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Rec. nº 109/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 16 de Março de 2017
Descritores:
-Acidente de trabalho
-Presunção de acidente

SUMÁRIO:

I. Para se presumir que a lesão ou doença são consequência de acidente de trabalho é preciso que uma ou outra se verifiquem no local e tempo de trabalho.

II. Todavia, mesmo que tenha a seu favor tal presunção, o trabalhador não está dispensado da prova do nexo causal entre acidente e a incapacidade.







Proc. nº 109/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
B (B), com os demais sinais identificadores nos autos, representada pelo Ministério Público, intentou no juízo laboral do TJB (Proc. nº LB1-14-04508-LAE) acção especial emergente de acidente de trabalho contra a “C Insurance (Hong Kong) Limited”, pedindo que a Ré lhe pague a quantia de MOP 1.337.408,00 a título de indemnização pela I.P.P., indemnização por I.T.A. e despesas médicas e medicamentosas, acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento.
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Na oportunidade foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente prova e procedente, tendo sido a ré condenada a pagar à autora a quantia global de MOP 1.005.141,77 a título de indemnização por 730 dias de ITA (129.777,777), a título de indemnização pela IPP sofrida de 70% (739.200,00) e a título de despesas médicas e medicamentosas (136.164,00).
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Contra tal sentença vem a ré insurgir-se no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1.ª O presente recurso vem interposto da sentença final de fls. 193-204 dos autos, a qual condenou a recorrente a pagar à sinistrada a quantia de MOP$1,005,141.77.
2.ª A recorrente discorda da decisão porque entende que inexiste acidente de trabalho digno da tutela do regime jurídico da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 40/95/M.
3.ª Aponta ainda a recorrente um vício de erro notório na apreciação da prova, especificamente na resposta oferecida ao quesito 2.º da Base Instrutória.
4.ª O recurso vem também interposto contra a decisão atingida no apenso para a fixação da incapacidade para o trabalho, nos termos consentidos pelo art. 74.º, n.º 3 do Código de Processo de Trabalho.
5.ª A recorrente discorda da decisão recorrida na medida em que esta descortinou nos factos carreados aos autos um acidente de trabalho, onde este efectivamente não ocorreu.
6.ª Como resulta da fundamentação de facto da decisão recorrida, não se encontra descrito em lado algum um acidente de trabalho, pelo que não se deve procurar no Decreto-Lei n.º 40/95/M a solução para a patologia manifestada pela autora, ora recorrida.
7.ª Tampouco a doença sofrida pela sinistrada vem prevista na lista de doenças profissionais anexa ao Decreto-Lei n.º 40/95/M, pelo que não se pode imputar à relação laboral a patologia de que padece.
8.ª A acção especial emergente de acidente de trabalho pressupõe, pela sua própria natureza, a existência de um acidente de trabalho.
9.ª O evento experienciado pela autora não tem qualquer relação com a sua relação laboral, excepto a coincidência de a sua patologia se ter manifestado durante o horário e no local de trabalho.
10.ª Parece desnecessário estar a salientá-lo mas no fundo é uma questão de extrema relevância saber se existiu, em primeiro lugar, um acidente.
11.ª A questão pertinente não escapou ao meritíssimo juiz laboral do Tribunal a quo, tendo o mesmo consignado expressamente na sentença recorrida que relatou que não existiu um acidente na acepção clássica do termo.
12.ª Do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011, extensamente citado na sentença recorrida, resulta que em situações limítrofes se deve - no mínimo - comprovar o nexo de causalidade entre o acidente (e não as lesões) e o trabalho, o que, ressalvado o devido respeito não resulta da factualidade comprovada.
13.ª O meritíssimo juiz do Tribunal a quo, após a citação que faz do acórdão proferido pela Suprema instância da República de Portugal, limita-se a aludir ao art. 10.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 40/95/M para defender que existiu efectivamente acidente de trabalho.
14.ª A alusão a tal normativo toma redundante a exposição citada da jurisprudência portuguesa.
15.ª O art. 10.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, sob a epígrafe “prova do acidente”, faz apenas presumir o nexo de causalidade, nas circunstâncias aí discriminadas, entre as lesões ou doenças contraídas pelo trabalhador, mas não o acidente em si.
16.ª O acórdão português citado sempre impõe a demonstração de uma conexão, ou de um nexo de causalidade, entre a relação laboral e as lesões, devendo estas ser consequência daquela.
17.ª A sentença recorrida fica aquém de o comprovar, porque efectivamente não existem elementos nos autos que revelem ser o acidente consequência do trabalho prestado.
18.ª Sempre deve a recorrente, defender, por cautela de patrocínio, que existiu um erro notório na apreciação da prova, designadamente na resposta oferecida ao quesito 2.º.
19.ª Não resultou de qualquer depoimento produzido em audiência que a sinistrada estivesse minimamente cansada devido ao trabalho prestado, muito pelo contrário.
20.ª É salutar salientar também que o acidente ocorreu onze minutos depois de a sinistrada ter dado entrada ao trabalho, pelo que também não se pode presumir que a patologia se deveu a um cansaço extra no trabalho ou na véspera de Natal.
21.ª A primeira testemunha D, adjunto-técnico da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, no seu depoimento, salientou o facto de a sinistrada ter começado a trabalhar às onze da noite e mais disse que a patologia se manifestou onze minutos mais tarde.
22.ª O mesmo resulta do documento n.º 2 junto com o requerimento de prova junto pela recorrente aos autos a 31 de Março de 2016.
23.ª A testemunha D também não conseguiu descortinar qualquer relação entre o trabalho prestado e a doença sofrida pela autora.
24.ª Mais referiu esta testemunha que não sabe da existência de qualquer trabalho acrescido na época e que nunca ouviu qualquer menção de que a sinistrada estivesse cansada ou sobrecarregada.
25.ª O pai da autora referiu que a sinistrada não padecia de qualquer problema, tendo falado aliás com ela no próprio dia do incidente, por volta das nove horas da noite e tendo ela dito que estava tudo normal e que não havia problema algum.
26.ª A terceira testemunha, F, superior dela no trabalho, efectivamente referiu que havia mais trabalho por volta da altura de Natal, mas não referiu que a sinistrada estava mais cansada devido ao mesmo.
27.ª Esta testemunha referiu aliás que a sinistrada nunca apresentou qualquer queixa devido a trabalhar no turno da noite.
28.ª A testemunha F descreveu minuciosamente em que consistia o seu trabalho.
29.ª O trabalho da autora era atender telefonemas e quanto muito ajudar os colegas a preparar o carrinho das refeições que eram conduzidos aos quartos dos hóspedes de hotel.
30.ª Não se pode presumir que tal trabalho obrigasse a um esforço considerável que pudesse despoletar as consequências nefastas verificadas neste incidente.
31.ª As restantes testemunhas não depuseram nada de relevante acerca deste facto.
32.ª Não é razoável presumir que o tipo de trabalho prestado pela autora possa estar na origem de uma hemorragia cerebral. O Tribunal a quo retirou, ressalvado o devido respeito, conclusões que extravasaram o depoimento das testemunhas.
33.ª A única conclusão fáctica que o Tribunal podia oferecer na resposta ao quesito 2.º é que na altura de Natal, como de resto é de conhecimento geral, o volume de trabalho aumenta, não podendo concluir, porque não dispunha de elementos para tal, que o ritmo era cansativo.
34.ª Tudo isto pode ser confirmado pela leitura da transcrição integral dos depoimentos prestados em audiência.
35.ª A recorrente, na contestação que apresentou, não tendo concordado com a fixação das incapacidades temporária absoluta (ITA) e permanente parcial (IPP) requereu, nos termos consentidos pelos arts. 71.º e ss. do Código de Processo de Trabalho, fosse determinada a realização de exame por junta médica.
36.ª A recorrente, nos termos consentidos pelo art. 73.º, n.º 2 do Código de Processo de Trabalho, requereu ainda ao Meritíssimo Juiz titular do processo no Tribunal a quo fosse determinada à junta descrever minuciosamente as lesões verificadas e fundamentada e inequivocamente revelar a etiologia das mesmas
37.ª Como decorre do exame da junta médica a fls. 33 do apenso, não foi oferecida resposta aos quesitos formulados pela recorrente. Designadamente, não foi oferecida uma resposta clara no que concerne à etiologia das lesões verificadas.
38.ª A recorrente requereu ao Tribunal a quo fosse pedido aos peritos para cumprirem o desígnio que lhes fora incumbido, respondendo especificamente aos quesitos colocados, a fls. 37 do apenso.
39.ª Por despacho de fls. 37, o Meritíssimo Juiz entendeu que o conteúdo do relatório pericial tomava desnecessário o esclarecimento requerido, tendo em conta a matéria de facto que se mostrava na altura controvertida.
40.ª A recorrente entende que era imprescindível apurar a etiologia das lesões encontradas na sinistrada, para poder demonstrar que as suas causas em nada estavam relacionadas com o trabalho por ela prestado, especialmente porque, como se constatou, não se verificou qualquer acidente que tivesse dado origem às mesmas.
41.ª Parece evidente dos autos que as lesões se manifestaram duma forma súbita, não tendo sido provocadas por qualquer evento exterior; tampouco aparentam ter alguma relação com a actividade ou ambiente laboral, como acima se explanou.
42.ª Não se pode exigir da recorrente a prova de que uma causa exógena à relação laboral terá provocado as lesões de que padeceu a sinistrada e depois ser-lhe injustificadamente obstruído o acesso a todos os dados clínicos que possam dar força à sua pretensão.
43.ª É uma diminuição das garantias francamente inaceitável, especialmente num caso como o dos autos em que não se descortina sequer - ressalvado douto entendimento em contrário - a existência de um acidente.
44.ª Os peritos médico-legais têm à sua disposição todos os meios de que careçam para desempenhar as suas funções, além do conhecimento adequado para retirar conclusões certeiras do ponto de vista etiológico.
45.ª Deve em concomitância ser revogada a decisão atingida no apenso para a fixação de incapacidades, devendo os peritos que integraram a junta médica ser convidados a responder clara e inequivocamente aos quesitos colocados pela ora recorrente, no sentido de elucidar o Tribunal acerca das verdadeiras causas da patologia manifestada no acidente de trabalho.
TERMOS EM QUE, contando com o muito douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional, concluindo-se pela inexistência de acidente de trabalho.
Deve ainda corrigir-se a resposta oferecida ao quesito 2.º e revogada a decisão proferida no apenso para fixação de incapacidades.».
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A autora, representada pelo MP, respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“1 - Como tem sido entendido na doutrina, é constituído acidente de trabalho: um elemento espacial (local de trabalho), um elemento temporal (tempo de trabalho) e um elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão.).
2 - No caso presente existe uma relação entre o acidente e o trabalho pois nem o acontecimento exterior directo e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caracterização do acidente. A sua verificação é extremamente variável e relativa, em muitas circunstâncias. A violência não constitui, pois, a não ser como critério subsidiário, uma característica essencial do acidente de trabalho. Acresce que para que o acidente se qualifique como de trabalho, entre outros elementos caracterizadores, é necessário que exista, nexo causal relevante entre a relação de trabalho e o dano.
3 - No presente caso e face à factualidade provada e sem existência da prova em contrária, impõe que se conclua ter existido na situação em causa nos presentes autos, o acidente de trabalho.
4 - Quanto ao erro notório na apreciação da prova invocada pela recorrente, este, salvo o devido respeito, estamos perante só uma perspectiva pessoal da recorrente em avaliar as provas produzidas, pois conforme bem fundamentada pelo tribunal a quo na sua convicção baseava os depoimentos das testemunhas inquiridas aos mesmos e, com a razão de ciência que decorre da acta da audiência, que explicaram as circunstâncias em que o evento ocorrido com a autora se deu, o seu contexto concreto com a descrição das suas funções, a época do ano em que ocorreu que se conjugaram com os documentos juntos aos autos referidos nesses mesmos factos, sendo de destacar ainda o que descreve os turnos desenvolvidos pela sinistrada que consta a fls. 157. O depoimento do pai da autora foi relevante para aferir da situação de saúde da filha ao longo da sua vida, sem quaisquer problemas a assinalar, o que resultou reforçado pelo depoimento da testemunha H, com a razão de ciência que melhor consta da acta, que explicou que a hemorragia verificada no cérebro da autora não tem justificação em qualquer predisposição congénita, na medida em que os vasos sanguíneos em redor da hemorragia apresentam um estado perfeitamente normal, o que pôde verificar no momento em que realizou a cirurgia, não indicando assim ter a autora quaisquer problemas de excesso de pressão arterial, por exemplo.”.
5 - No que respeito ao pedido da renovação da decisão atingida no apenso para a fixação de incapacidades, com argumento da falta de respostas aos quesitos “As lesões ou doenças padece à vítima e qual a etiologia de tais lesões ou doenças, levantadas pela recorrente na reclamação contra o relatório pericial por ser indeferido pelo despacho do Tribunal a quo, este, salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão pela recorrente, pois por um lado, conforme bem entendido pelo tribunal a quo que é desnecessário tendo em conta o conteúdo do relatório pericial bem clara e fundamentada realizada pelos três peritos que constituem a junta médica com opinião unânime e tendo em consideração em matéria de facto que se mostra controvertida, e por outro lado, não tem a recorrente suscitada a discordância à tempo, pois já foi extemporâneo, tendo em conta a recorrente ter sido notificada por carta em 21 de Junho de 2016. (vide apenso de fls. 42 verso).
Nestes termos, e pelas razões acima expostas, o recurso ora interposto pela recorrente não mereça de provimento. Devendo o mesmo recurso julgado improcedente e mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
1). No dia 24 de Dezembro de 2013, a Autora B encontrava-se a trabalhar como empregada de mesa no restaurante “XXXX”, do Hotel G Macau, sito na Avenida ......, NAPE, Macau. (A)
2). A A. encontrava-se no exercício das suas funções, como trabalhadora por conta e no interesse de Sociedade do Hotel G Macau, Ltd., sob cujas ordens, direcção e fiscalização trabalhava. (B)
3). Auferia, em razão dessas funções, uma retribuição mensal de MOP $8.000,00 (oito mil patacas). (C)
4). A A. nasceu em 28/12/1991. (D)
5). A responsabilidade emergente dos acidentes de trabalho havia sido transferida pela entidade patronal da Autora para a Ré “C INSURANCE (Hong Kong) Ltd.” através da apólice de seguro n.º 610***** EC, com o período de validade de 01/07/2013 a 30/06/2014. (E)
6). Na circunstância referida em A), cerca das 23:15 horas começou a sentir-se indisposta e a perder a consciência, acabando por cair inanimada, tendo sido conduzida ao Hospital Kiang Wu, onde inicialmente ficou internada com o diagnóstico clínico de hemorragia do cérebro infra estrutural do lado esquerdo, acompanhada de paralisia hemiplégica do lado direito, afasia e impedimento cognitivo. (1º)
7). Naquele dia e nos que o antecederam, a A. trabalhava por turnos e, devido ao acréscimo de serviço que à época se registava, foi submetida a um ritmo de trabalho especialmente intenso e cansativo. (2º)
8). A A. era uma jovem saudável, sem qualquer anomalia congénita, e não possuía antecedentes nem sintomas de pressão arterial elevada ou de enfraquecimento dos vasos capilares. (3º)
9). Em consequência do que se descreve em 1.º), a A. sofreu as lesões descritas nos autos de exame médico de fls. 102 e 102 verso e nos elementos clínicos para que tal exame remete, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos. (4º)
10). Na sequência do descrito em 1.º) a Autora sofreu 730 dias de incapacidade temporária absoluta. (5º)
11). Na sequência do descrito em 1.º) a Autora sofreu 70% de incapacidade permanente absoluta. (6º)
12). A Autora despendeu, em despesas médicas e hospitalares, a quantia de MOP 188.608,00, tendo recebido a quantia de MOP 52.444,00. (7º)
13). E apenas recebeu indemnização relativa a 19 dias de I.T.A.. (8º)
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III – O Direito
1 - No recurso jurisdicional, a Seguradora insurge-se em três frentes:
- Defende a inexistência de acidente de trabalho;
- Pugna pelo erro notório na apreciação da prova; e
- Bate-se contra a fixação da incapacidade para o trabalho.
Três questões, portanto, a apreciar.
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2 – Vejamos, então.
2.1 – Da alegada inexistência de acidente de trabalho
Estaremos, ou não, perante um evento com todas as características típicas de um acidente de trabalho?
Sabemos que a autora, vítima infeliz de um acidente ocorrido 15 minutos depois de ter começado o seu turno nocturno de trabalho (11-07), foi atirada para uma situação de incapacidade parcial permanente.
E tudo começou assim: Sentiu-se “indisposta e a perder a consciência”, após o que acabou por “cair inanimada” (art. 1º, BI).
E “Em consequência do que se descreve em 1”, sofreu as descritas lesões no ponto II supra (4º. BI).
Ora bem. A resposta ao artigo 4º da começa logo por nos deixar na maior das incertezas, pois ao remeter para o descrito na resposta ao art. 1º da BI, a resposta ao art. 4º mostra-se totalmente dúbia e ambígua do ponto de vista relacional. O que queremos dizer com isto? Queremos significar que não é clara a relação das lesões com o “…que se descreve em 1”.
Expliquemo-nos melhor.
A autora sofreu as lesões descritas nos autos “em consequência do que se descreve em 1º)…” (resposta ao art. 4º). Mas, o que é que está descrito em 1º? A resposta é:
1º - A autora começou a sentir-se “indisposta e a perder a consciência, acabando por cair inanimada”;
2 – A autora foi internada sofrendo de “hemorragia do cérebro infra estrutural do lado esquerdo, acompanhada de paralisia hemiplégica do lado direito, afasia e impedimento cognitivo”.
É caso, então, para perguntar se a hemorragia cerebral foi, primeiro, a causa da indisposição, depois a causa da perda de consciência e, finalmente, da queda ou se, pelo contrário, ela foi a consequência da queda.
Quer dizer:
Ninguém sabe se a hemorragia ocorreu em primeiro lugar (por causas desconhecidas) e se, em consequência disso, a autora começou a sentir-se indisposta acabando por cair (a hemorragia seria, então, a causa da queda),
Ou, ---
Se a autora perdeu a consciência por qualquer outra razão (perda de sentidos por quebra de tensão arterial brusca, por exemplo), acabando por cair e, ao bater com a cabeça no chão, o que acabou por provocar uma hemorragia, com todos os efeitos que já sabemos (a hemorragia seria então a consequência da queda e da lesão cerebral).
Sendo assim, como podemos dizer nós que as sequelas lesivas do evento se devem à possível causa ou à possível consequência atrás referidas? Não temos elementos seguros a respeito disso.
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2.2 – Visto o que se acaba de dizer-se, parece-nos que o quadro de facto não nos mostra que tenha havido qualquer influência externa de índole laboral (queda em trabalho, um movimento brusco, um esforço incomum, etc.) que associe o evento a um acidente de trabalho. Sabemos apenas que tudo aconteceu no local de trabalho (conexão espacial) e no momento que era de prestação de serviço laboral (conexão temporal).
Mas, daí para a frente nada mais existe. Aliás, como a própria sentença começou por referir “Perante a redacção da norma, a factualidade provada pode permitir concluir que não estaremos perante exactamente um evento que se possa definir como acidente, na medida em que o que aconteceu à autora foi algo que em si mesmo se produziu, aparentemente, no seu for interno, no seu corpo, e não um evento que, num movimento de fora para dentro, a tenha atingido, como teria sucedido se, por exemplo, tivesse sido vítima de uma queda, da qual tivessem resultado sequelas físicas temporárias ou duradouras ou uma doença”. Trata-se de uma abordagem perfeita e com a qual concordamos; só não aderimos à solução que, um pouco contraditoriamente com esta premissa maior, o tribunal “a quo” alcançou.
E isto porquê? Vamos esclarecer uma vez mais.
É verdade que o art. 10º, do DL nº 40/95/M, de 14/08 faz presumir, até prova em contrário, como acidente de trabalho qualquer lesão ou doença que tiver sido contraída pelo trabalhador no local e no tempo do trabalho.
Mas, como tivemos já a oportunidade de dizer noutra ocasião (Ac. TSI, de 29/09/2011, Proc. nº 373/2011):
“Claro está que se trata de uma presunção iuris tantum, ilidível, portanto, através de prova em contrário. E uma vez presumido, pareceria que a consequência reparadora haveria de ser lógica. Mas não é sempre assim.
Como a jurisprudência tem entendido1, a ligação entre acidente e lesão obtém-se a partir do simples mecanismo presuntivo previsto na norma. Mas o nexo causal entre a lesão e a incapacidade já escapa à presunção e obedece às regras gerais sobre a prova, que no caso ao sinistrado incumbia fazer2. Ora, o trabalhador não foi capaz de demonstrar a causalidade entre acidente e incapacidade, justamente por não ter provado, como lhe competia, a existência de acidente de trabalho. Acidente de trabalho, claro, encarado como elemento naturalístico, inesperado, de ordem exterior ao trabalhador.
Realmente, nada aconteceu de anormal na prestação de serviço que preencha a noção de um acidente de trabalho propriamente dito do qual possa extrair-se a presunção de que a doença ou a incapacidade se consideram consequência dele (art. 10º, nº1, al.a), cit.). Apenas se sabe que a hemorragia ocorreu no local e no tempo de trabalho, mas que para ela não terá concorrido - tanto quanto se sabe - nenhuma circunstância laboral fortuita propriamente dita. E sem isso, cai por terra a presunção a que se refere o citado dispositivo legal. (…). No nosso caso, porém, nada se sabe sobre o modo concreto como as coisas se passaram. Apenas sabemos, repetimos, que tudo se passou no local e no tempo de trabalho. É caso para perguntar: estava a trabalhar? Encontrava-se em momento de pausa? Desenvolvia algum esforço físico inusitado? Estava, portanto, a fazer o quê e em que circunstâncias, concretamente? Nada sabemos a respeito disso. Logo, não podemos afirmar com segurança qual a causa para a incapacidade.”.
O texto transcrito ajusta-se ao caso em apreço, até mesmo pela similitude de situações. Na verdade, não sabemos o que estava a fazer a autora exactamente no momento do evento.
E, por outro lado, mesmo que se aceite como verdadeiro o facto constante do art. 2º da B.I., nem por isso achamos que reside aí a prova da relação causal indispensável à produção do acidente. Ou seja, o ritmo “intenso e cansativo” verificado na altura do natal não significa que esse fosse o caso do turno da noite de trabalho da autora em que tudo aconteceu.
Pensamos mesmo que nessa ocasião (menos de 15 minutos após o início do turno) ainda não poderia estar cansada (pelo menos isso não resulta dos factos) no serviço de empregada de mesa, sendo até certo que de noite, o seu serviço, como decorre da transcrição dos depoimentos obtidos, seria o de tomar conta dos pedidos de refeições vindos directamente dos quartos o providenciar para que os seus colegas fossem levar ao quarto o pedido alimentar solicitado pelo cliente.
De qualquer maneira, e independentemente do maior ou menor acerto da resposta ao quesito 2º, dela não brota a resposta necessária à obtenção do referido nexo entre o aludido acréscimo de serviço, a especial intensidade e cansaço, e o acidente ocorrido. Quer dizer, não se pode dizer ter sido por causa desse ritmo de trabalho especialmente intenso e cansativo que levou a autora a desmaiar, a cair e a sofrer as descritas lesões.
Assim sendo, ainda que se verifiquem dois dos elementos típicos da noção de acidente de trabalho constantes do art. 3º do referido diploma (o evento ocorreu no tempo e no local de trabalho), e embora concedamos que eles preencham a “fattispecie” da presunção estabelecida no art. 10º, não temos outros adicionais dados de facto que revelem a relação causal (nexo) entre o exercício ou prestação do trabalho e a lesão.
É que tal presunção não abrange o nexo de causalidade entre a lesão ou doença contraída no acidente e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho, sendo a sua demonstração um ónus do sinistrado ou dos seus beneficiários (citado Ac. STJ, de 19/11/2008, Proc. nº 08S2466).
E como nenhum outro quesito foi formulado expressamente para provar directa e especificamente essa relação causal entre acidente e incapacidade, então não nos resta outra saída senão achar que a solução da improcedência da acção devesse ser a mais adequada.
Neste sentido, procederá o recurso.
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2.3- Do erro notório na apreciação da prova
Pretende a recorrente vislumbrar na resposta ao art. 2º da BI um erro na apreciação da prova.
E, convenhamos, tem razão. Com efeito, a matéria do artigo 2º da BI foi reproduzida inteiramente do art. 4º da petição inicial. Contudo, nenhuma prova nos autos nos revela que naquele período do Natal alguma vez a autora se tenha queixado de estar cansada por causa dos turnos, que não gostava de trabalhar à noite (ver resposta transcrita da testemunha F, superior hierárquico da autora fls. 287-291) ou, até mesmo, que o ritmo do trabalho fosse particularmente intenso e cansativo, ainda que uma testemunha tivesse afirmado que nessa época há aumento do trabalho. Mas, um aumento do trabalho nessa época não é o mesmo que um trabalho particularmente intenso e cansativo para a autora, em especial pelo turno da noite que fazia no atendimento ao serviço de quartos.
E, repetimos, ainda que o trabalho intenso e cansativo estivesse provado, já provado não estaria, seguramente, que fosse particularmente por causa desse facto que ela teve a indisposição, a perda de consciência e a queda inanimada no chão. Não está demonstrada, inequivocamente, essa ligação de causa-efeito.
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2.4 – Da fixação da incapacidade para o trabalho
A última questão submetida a recurso jurisdicional reside na discordância que a recorrente manifesta em relação ao grau de incapacidade.
Vejamos este aspecto do recurso.
Efectuada a perícia pela junta médica, os senhores peritos médicos dignaram-se apresentar o seu laudo a fls. 33 do apenso, onde se fixou uma IPP de 70% (tradução a fls. 39-40 do mesmo apenso).
Notificada, porém, do relatório pericial, a seguradora requereu que os senhores peritos fossem chamados a esclarecer as seguintes questões:
1ª – De que lesões ou doenças padece a vítima;
2ª – Qual a etiologia de tais lesões ou doenças.
O juiz titular do processo, porém, indeferiu esta pretensão com o argumento de que “atento o seu conteúdo, torna desnecessário o esclarecimento formulado…tendo em conta a matéria de facto que se mostra controvertida”.
Agora, a seguradora insiste nesta tónica: não se sabe a causa da lesão da vítima e as respostas àquelas perguntas seriam indispensáveis para a determinação da verdadeira causalidade.
Claro que podia o Ex.mo juiz aceder ao pedido apresentado pela ora recorrente no quadro dos seus poderes de boa condução do processo e em ordem à procura de todos os elementos que o coadjuvassem à melhor decisão possível.
Todavia, ao Ex.mo Juiz pareceu que os dados já recolhidos e, em particular, à matéria controvertida, nada mais era preciso esgar4avatar.
Por nossa parte, cremos que se poderia ter realizado, sim, a pretendida diligência, ganhando desse modo o processo em subsídios factuais o que a sua marcha pudesse perder em tempo e em celeridade. Repare-se, aliás, que o objecto da perícia, como o próprio juiz definiu a fls. 20, deveria fornecer resposta aos dois quesitos indicados a fls. 13 verso. Quesitos a que os senhores peritos não ligaram nenhuma importância, pousando sobre eles um silêncio total, exactamente os mesmos que a seguradora pretendia ver respondidos especificamente.
Num ponto tem o juiz titular do processo razão: a matéria levada à base instrutória não necessitava de uma maneira imperiosa do referido esclarecimento.
Por isso, porque o despacho em apreço não foi objecto de impugnação autónoma, e porque os elementos dos autos nos permitem a mais justa e legal solução, nesta parte não se acolhem as alegações do recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e, em consequência:
1 – Determina-se que a resposta ao art. 2º da Base Instrutória passará a ter a seguinte redacção:
“Naquele dia e nos que o antecederam, a A. trabalhava por turnos, verificando-se nessa época um aumento do trabalho”.
2 – Revoga-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se do pedido a ré “C Insurance (Hong Kong) Limited”.

Custas pela autora em ambas as instâncias.
TSI, 16 de Março de 2017

(Relator) José Cândido de Pinho

(Primeiro Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong

(Segundo Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
1 Referimo-nos à jurisprudência portuguesa produzida sobre casos semelhantes e a partir de preceitos em tudo idênticos aos que na legislação da RAEM influenciam a decisão.
2 Neste sentido, o Ac. do STJ de 19/11/2008, Proc. nº 08S2466: “V – A presunção constante do n.º 1, do artigo 7.º, do RLAT – de acordo com a qual a lesão constatada no local e no tempo de trabalho se presume, até prova em contrário, consequência de acidente de trabalho –, assenta a sua razão de ser na constatação imediata ou temporalmente próxima, de manifestações ou sinais aparentes entre o acidente e a lesão (perturbação ou doença), que justificam, na visão da lei e por razões de índole prática, baseadas na normalidade das coisas e da experiência da vida, o benefício atribuído ao sinistrado (ou aos seus beneficiários), a nível de prova, dispensando-os da demonstração directa do efectivo nexo causal entre o acidente e a lesão ou mesmo do concreto acidente gerador da lesão.
VI – As referidas presunções não abrangem o nexo de causalidade entre as lesões corporais, perturbações funcionais ou doenças contraídas no acidente e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte da vítima, sendo a sua demonstração um ónus do sinistrado ou seus beneficiários”.
Ver ainda Ac. do STJ de 25/06/2008, Proc. nº 08S0236.
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109/2017 22