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Processo nº 164/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenada pela prática de uma contravenção, p. e p. pelo art. 20° da Lei n.° 21/2009, e art. 62°, n.° 3) e 85°, n.° 1, al. 6) da Lei n.° 7/2008, na pena de multa de MOP$20.000,00, assim como na contravenção, p. e p pelo art. 20° da Lei n.° 21/2009, e art. 77° da Lei n.° 7/2008, na pena de multa de MOP$5.000,00.

Em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena de multa de MOP$22.500,00.

Por sua vez, foi também condenada a pagar ao ofendido, (trabalhador), B, a “quantia discriminada no mapa de apuramento, elaborado pela D.S.A.L.”; (cfr., fls. 202 a 204-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a transgressora recorreu para imputar à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 209 a 217).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 225 a 228).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer opinando no sentido da procedência do recurso; (cfr., fls. 241 a 242).

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Nada obstando, cumpre decidir

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 202-v a 203, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a transgressora recorrer da sentença que a condenou nos termos atrás explicitados.

Assaca à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, limitando o seu recurso ao segmento decisório com o qual foi condenada no pagamento de uma indemnização ao ofendido, (trabalhador), B.

Vejamos.

De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.01.2017, Proc. n.° 498/2016, de 26.01.2017, Proc. n.° 776/2016 e de 16.02.2017, Proc. n.° 341/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016, de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016 e de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017).

No caso dos autos, e em síntese diz a ora recorrente que se devia dar (também) como provado que o ofendido/trabalhador faltou ao serviço sem justificação desde Novembro de 2014 e que assim não devia ter direito à respectiva retribuição, ou, subsidiáriamente, que não deve obter retribuição nos dias em que permaneceu menos de oito horas em Macau; (cfr., concl. 19ª e 20ª).

E, por não ter o Tribunal o que decidido em conformidade com o assim considerado, conclui afirmando pela existência do assacado “erro notório”.

Ora, em nossa opinião, a “questão” aqui em causa é outra.

Com efeito, o que sucedeu é que o Tribunal incorreu em “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Vejamos.

Temos entendido que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016, de 02.06.2016, Proc. n.° 1062/2015 e de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016).

In casu, no “auto de notícia” elaborado pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, (cfr., fls. 4 e segs.), consignou-se, nomeadamente, que: “De acordo com a declaração do representante da entidade patronal, este confirmou que o trabalhador supracitado começou as suas funções a 29 de Julho de 2014, como operário de obra de construção, a entidade patronal disse que o supracitado trabalhador faltou ao serviço com frequência, a entidade patronal apresentou um registo de presença de trabalho referente ao período de Janeiro a Maio de 2015 sobre a obra de construção da cobertura da fábrica de veículos do metro ligeiro, 1ª. fase – C385, revelou-se que o referido trabalhador não prestou o serviço de Janeiro de 2015 a Maio de 2015, também disse que no período supracitado, o trabalhador não requereu dia de descanso, que se tratava de faltas injustificadas, pelo que, a entidade patronal não precisava de pagar o salário ao referido trabalhador, a entidade patronal despediu o trabalhador a 01 de Maio de 2015 por o mesmo ter faltado ao serviço nos três dias seguidos, no entanto, a entidade patronal manifestou que não avisou o trabalhador do facto de despedimento por escrito por não ter conseguido contactá-lo. (…)”.
E, mais adiante que: “Quanto ao salário, o supracitado trabalhador manifestou que prestou sempre o trabalho de aquisição de materiais para a entidade patronal no período compreendido Agosto de 2014 a Maio de 2015, até o cancelamento da autorização de emprego feito a 15 de Maio de 2015, no entanto, o referido trabalhador apresentou o cartão de trabalhador com a menção de empregado de aquisição de materiais electromecânicos, o respectivo cartão foi reconhecido ser verdadeiro pela testemunha da entidade patronal, a entidade patronal disse que a partir de Janeiro de 2015, o trabalhador faltava sempre ao serviço, a testemunha indiciada por essa entidade declarou que o trabalhador, depois de ter prestado o serviço por 2-3 meses, deixou de ir ao serviço, no entanto, a explicação dada pela testemunha sobre que o referido trabalhador não era empregado de aquisição de materiais era muito improvável, pelo que, este departamento não tinha confiança no depoimento desfavorável ao trabalhador em causa, bem como procedeu ao procedimento de acusação em relação à conduta da entidade patronal que suspeitava de arranjar o referido trabalhador no exercício de actividades profissionais não autorizadas, aliás, a autorização de emprego do citado trabalhador apenas perdeu a sua validade a 15 de Maio de 2015, pelo que, este departamento entende que a declaração do supracitado trabalhador é mais aproximada dos factos. Além disso, há indícios de revelar que a entidade patronal não pagou qualquer salário ao supracitado trabalhador a partir de Novembro de 2014, pelo que, a entidade deve pagar ao citado trabalhador a salário base do período de Novembro de 2014 a 15 de Maio de 2015.
Quanto à indemnização rescisória, a entidade indicou que o trabalhador faltava sempre ao serviço desde Janeiro de 2015, portanto, emitiu carta de despedimento em Maio de 2015, despediu-o com justa causa, no entanto, a entidade patronal não conseguiu avisar o trabalhador do facto de despedimento por escrito por não ter conseguido contactá-lo; além disso, a entidade patronal apresentou o registo de entrada e saída do estaleiro principal C385, indicando que o supracitado trabalhador faltava sempre ao serviço desde Janeiro de 2015, porém, a testemunha da entidade patronal já indicou que o trabalhador não trabalhou no estaleiro principal, aliás, a entidade patronal também não apresentou prova mais eficaz para suportar a invocação de faltas injustificadas do supracitado trabalhador, pelo que, o despedimento da entidade patronal é infundado, pelo que, a motivação de despedimento da entidade patronal não é suficiente, nos termos do artigo 20° da Lei n°. 21/2009, conjugado com o n°. 4 do artigo 69° da Lei n°. 7/2008 «Lei das relações de trabalho», a entidade deve pagar ao supracitado trabalhador uma indemnização do valor em dobro nos termos do n°. 1 do artigo 70° da lei em causa.
Este departamento elaborou o mapa de apuramento de acordo com a declaração do trabalhador e com os dados do processo, e em conformidade com o mapa de apuramento anexado, o respectivo salário que a entidade patronal ainda deve ao trabalhador é de MOP$76.050,00, o montante referente à rescisão do contrato é de MOP$11.700,00, perfazendo um total de MOP$87.750,00”.

Porém, e como se referiu, o Tribunal a quo condenou a ora recorrente a pagar ao trabalhador “a quantia discriminada no mapa de apuramento elaborado pela D.S.A.L.”, (que inclui o salário em dívida e indemnização rescisória), sem que em sede da sua “decisão da matéria de facto” constasse pronúncia sobre a atrás alegada e transcrita factualidade quanto às “faltas do trabalhador” e respectiva “remuneração”.

E, nesta conformidade, sendo “matéria” constante do “auto de notícia” em audiência de julgamento convertido em acusação, e sobre a qual ao Tribunal a quo cabia investigar em toda a sua extensão e emitir (cabal) pronúncia, evidente nos parece que com o decidido se incorreu no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que, porque insanável, implica o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos de art. 418° do C.P.P.M.; (v.d., em situação análoga o Ac. de 27.10.2016, Proc. n.° 715/2016, onde se consignou que “Incorre-se no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” – de conhecimento oficioso – se o Tribunal omite investigação e pronúncia em sede de decisão da matéria de facto quanto a factos (relevantes) relatados no auto de notícia e alegados na contestação da transgressora.
Tal “insuficiência”, porque insanável, implica o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M.”).

Devem assim os autos voltar ao T.J.B. para, em novo julgamento se apurar a referida “matéria constante do auto de notícia”, proferindo-se, de seguida, nova decisão quanto à indemnização ao ofendido/trabalhador dos autos.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam decretar o reenvio dos autos para novo julgamento.

Sem custas.

Macau, aos 16 de Março de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 164/2017 Pág. 12

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