é que a Autora tomou conhecimento do acontecimento. Além disso, a relação matrimonial entre a Autora e o Réu foi extinta em 2008 através da sentença do TJB dos autos n.º CV1-06-0014-CDL. Para resolver o problema de habitação com o filho menor, desde 2005 até à dedução da presente acção até o dia 30 de Maio de 2013, a Autora tinha sempre a necessidade de alugar uma casa para viver. A Autora afirmou que, nos termos do art.º 477.º, n.º 1 do CC, o Réu, por causa do seu acto culposo, violou direitos da Autora, portanto deve tomar a responsabilidade de indemnizar os danos sofridos por ela.
Na contestação, o Réu afirmou que, em Julho de 2001, a Autora tomou a liberdade de levar a filha fora de casa e mudou para viver em Zhuhai; desde então, nunca mais voltaram a viver juntos. Antes de 30 de Junho de 2005, quando as autoridades de Macau emitiram o BIRM ao Réu (sic.), só vinha a Macau ocasionalmente, e não morava em Macau. Portanto, os dois não tinham qualquer habitação comum da família em Macau; a fracção autónoma em causa nunca foi a habilitação da família das duas partes.
O Réu complementou: na altura vendeu a fracção "M16" porque não conseguia pagar as prestações bancárias por dificuldades financeiras; então precisava de vender a fracção para obter numerários para reembolsar o crédito bancário para habitação. Mais tarde, o Réu já entregou o dinheiro da venda da fracção ao banco para liquidar o pagamento em falta; e não obteve interesses através disso. Na realidade, a Autora sabia que "M16" tinha sido adquirida pelo Réu sozinho, e sabia das suas situações financeiras e da intenção da venda da fracção; portanto não se mostrava contra disso. Para tal, as duas partes assinaram um acordo de forma não oficial, o Réu prometeu pagar à Autora MOP$5,000.00 todos os meses, até 2020, como preço da fracção.
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O fundamento de relevância com o qual a Autora deduziu a presente acção era: os dois tinham a relação conjugal; na duração do matrimónio entre os dois, na circunstância de a Autora não sabia de nada, o Réu vendeu a residência da família das duas partes; isso fez com que a Autora e a filha das duas partes perdessem o lugar para viver. Portanto a Autora precisava de procurar para as duas pessoas um lugar para viver e pagar rendas extra todos os meses.
A Autora entende que as circunstâncias acima referidas estão conforme com a previsão no art.º 477.º do CC sobre a responsabilidade civil.
Nos termos desta previsão, " 1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei. "
Nestes termos, a Autora precisava de provar que, baseando nos factos acima referidos, o Réu praticou actos ilegais de forma culposa, e isso fez com que a Autora sofresse alguns prejuízos; e que entre os seus actos e os prejuízos da Autora, existe um nexo de causalidade.
Segundo a pretensão da Autora, o facto ilegal culposo consistiu em que: na situação de a Autora não saber disso, o Réu vendeu a habitação da família dos dois, os prejuízos sofridos pela Autora era as rendas de habitação dela e da filha, desde Janeiro de 2005.
Nos termos acima referidos, a primeira questão a estudar no presente caso é se o Réu praticou os actos acima referidos e se esses factos foram ilegais.
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Na contestação, o Réu afirmou que, apesar de os dois eram marido e mulher, a Autora foi-se embora de casa em Junho de 2001, e mudou para viver no Interior da China com a filha, até 30 de Junho de 2005. Entretanto vinha a Macau raramente. A partir dessa pretensão pode-se ver que quando o Réu vendeu a fracção autónoma em causa, as duas partes não viviam como hábito no mesmo lugar.
Por causa das circunstâncias acima referidas, este tribunal deve primeiramente considerar se à questão apresentada pela Autora, se aplica a lei de Macau.
Em relação à previsão no art.º 477.º acima referido, nos termos do art.º 44.º, n.º 1 do CC, " A responsabilidade extracontratual fundada, quer em acto ilícito, quer no risco ou em qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do lugar onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo; em caso de responsabilidade por omissão, é aplicável a lei do lugar onde o responsável deveria ter agido."
Portanto, aos actos de violação de direito, aplica-se a lei de Macau.
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Em relação a se o acto da venda foi ilegal, prevê o art.º 1548.º, n. 2 do CC,
Carece do consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração, locação ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis ou empresa comercial comuns.
No entanto, se esta previsão se aplica ao presente caso, necessita-se estudar o art.º 50.º do CC.
O Réu mencionou que desde Junho de 2011 (sic.) a Junho de 2005 a Autora tinha vivido sempre no interior da China, e vinha bastante raramente a Macau; apesar disso, essa pretensão não foi provada.
No presente caso, não há qualquer informação mostrando se o lugar de coabitação das duas partes era ou não em Macau.
Os factos provados mostram que as duas partes se casaram em Macau; a filha também nasceu em Macau. Segundo estes factos, pode-se inferir que Macau era o lugar estreitamente relacionado com a vida de família das duas partes; portanto, em relação à questão acima referida, aplica-se a lei de Macau.
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Segundo atrás referiu, ora necessita conhecer da questão de se o Réu vendeu a habitação da família ilegalmente.
Quanto a esta parte, a Autora só conseguiu provar que: a Autora e o Réu casaram-se em Macau aos 25 de Junho de 1999; aos 21 de Junho de 2001, o Réu adquiriu uma fracção de habitação "M16", do Edf. "...... Garden", sito na Avenida ...... da Taipa, ao preço de MOP$638,600.00; a filha dos dois (mencionado como "filho" erroneamente na petição inicial) nasceu em Macau aos 25 de Junho de 2001; aos 6 de Janeiro de 2005, o Réu vendeu a "M16" e obteve o preço de MOP$516,000.00; em 2008, a relação matrimonial entre as duas partes foi extinta através da sentença do 1.º Juízo Cível do TJB dos autos n.º CV1-06-0014-CDL.
O facto de o bem imóvel em causa era a habitação de família das duas partes e a total ignorância da Autora em relação ao acto de alienação feito pelo Réu não foram provados; quanto à parte de se a Autora tinha tomado conhecimento, porém, este tribunal entende que a Autora sabia que a fracção tinha sido adquirida pelo Réu sozinho, e sabia da situação de que por dificuldades financeiras, já não tinha pago amortizações bancárias por vários meses, e que não tinha a capacidade de continuar a pagar as prestações; e que tinha a necessidade de vender a fracção para conseguir liquidar o pagamento em falta ao banco.
Como a Autora não provou se a fracção autónoma vendida pelo Réu era a habitação de família das duas partes e a total ignorância da Autora em relação ao acto da venda, este tribunal não pode considerar o acto de venda do Réu como ilegal.
Portanto, de qualquer forma não se pode estar convicto de que o Réu tenha praticado actos ilegais que violassem direitos da Autora, e que lhe trouxessem alguns prejuízos, ou seja, o nexo de causalidade acima referido.
Com base nisso, este tribunal não precisa analisar mais se no presente caso os outros requisitos de responsabilidade civil estão satisfeitos, e julga os requerimentos da Autora improcedentes.”
4. A autora radica o seu pedido na responsabilidade extracontratual baseada em facto ilícito, com base no disposto nos artigos 477º/1, 556º, 558º/1 e 2.
Não invoca qualquer violação ao direito de morada de família, optando por radicar a ilicitude da conduta em venda de imóvel por banda do réu, bem comum do casal, sem seu consentimento.
Há aliás uma divergência na narrativa delineada na petição e aquela que agora produz, em sede de alegações, chegando a ser pungente o quadro descrito de que, regressada do interior da China, teve de ficar à porta de casa, durante uma noite com o filho de tenra idade e a mãe de idade avançada.
Mas onde está a prova de quanto diz?
Trata-se de matéria controvertida, afirmando o réu que a autora, depois de ter dado à luz foi “descansar” uns tempos para casa dos pais, na China Continental e que, em boa verdade, no período de 2011, data da compra da casa, até ao momento da sua venda, em 2015, a autora não habitou ali.
Ficamos sem saber da razão por que não habitou naquela casa, talhada para ser, presumivelmente, a casa da morada de família. Foi porque não quis, porque não pôde, porque a casa foi arrendada?
Como se explica que a autora continue a reclamar indemnização das rendas já depois da dissolução do casamento, não tendo sido qualquer dos cônjuges declarado culpado na sentença do divórcio?
Ademais, se já por decisão proferida nesta instância, lhe foi reconhecido o direito a metade do produto da venda, correspondente à sua meação, venda a que o réu se viu forçado por não ter meios de continuar a pagar o financiamento granjeado junto do banco?
5. É consabido que a responsabilidade por factos ilícitos pressupõe a existência daa ilicitude, que é a desconformidade entre a conduta devida e a observada, a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto e o prejuízo.1 E só há responsabilidade civil independente de culpa nos casos especificados na lei, como diz o art. 477/2 do CC.
A ilicitude não reside aqui no facto de o réu ter vendido a casa, dizendo-se solteiro, - facto pelo qual já foi julgado e condenado -, mas sim por ter vendido, sem autorização, bem comum – cfr. art. 1548º/1 do CC.
Na douta sentença proferida fez-se o excurso justificativo da exclusão da ilicitude por não se ter provado que o bem imóvel era a habitação da família e por não se ter por provada a total ignorância da autora em relação ao acto de alienação, antes pelo contrário, se tendo dado como assente tal conhecimento e que a autora sabia que o réu iria vender a fracção, que tinha conhecimento das dificuldades que ele enfrentava, que não conseguia pagar o empréstimo bancário, que sabia que fora ele a comprar sozinho aquela casa e que com a realização da venda o réu pagou o empréstimo bancário.
6. Com todo o respeito pelo douto entendimento vertido na sentença, tal factualidade não afasta a ilicitude que resulta da venda de um bem comum, sem autorização do cônjuge, ainda que esse negócio se confirme na ordem jurídica por não ter sido requerida a sua anulação. Está em causa a violação do direito subjectivo que resulta da atribuição da titularidade estabelecida em função da comunhão desse bem, em relação ao cônjuge que se sente lesado e que não consentiu na venda, não parecendo haver dúvidas que a norma estabelece directamente a protecção do interesse da parte lesada com a conduta desconforme àquela que era devida. Lesão que não deixará de se repercutir, desde logo, sobre o bem jurídico que aquela norma visa proteger, como não deixará de abranger outros prejuízos que dessa alienação possam advir.
Diferentes serão as coisas, na análise deste requisito relativo à ilicitude, se esta é afastada por uma premência tal que justifique essa ilicitude. Estamos a configurar a hipótese, para onde aponta a matéria de facto, que vem comprovada, e nos diz que o réu foi obrigado a vender a casa por não ter meios ou possibilidade de satisfazer o empréstimo bancário. Aí, como está bem de ver, esse acto de disposição reverteria ainda numa boa administração do património conjugal, sob pena de ruína e de o reú, senão também a autora, se alcandorarem numa situação de eventual insolvência. Mas não vamos entrar por aí, à míngua ainda de factos que com alguma certeza pudessem justificar esta leitura, tanto mais que a falta de outros requisitos indispensáveis à verificação da responsabilidade civil não se mostram de todo comprovados, como adiante se verá.
Não obstante não vir comprovada a falta de consentimento na alienação da coisa, não é preciso fazer grande ginástica para considerar que esse requisito não se observa, não só em função da própria posição do réu, como pelo facto de a escritura de venda ter sido outorgada, arrogando-se o réu como solteiro, ousadia, aliás, por que pagou já criminalmente.
Somos, assim, a apartarmo-nos do entendimento que desconsiderou o preenchimento do requisito atinente à ilicitude, salvaguardando ainda a possibilidade de se considerar a sua exclusão em vista da uma necessidade imperiosa de venda da coisa.
7. A tónica, para nós, vai no sentido de reconhecer uma manifesta falta de comprovação de que as despesas com o pagamento das rendas traduzem um dano emergente e causal da venda feita pelo réu. Como se assinalou já, nada na matéria comprovada na sentença recorrida ou dos documentos juntos aos autos autoriza a concluir no sentido confirmativo da tese da autora, versão desmentida nos articulados do réu.
Para além de que – matéria que continua por confirmar – perpassa pelas alegações produzidas, que, durante o período que intermediou a compra e a venda da casa, esta esteve arrendada, rendimentos a que a autora poderia aspirar, em tese, e, ainda aí, sobre isso, nada se reclama e nada se comprova. Esta configuração, apenas para vincar a escassez de factualidade atinente à comprovação de um dano emergente dos arrendamentos como determinados pela dissolução do património conjugal.
O arrendamento feito pela autora, sem mais, não significa que traduza necessariamente um dano. Há variadíssimas explicações que podem estar na génese desse negócio, abstractamente considerado um acto de administração e que pode ser motivado por uma necessidade, por uma exigência, por um capricho, por um luxo. Imaginemos que foi a autora que não quis viver na casa do marido, que preferiu ir viver para Zhuhai, por razões de trabalho, de proximidade com familiares, por razões de maior facilidade, económica ou outras. Nada se sabendo sobre essa motivação e sobre a razão de ser desses contratos e despesas é justo que seja o marido e ex-marido a pagar esses custos, porventura unilateral e espontaneamente assumidos pela autora? Não negamos que o pudesse ser; apenas dizemos que a matéria de facto que comprovada vem é muito curta para esse efeito.
8. Razão por que, na falta de comprovação do nexo causal entre as rendas pagas em Zhuhai e em Macau e a venda do bem comum do casal, ou seja, não se comprovando que aqueles arrendamentos foram feitos por causa da venda da casa, como sendo causadas tais despesas pela alienação da referida fracção, senão mesmo em função da sua natureza enquanto dano, somos a manter o decidido, ainda que com diferente fundamentação.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando, com os fundamentos acima expostos, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente que litiga com apoio judiciário.
Macau, 16 de Março de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Antunes Varela, das Obrigações em Geral, II, 2.ª ed., 91
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