Processo nº 210/2017 Data: 23.03.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.
SUMÁRIO
1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 210/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B), com os restantes sinais dos autos e ora presa no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 80 a 89 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).
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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 91 a 91-v).
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando no sentido da procedência do recurso.
Tem o Parecer o teor seguinte:
“Inconformada com a decisão de 26 de Janeiro de 2017, que lhe denegou a liberdade condicional, dela vem recorrer a reclusa B.
Sustenta, em suma, na sua motivação de recurso, que estão preenchidos todos os requisitos legalmente exigidos para a concessão da pretendida liberdade condicional, nos termos do artigo 56.°, n.° 1, do Código Penal, e que houve errado julgamento ao considerar-se não verificados os das alíneas a) e b) desse referido n.° 1, alvitrando até a existência de erro notório na apreciação da prova, no que toca ao juízo sobre o pagamento da indemnização em que a recorrente foi condenada.
Respondeu o Ministério Público, defendendo a manutenção do julgado.
Vejamos.
A liberdade condicional visa preparar, de forma controlada, o regresso do recluso ao seio da comunidade. Trata-se de um instituto que pode colocar em confronto interesses do recluso e da comunidade, nem sempre facilmente harmonizáveis, o que lhe empresta alguma tensão dialéctica cuja chave residirá na perfeição dos pressupostos exigidos no artigo 56.° do Código Penal.
Deste inciso resulta que a libertação condicional de um recluso, para além de ter o assentimento deste, depende dos demais pressupostos formais e materiais aí enunciados.
O recluso deu o seu assentimento e nenhuma dúvida ocorre quanto à verificação dos pressupostos formais, como bem foi considerado na decisão recorrida.
Vejamos então a matéria atinente aos requisitos materiais.
Segundo jurisprudência dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, a liberdade condicional é de aplicação casuística, e a sua concessão depende do juízo de prognose fortemente indiciador de que o recluso vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em consonância com as regras de convivência, e bem assim da compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social, estando implícitas neste último requisito material considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima irrenunciável da preservação e defesa da ordem jurídica – v. g., acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, de 09.09.2004 e de 03.07.2008, proferidos nos processos 214/2004 e 378/2008, respectivamente, e citados por Leal-Henriques em anotação “Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau”.
No caso vertente, não obstante o abonatório quadro que, em termos comportamentais e de ocupação do tempo em contexto prisional, foi traçado relativamente à recorrente, o despacho recorrido considerou que ainda se suscitavam dúvidas em sede de prevenção especial. Para tanto, enfatizou a circunstância de a recorrente não ter pago ainda qualquer montante da importância indemnizatória que fora condenada a pagar à ofendida, no valor equivalente a MOP $422,300.00, falta cujo significado, ao nível do arrependimento, permitia pôr em causa o preenchimento do requisito material ligado à satisfação das necessidades de prevenção especial.
É contra esta constatação que a recorrente mais veementemente se insurge, afirmando já ter pago a indemnização e sustentando que a decisão recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova.
Ora bem, pode concluir-se, neste momento – cremos que sem margem para dúvidas – que a recorrente já saldou a importância indemnizatória em que foi condenada. Isso ocorreu ainda em 2015, conforme decorre da certidão recentemente junta aos autos, a fls. 99 e seguintes, oriunda do 3.° juízo criminal, extraída no âmbito do processo CR3-13-0009-PCC, através da qual se vê que o montante foi pago por precatório cheque emitido em 26/10/2015, entregue ao mandatário da ofendida em 30/11/2015.
Mas tal não significa que a decisão recorrida haja incorrido em erro notório na apreciação da prova. Estes elementos relativos ao pagamento da indemnização apenas foram carreados para os presentes autos no corrente mês de Março, quando o processo já se encontrava no tribunal de recurso. Ora, a Mm.a Juiz fundara o seu juízo, quanto à dívida da indemnização, na informação – incorrecta, diga-se – que fora levada ao processo de execução da pena (PEP 094-15-1.°) pelo ofício inserto a fls. 38 desse processo. Perante a prova disponível no processo, nenhum vício se pode apontar à decisão recorrida por ter considerado que a indemnização ainda não se mostrava paga.
Agora, que se sabe já ter sido paga a indemnização – a qual, aliás, estava saldada anteriormente à adopção da decisão recorrida, e só nesta não foi tida em conta por deficiências comunicacionais entre o processo da condenação e o processo da execução da pena – afigura-se que nada obsta a que se leve o facto em conta para reformular e substituir o juízo anteriormente efectuado quanto ao requisito da prevenção especial.
Assim, em face da evolução altamente positiva registada pela recorrente em contexto prisional, de resto devidamente salientada na decisão recorrida, a que acresce o pagamento da indemnização à ofendida, com a carga que isso representa em termos de arrependimento e de compensação do desvalor da acção, crê-se que não há óbices à libertação condicional, em matéria de prevenção especial.
Sob o prisma da prevenção geral, também nos inclinamos para a inexistência de obstáculos relevantes à concessão da pretendida liberdade condicional.
É certo que a violação normativa ocorre numa área, a do jogo, onde o sentir ético-jurídico da comunidade se revela bastante exigente. Mas não podemos deixar de ponderar que o desvalor da acção atingiu em concreto apenas a ofendida e só pôs em xeque a relação de confiança entre a recorrente e a sua entidade patronal. Não houve prejuízo palpável para a indústria do jogo, nem para os frequentadores do jogo, o que retira ao caso a premência da prevenção geral de integração que geralmente é reclamada em crimes relacionados com o jogo.
Além disso, é sabido que o nosso direito penal não cauciona entendimento que tenda a erigir a expiação da totalidade da pena como condição para a compensação dos danos causados pelo crime, pois, se assim fosse, o instituto da liberdade condicional revelar-se-ia espúrio. Por outro lado, não sendo automática a concessão da liberdade condicional, também é verdade que apenas no caso muito específico e apertado do artigo 16.° da Lei 6/97IM está excluída a possibilidade de concessão de liberdade condicional, o que permite afirmar, como regra, a permissão da concessão da liberdade condicional. Acresce, ainda, que a liberdade condicional não acarreta a extinção da pena, sendo do interesse da própria comunidade que o retorno dos condenados à sua vida em sociedade se processe em condições que permitam um acompanhamento mínimo que sempre ajudará à reintegração, como é apanágio da liberdade condicional.
Sopesando estes elementos, propendemos também para a ausência de óbices, em matéria de prevenção geral, à libertação condicional da recorrente.
Ante o exposto, vai o nosso parecer no sentido do provimento do recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que conceda a liberdade condicional pelo período que falta para o cumprimento de pena, a ser objecto de acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social”; (cfr., fls. 144 a 146).
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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):
– por Acórdão do T.S.I. de 26.03.2015, foi, B, ora recorrente, condenada como autora de 15 crimes de “peculato”, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão e no pagamento de uma indemnização de MOP$422.300,00;
– a mesma recorrente, deu entrada no E.P.C. em 30.03.2015, e em 29.01.2017, cumpriu dois terços da referida pena, vindo a expiar totalmente a mesma pena em 29.12.2017;
– em 30.11.2015 efectuou a recorrente o pagamento da indemnização em que foi condenada;
– em caso de vir a ser libertada, irá viver com o marido e filhos, em Macau, possuindo perspectivas de trabalho como empregada de mesa.
Do direito
3. Insurge-se a ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.
Vejamos.
— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:
“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).
Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).
“In casu”, atenta a pena única que à recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente presa desde 30.03.2015, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.
Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.
Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).
Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 05.01.2017, Proc. n.° 962/2016, de 19.01.2017, Proc. n.° 915/2016 e de 09.02.2017, Proc. n.° 49/2017).
Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.
Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?
Cremos que de sentido positivo deve ser a resposta, mostrando-se de subscrever a posição pelo Ministério Público em sede de vista assumida no Parecer que atrás se deixou transcrito.
Com efeito, a reclusa ora recorrente, era primária antes do cometimento dos crimes dos autos, demonstra arrependimento sincero, reconhecendo o desvalor da sua conduta – v.d., v.g., o pagamento da indemnização em que foi condenada logo em 2015, as várias cartas juntas aos autos e o parecer da técnica de serviço social – tem tido um “comportamento prisional adequado” tendo participado em actividades ocupacionais, (curso de inglês), – vd., Parecer do Director do E.P.C. – possuindo também vontade, apoio da família (que a visita) e perspectivas ocupacionais para levar uma “vida nova”, mostrando-se assim verificado o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. a) do C.P.M., ou seja, viável sendo o necessário juízo de prognose favorável quanto à sua futura vida em liberdade.
Por sua vez, importa ponderar que a “conduta criminosa” da ora recorrente, (qualificada como a prática de 15 crimes), decorreu entre 03.09.2012 a 17.09.2012, tendo, (em síntese), consistido na subtracção de fichas de jogo durante o período de trabalho da ora recorrente num casino local, e, ponderando na pena em questão, de 2 anos e 9 meses de prisão, tendo presente o período já expiado, (2 anos), e no que falta cumprir, (9 meses), sendo esta a última oportunidade de poder beneficiar de uma liberdade antecipada, e atento o atrás aludido “juízo de prognose favorável”, crê-se que viável é atender-se à pretensão apresentada, desde que condicionada à observância de “regras de conduta”, tais como, a prova nos autos, no prazo de 1 mês, da sua ocupação profissional, devendo também observar o plano de reintegração que lhe for traçado pelo competente Departamento de Reinserção Social, considerando-se, desta forma, igualmente verificado o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. b) do C.P.M..
Assim, em face das expostas considerações, e verificados se mostrando de considerar os pressupostos do art. 56°, n.° 1 do C.P.M., há que revogar a decisão recorrida, concedendo-se, nos exactos termos consignados, a liberdade condicional à ora recorrente.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.
Passem-se os competentes mandados de soltura.
Sem custas.
Envie-se cópia ao Departamento de Reinserção Social.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 23 de Março de 2017
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 210/2017 Pág. 4
Proc. 210/2017 Pág. 3