Proc. nº 163/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Abril de 2017
Descritores:
- Administração de Condomínio
- Anulação de deliberações: legitimidade
- Representação judiciária
SUMÁRIO:
A legitimidade activa para a anulação de deliberações cabe aos condóminos que não tenham votado e aprovado a deliberação, enquanto a passiva pertence aos condóminos que favoravelmente a votaram, embora representados judiciariamente pelo respectivo administrador de condomínio, nos termos do art. 1352º do CC.
Proc. nº 163/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, divorciada, empresária, residente na Rua XX, n.º XX, Edf. “XX”, XX.º andar “XX”, em Macau, instaurou contra os CONDÓMINOS INCERTOS do Edf. “XX”, sito na Rua XX, n.º XX, e na Rua XX, n.º XX, em Macau, representados pela administração do condomínio, na pessoa do seu administrador B, residente na Rua XX, n.º XX, Edf. “XX”, XX.º andar “XX”, em Macau, acção declarativa comum na forma ordinária, pedindo, nos termos do art. 1250º, nº2, do Código Civil, a anulação da deliberação da assembleia de condóminos do Edifício “XX” datada de 21 de Março na parte respeitante ao ponto 10 da respectiva ordem de trabalhos.
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Foi, então, proferido despacho de indeferimento liminar, nos termos que adiante transcreveremos.
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É contra esse despacho que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:
« Nos presentes autos, a Autora propôs acção de anulação de deliberação de condóminos contra Condóminos Incertos porquanto da análise da acta da reunião não foi possível averiguar quais os condóminos que aprovaram a deliberação.
2. O Senhor Juiz a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, absolvendo a Ré da instância, com os argumentos de que os condóminos são “perfeitamente identificáveis” pela análise da acta e que a acção foi proposta contra uma realidade insusceptível de ser parte.
3. Porém, os argumentos invocados são erróneos e manifestamente insubsistentes.
4. Quanto à identificação dos condóminos que aprovaram a deliberação, o único dado que se retira da análise da aludida acta é o de que a mesma deliberação foi aprovada com os votos favoráveis de 31,05% do valor total do condomínio, não estando identificados os condóminos que, com o respectivo voto, fizeram aprovar a deliberação em causa.
5. Como é óbvio, “representativos de 31,05% do valor total do condomínio” podem ser os condóminos “A”, “B”, “C”, “D”, e …por aí em diante! Ou seja: quaisquer condóminos do universo total de condóminos.
6. Em suma, não podia senão a Autora, ora Recorrente, sob pena de se ver privada do seu axial direito de impugnar a deliberação sub judice, demandar outrem - tal como fez - que não meros condóminos incertos.
7. Tal como se sufraga na doutrina e jurisprudência justamente citadas pela decisão jurisdicional de que ora se recorre, “a legitimidade para ser parte, nos termos que vimos consignando, continua a pertencer aos titulares do condomínio [rectius, aos condóminos] ”.
8. Simplesmente, esses condóminos são precisamente “incertos” sempre que não é possível (nem exigível) ao Autor (ou Autora) identificar os condóminos que aprovaram a deliberação impugnada.
9. Não obstante serem “incertos”, os condóminos que aprovaram a deliberação impugnada são “representados em juízo”, quando demandados, pelo administrador do condomínio, que é “quem deve ser citado” (cfr. o Acórdão do STJ português, de 29.09.2007, citado na decisão recorrida).
10. Nas palavras de Abílio Neto, o administrador do condomínio “intervém como representante judiciário dos condóminos que, através da sua vontade individual, contribuíram para a formação da vontade colectiva” (cf. Manual da Propriedade Horizontal, 3.ª edição, p. 348 s.).
11. A capacidade judiciária da administração do condomínio também se justifica pela razão de que nem sempre é possível a identificação de todos os condóminos que carecem de ser demandados nos termos das normas que disciplinam a legitimidade processual passiva. Foi o que fez a ora Recorrente na sua petição inicial!
12. Se a Autora quisesse tivesse acatado a douta decisão do Tribunal a quo, ver-se-ia então impossibilitada de propor nova acção contra condóminos determinados porque continua privada da possibilidade de conhecer a identidade precisa de todos os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada.
13. Seguramente concordará esse Venerando Tribunal que não é possível que fique sem guarida processual o direito que a ora Recorrente indubitavelmente tem de reagir contra a invalidade que fere a deliberação sub judice. Outra não é, aliás, a conclusão a que se chega por força do estatuído no artigo 1.º do CPC.
14. A decisão recorrida diz também que “a rejeição” da petição inicial da Autora se deve à suposta circunstância de que os “condóminos incertos” (contra quem foi proposta a acção sub judice) constituem “uma realidade insusceptível de ser parte” (sic).
15. A presente acção só poderia ter sido proposta contra condóminos incertos porque, com base na acta, é impossível à Autora identificar os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação.
16. Os artigos 43.º e 51.º do CPC asseguram que possam ser demandados condóminos incertos, representados pela administração do condomínio nos termos do disposto no artigo 1352.º, n.º 2, do Código Civil.
17. Contrariamente ao que se diz na decisão recorrida, fica assim assegurado que no pleito poderão intervir pessoas concretas em representação dos condóminos incertos que votaram favoravelmente a deliberação.
18. Condóminos incertos não são, pois, “uma realidade insusceptível de ser parte”, e, face à ausência de menção na acta de quem foram os condóminos que votaram a favor da deliberação, só os condóminos incertos poderiam ter sido demandados.
19. Bem andou a ora Recorrente ao ter proposto a acção contra quem o fez, indicando ademais quem devia representar os demandados, razão por que é inadmissível a decisão recorrida, a qual é manifestamente contrária à lei.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 - Encontra-se registada a favor da autora a propriedade da fracção autónoma designada por “D18” do edifício descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1XXX8, sito em Macau, na Rua XX, nº XX e Rua XX, nº XX.
2 - No dia 21 de Março de 2016, pelas 20,00, reuniu a assembleia-geral ordinária dos condóminos do edifício “XX” identificado em 1, estando representado 46,77 do valor total do condomínio.
3 - Da ordem de trabalhos constava um ponto 10 cujo conteúdo é o seguinte:
“Discutir e deliberar sobre as partes comuns do Edf XX relativamente aos problemas relacionados com as construções ilegais nos terraços e outras partes comuns de acordo com o princípio da igualdade e consequente votação da cobrança de custos de gestão para uso destas partes; em caso de votação favorável saber se o preço a cobrar por pé quadrado é igual ao das fracções autónomas e se a área dessas partes comuns é calculada de acordo com o folheto de vendas do edifício, com excepção do 22º andar cuja área das partes comuns será calculada de acordo com a área original das fracções desse do 22º andar.”
4 - Foi deliberado cobrar 40% do valor, com 31,05% do valor total de condomínio de votos favoráveis e contra 6,50% do valor total do condomínio.
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III – O Direito
1 - O despacho em crise apresenta o seguinte teor:
«A presente acção é dirigida pela A. a “condomínios incertos do ed. XX”.
Está em face disto a acção em condições de prosseguir por estar na acção do lado passivo quem tem de estar por imposição legal?
Quanto a este apontado aspecto importa referir que a legitimidade para as acções de impugnação e deliberações da assembleia de condóminos radica-se nos próprios condóminos.
Como ensina Abílio Neto, nas acções em que se impugnam deliberações da assembleia de condóminos, “como demandados devem figurar nominativamente todos os condóminos que aprovaram a deliberação ou deliberações impugnadas, por serem estes que têm interesse em contradizer, embora representados seja pelo administrador, seja pela pessoa que a assembleia tiver designado para esse efeito (art 1433º) ” - (correspondente ao artº 1352 nº 2 do CCM).
Refere ainda, esclarecendo, que, “ (...) tal acção não deve ser intentada contra os condóminos a título singular, nem apenas contra o condomínio, nem contra o administrador, uma vez que este apenas intervém como representante judiciário dos condóminos que, através da sua vontade individual, contribuíram para formação a vontade colectiva”- Cfr. A cit., in Manual de Propriedade Horizontal, 3a ed., p.348 e 349.
Como refere o STJ de Portugal, “O nº 6 do artº 1433º do C. Civil (artº1352 nº 2 do CC) dispõe que a representação judiciária dos condóminos compete ao administrador. Mas representar não significa ser parte. A legitimidade para ser parte, nos termos que vimos consignando, continua a pertencer aos titulares do condomínio. Aliás, diz o preceito que o administrador representa os condóminos “contra quem são propostas as acções.” Esta expressão inserida num artigo que tem como epígrafe ('Impugnação das deliberações”, resolve, para além de todas as outras considerações, o problema dos presentes autos. A acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos tem de ser interposta contra os condóminos que as votaram. Por imposição legal, o seu representante em juízo será o administrador, que é quem deve ser citado. Mas a acção tem de ser movida contra os aludidos condóminos que aí devem figurar como réus”. - Cfr. Ac. cit. de 29.9.2007, in DGSI, e sumariado nos seguintes termos: “A acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos tem de ser interposta contra os condóminos que as votaram, que naquela devem figurar como réus, embora representados em juízo pelo administrador, que é quem deve ser citado”. - Cfr. ainda Ac. RL, de 8.2.90, in CJ, 1990, 1-161 e JTRL00020683.ITIJ.NET / A.STJ de 14.2.91, in BMJ, 404 - 3676, etc...
Tudo isto para dizer o quê?
Que a acção está mal direccionada, que a acção foi introduzida contra um realidade insusceptível de ser parte porque os condóminos que aprovaram a deliberação são perfeitamente identificáveis pela da análise da acta, nessa medida estando afrontada a legitimidade passiva, por conseguinte ocorrendo excepção dilatória. – artº 58, 412 nº 1 e 2, 413º ale), 414 do C.P.C
De resto não devemos ignorar que contra esta realidade, sem a intervenção de pessoas concretas, jamais se firmará caso julgado, sendo inútil a acção - Cfr. Ac. da R.C de 29.6.2006, do actual e il. Conselheiro, Vice-Presidente do STJ, Salazar Casanova: I - A acção proposta contra incertos não faz caso julgado quanto àqueles que não foram demandados. II - Um tal entendimento mantém-se actual. III - Daqui resultava bastar que o A. afirmasse - as pessoas a citar são incertas, ou não há interessados certos, ou a acção é dirigida contra incertos - para que o juiz devesse ordenar a citação por éditos, pois a lei dispensa a justificação, por parte do autor, de que as pessoas a citar são incertas, precisamente porque não impõe, como caso julgado, a quaisquer interessados, a sentença que vier a ser proferida na acção. IV- No entanto, a partir da revisão de 1995/1996, foi aditado no artigo 16.º, n.º 1 do C.P.C., a expressão” por não ter o autor possibilidade de identificar os interessados directos” e, assim sendo, nas acções contra incertos já não basta ao A invocar o desconhecimento da identidade desses interessados incertos, impõe-se-lhe ainda o ónus de provar que efectuou diligências 110 sentido de identificar tais interessados. V - Pretende-se, assim, viabilizar o contraditório efectivo dada a quase inutilidade prática de, por via da citação edital, se conseguir o acesso ao processo desses interessados.
Não sendo motivo de convite ao aperfeiçoamento por não se enquadrar na previsão do artº 397 do CPC, impõe-se o indeferimento liminar.
Pelo exposto, rejeita-se a petição inicial da presente acção com base nos argumentos que se “deixam”.
Custas pela A.
Notifique e registe».
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2 - A recorrente discorda do entendimento vertido no despacho transcrito, quanto aos seus dois argumentos principais:
- O de que os condóminos que aprovaram a deliberação são “perfeitamente identificáveis” através da análise da acta respectiva;
- O de que a acção foi mal direccionada porque introduzida “contra uma realidade insusceptível de ser parte”.
Vejamos, então.
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3 - A autora é proprietária de uma das fracções do dito edifício. Tem pois, a qualidade de condómina.
Sucede que, tendo sido desfavorável à deliberação em causa – que teve que ver com a cobrança de custos de gestão relativamente às partes comuns e do terraço onde ilegalmente tinham sido erguidas construções – é contra ela que ora se manifesta, com fundamento no art. 1350º, nº2, do Código Civil.
O despacho liminar em apreço, porém, entendeu que a acção foi mal dirigida contra os “condóminos incertos”, em vez de o ter sido contra os condóminos que aprovaram a deliberação, estes devidamente identificáveis.
Pois bem, para encurtar caminho, vamos seguir directamente para um aresto deste tribunal, de onde se destaca o seguinte:
«Como é sabido, a assembleia de condóminos tem personalidade judiciária, isto é, pode estar em juízo, ainda que a sua presença deva ser garantida pelo administrador (administração) ou por pessoa que a mesma assembleia designar. Por isso, a acção destinada a obter a anulação de deliberações tomadas pela assembleia de condóminos deve ser proposta contra o administrador do condomínio (Ac. R.P., de 08 de Fevereiro de 1993, Proc. nº 9220908; no mesmo sentido, o Ac. STJ, de 29/05/2007, Proc. nº 07A1484).
Aragão Seia disse o mesmo: “Face à actual redacção da al. e) do artigo 6º do CPC, em consonância com o nº 6 citado, diversamente do que acontecia antes da Reforma de 1995, o condomínio, ou seja, o conjunto dos condóminos, pode ser directamente demandado quando, designadamente, estejam em causa deliberações da assembleia, devendo o administrador ser citado como representante legal do condomínio – nº 1, do artigo 231º, do CPC –, embora a assembleia possa designar outra pessoa para prosseguir a acção” (in Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios -, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 216 e 217).
Desse sentido não se desviou Moitinho de Almeida ao ponderar: “Além das funções enumeradas no art. 1436º, compete também ao administrador, nos termos do art. 1433º, nº 6, a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas acções anulatórias de deliberações de condóminos” (in Propriedade Horizontal, pág. 98).
Sandra Passinhas alinha também nesse entendimento pois para si o administrador “age como representante orgânico do condomínio” e que “a deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados). E, sendo um acto do condómino, a legitimidade passiva cabe ao administrador” (in Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, pág. 337).
É neste enquadramento que se acha instituído o art. 1359º do CC (correspondente ao art. 1437º do CC de 1966), o qual, para alguma jurisprudência, se reporta à capacidade judiciária do condomínio, isto é à susceptibilidade de estar em juízo, que é assegurada pelo administrador, em representação daquele, mas que, fora das suas funções, ele (administrador) apenas pode agir em juízo quando devidamente autorizado pela assembleia de condóminos (Ac. STJ, de 3/03/2009, Proc. nº 7531/2008). O administrador dispõe de legitimidade, em representação do condomínio, como réu nas acções a que se refere o art. 1351º, nº4, ou como autor ou réu, nas acções a que se refere o art. 1359º do CC. É neste sentido que a “legitimidade” vem conferida neste normativo.
Verdade que não existe no ordenamento jurídico-processual de Macau norma equivalente à do art. 6º do CPC português. Todavia, a personalidade judiciária já resulta do art. 1359º do CC (cfr. neste sentido, embora reportados ao art. 1437º do CC de 1966, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág.21, nota 5 anotação ao referido art.º6º; sobre o assunto, tb. Ac. TSI, de 15/07/2009, Proc. nº 387/2009).
Vale a pena, achamos nós, transcrever o que sobre o tema foi exarado no Ac. STJ de 11/06/2008, Proc. Nº 08B27841:
“Por seu turno, o art. 1437º, ao contrário do que sugere o seu teor literal, refere-se, também ele, à capacidade processual e não à legitimidade adjectiva (ad causum) do condomínio. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no citado art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial. Fica claro, com o preceito em apreço, que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência, cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício. Como anota LUIS A. CARVALHO FERNANDES, “os poderes de representação do administrador não podem deixar de ser encarados e compreendidos à luz da falta de autonomia jurídica do condomínio. Correspondentemente, por referência à personalidade judiciária que lhe é reconhecida, do que no fundo se trata é atribuir, ao administrador, legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.”2.
O aludido normativo não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, visto que este age, em juízo, enquanto órgão executivo do condomínio, e, portanto, em representação deste. Parte no processo, relativamente às partes comuns do edifício – e é só destas que se cura – é o condomínio, sendo, pois, relativamente a este, e não no tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade.».
Efectivamente, a legitimidade é uma posição das partes face ao objecto do processo, que, nos termos do art. 26º do CPC, terá de se aferir, em acções propostas pelo administrador ou em que este seja demandado, “pelo interesse que o património comum que representa (e não ele próprio) tenha em demandar ou em contradizer – expresso, no primeiro caso, pela utilidade derivada da procedência da acção e, no segundo, pelo prejuízo que essa mesma procedência possa ocasionar.”
Fora do âmbito demarcado nos dois mencionados preceitos – o art. 6º/e) do CPC e o art. 1437º – e, designadamente, no campo da impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos, a questão, em termos de legitimidade, não respeita directamente ao condomínio a se – ente sem personalidade jurídica própria, e com a limitada personalidade judiciária assinalada, e, por isso, não dotado da possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em nome próprio, fora dos casos acima aludidos, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei – antes envolve os próprios condóminos, enquanto membros do órgão deliberativo que é a dita assembleia dos condóminos, à qual cabe, em primeira linha, a administração das partes comuns do edifício, e cujas deliberações, uma vez aprovadas e exaradas em acta, representam a vontade colegial e são vinculativas para todos eles, mesmo para os que na reunião não hajam participado, ou para os que, tendo participado, se hajam abstido na votação ou votado contra.
A questão da impugnação das deliberações é, pois, uma questão entre condóminos: a legitimidade para impugnar e para defender a deliberação radica, sem dúvida, nos próprios condóminos.” (Ac. TSI, de 27/03/2014, Proc. nº 513/2013; tb. Ac. TSI, de 5/06/2014, Proc. nº 147/2014).
Resulta da transcrição que a legitimidade passiva é conferida aos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação, embora representados judicialmente pelo respectivo administrador, na pessoa do qual são citados (neste mesmo sentido, ainda Abílio Neto, Manual de Propriedade Horizontal, 3ª ed., pág. 348-349; na jurisprudência os Acs. do STJ, de 6/11/2008, Proc. nº 09B2784; de 24/06/2008, Proc. nº 08A1755; de 20/09/2007, Proc. nº 07B787; Da Relação de Lisboa, de 12/02/2009, Proc. nº 271/2009).
Ora bem. A esta conclusão também chegou, e muito bem, portanto, o despacho ora sindicado.
A única divergência que o opõe à recorrente está na circunstância de ele ter considerado que os condóminos deveriam ter sido identificados (por serem identificáveis).
Ora, salvo o devido respeito, tanto quanto nos é dado perceber, o tribunal “a quo” ter-se-á deixado impressionar negativamente com o facto de a autora ter movido a acção contra os “condóminos incertos” do edif. XX.
Contudo, pensamos que esta forma de designar a parte passiva não está errada. Com efeito, se a acção, como se disse, deve ser dirigida contra os condóminos que tenham aprovado a deliberação impugnada, a identificação destes, tanto pode ser feita, se isso for fácil de obter quando poucos sejam os condóminos votantes, como não, quando forem largas as dezenas ou até centenas de participantes na assembleia. O que importa é que se caracterize bem a legitimidade com os contornos acima definidos, ou seja, que se diga que a acção é movida contra os que aprovaram a deliberação alegadamente ilegal, embora representados em juízo pelo administrador. Cremos que dessa forma estará assegurado o pressuposto processual em apreço.
Ora, isso foi o que a autora aqui fez. É certo que uma tal minúcia, uma tal referência específica, não consta do cabeçalho da petição. Contudo, não se duvida de que essa é, precisamente, a sua intenção expressa, tal como consta do art. 6º desse articulado. Aí está muito claramente dito que a acção é movida contra os condóminos que votaram a “deliberação vencedora”.
De resto, a autora também justificou nesse artigo da petição inicial a razão pela qual não identificou esses condóminos. E a razão, que se pode confirmar pelo documento de fls. 17-21, reside no facto de os nomes dos votantes não estarem mencionados na acta. E para que se não perdesse a possibilidade de a acção prosseguir a sua marcha, a autora teve por bem chamar “condóminos incertos”aos votantes (não identificados) que deliberaram a favor da tese vencedora. Ou seja, como não havia meio de se vir a identificá-los, nem mesmo com o auxílio do tribunal, através de diligência própria, o caso invocado pareceu à autora ser de “incerteza de interessados”, no sentido de que lhe era difícil ou impossível colher a sua identidade individual, face à ausência da identificação de cada um na acta da deliberação (sobre o conceito de interessados incertos, ver Ac. STJ, de 6/07/2005, Proc. nº 05B2025). Estamos de acordo.
Aliás, se fosse de entender que à autora seria imposta a necessidade de investigar “a posteriori” cada um dos presentes na assembleia que tivesse votado, sem que o nome deles constasse da acta, muito provavelmente, senão mesmo com toda a certeza, estaríamos defronte de uma impossibilidade material que, em última análise, a colocaria fora de tutela jurídica por uma culpa que lhe não podia ser assacada.
Por tal motivo, se a acção foi movida contra os condóminos (incertos = inidentificáveis) que votaram favoravelmente a deliberação, “neste acto representados pela administração, na pessoa do seu administrador B” (destaque nosso), parece não ter sido desrespeitado o disposto no art.1352º, nº2, do CC (cfr. tb. art. 51º, nº1, do CPC, que só não é chamado à colação em virtude de a norma do Código Civil citada resolver a se a situação da representação judiciária, sejam certos ou incertos os condóminos vencedores votantes).
Não vemos, por conseguinte, que mal processual tivesse cometido a autora a este respeito.
Eis, pois, como respeitosamente se nos afigura que o despacho liminar se não pode manter.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que mande proceder à citação, a não ser que a tanto outra qualquer causa obste.
Sem custas.
TSI, 27 de Abril de 2017
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
1 Tirado a propósito da legitimidade activa e passiva para a acção de anulação das deliberações sociais.
2 Cfr. “Da natureza jurídica do direito de propriedade horizontal”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 15 Julho/Setembro 2006, pág. 9.
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