Processo nº 281/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 27 de Abril de 2017
Recorrente: A. (Ré)
Recorrido: B (Autor)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Por sentença de 24/11/2016, julgou-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou-se a Ré A. a pagar ao Autor B a quantia de MOP$27,202.40, acrescida de juros moratórios à taxa legal.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
a) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
b) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
c) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
d) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
e) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
f) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3° e 9°;
g) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
h) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
i) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como "contratos de prestação de serviços";
j) Deles é possível extrair que a Sociedade "contratou" trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
k) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
l) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
m) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações;
n) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
o) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
p) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
q) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
r) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
s) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, n° 2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest);
t) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
u) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
v) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
w) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
x) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, n° 2 e 437º do Código Civil;
y) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer "condições mais favoráveis" emergentes destes contratos;
z) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
aa) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
bb) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação;
cc) Por outro lado, não se provou nos autos qual o número de dias de trabalho efectivo prestados pelo A. à R.;
dd) Ao decidir no sentido em que o fez, o Tribunal recorrido incorreu em errada interpretação da estipulação dos Contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228°, n° 1 do Código Civil;
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (A)
2) Desde o ano de 1992, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior», entre outros. (B)
3) Entre 02/03/1994 e 30/11/2001, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”. (C)
4) O Autor foi recrutado pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré ao abrigo do Contrato de prestação de serviços n.º 02/94 (cfr. doc. 1). (D)
5) Durante todo o período da relação de trabalho, a Ré nunca atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, tendo sido remunerado pela Ré com o valor de uma retribuição diária, em singelo. (E)
6) O Autor exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré, ininterruptamente, ao abrigo do contrato aludido em D). (1º)
7) Resulta do Contrato de Prestação de Serviço n.º 02/94 (aplicável ao Autor durante toda a relação laboral) que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir a quantia de MOP$15.00 diárias, a título de subsídio de alimentação. (2º)
8) Ao longo de toda a relação de trabalho entre a Ré e o Autor, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (3º)
9) Resulta do conteúdo dos «Contrato de Prestação de Serviço» n.º 02/94, aprovado pela DSTE, que os trabalhadores não-residentes ao serviço da Ré – e, em concreto o Autor, – teriam o direito a auferir, no mínimo, a quantia de MOP$90.00 por dia, por 8 horas de trabalho diárias, o que perfaz a quantia de MOP$2,700.00 por mês. (7º)
10) Entre Outubro de 1995 e Junho de 1997, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$1,700.00, mensais. (8º)
11) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de base, a quantia de MOP$1,800.00, mensais. (9º)
12) Entre Abril de 1998 e 30 de Novembro de 2001, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (10º)
13) Entre 13 de Novembro de 2000 e 30 de Novembro de 2001, o Autor trabalhou 12 horas de trabalho por dia, tendo a Ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário à razão de MOP$9.30, por hora. (11º)
14) Entre 13 de Novembro de 2000 e o final da relação de trabalho entre a Ré e o Autor, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (12º)
15) A Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor o gozo de um outro dia de descanso compensatório em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal. (14º)
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III – FUNDAMENTAÇÃO
1. Da imperatividade do Despacho nº 12/GM/88 e da natureza dos Contratos de Prestação de Serviço
Sobre as questões em causa, este Tribunal já se pronunciou de forma reiterada e unânime em vários processos do mesmo género (a título exemplificativo: cfr. Procs. nºs 722/2010, 876/2010, 805/2010, 837/2010, 574/2010, 774/2010, 838/2010, 396/2012 e 322/2013, de 07/07/2011, 02/06/2011, 30/06/2011, 16/06/2011, 12/05/2011, 19/05/2011, 16/06/2011, 13/09/2012 e 25/07/2013, respectivamente), tendo concluído pela improcedência dos referidos argumentos do recurso.
Com a devida vénia e a propósito de situações iguais às que ora nos ocupam, consideramos aqui por reproduzidos os fundamentos já exarados nos arestos acima referidos, dispensando-se da respectiva transcrição, por ser uma jurisprudência já bem conhecida, especialmente por parte da Ré.
2. Das diferenças salariais e do trabalho extraordinário
Com a improcedência dos argumentos do recurso referidos no ponto 1, não temos qualquer margem de dúvida em afirmar que o Autor tem direito a receber da Ré as quantias condenadas àqueles títulos.
3. Do subsídio de alimentação
Para além de invocar a ineficácia do Despacho nº 12/GM/88 e dos Contratos de Prestação de Serviço para atribuir ao Autor o direito a este subsídio (matéria esta que já foi julgada improcedente nos termos anteriores), invoca ainda a Ré que o referido subsídio carece de uma efectividade de serviço, pelo que não estando provados os dias em que o trabalho foi efectivamente prestado, não podia a sentença tê-la condenado no pagamento de todos os dias por que durou a relação laboral.
Sobre esta questão, este Tribunal tem entendido em processos congéneres no sentido de que a atribuição do referido subsídio depende da prestação efectiva do serviço (cfr. Ac. do TSI, de 25/07/2013, Proc. nº 322/2013).
No caso em apreço, não se sabe o número de dias de trabalho efectivo, mas isto não determina a absolvição da Ré tal como é pretendida, uma vez que não temos qualquer dúvida de que a Ré tem a obrigação de pagar, só que não sabemos, por falta de elementos nos autos, qual a sua quantia exacta.
Nesta conformidade e tendo em conta o disposto do nº 2 do artº 564º do CPCM, ex vi do artº 1º do CPT, a Ré deve ser condenada no que se liquidar em execução da sentença.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- conceder parcial provimento ao recurso da Ré, revogando a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$5,745.00, a título de subsídio de alimentação, passando a condenar a Ré a pagar ao Autor o montante que vier a liquidar-se em execução de sentença; e
- confirmar a sentença na parte restante.
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Custas pelas partes em ambas as instâncias na proporção do decaimento.
Notifique e D.N.
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RAEM, aos 27 de Abril de 2017.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
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281/2017