Processo nº 344/2017 Data: 11.05.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
In dubio pro reo.
Leitura de declrações.
Acta de julgamento.
Nulidade (sanável).
Medida da pena.
Teoria da margem da liberdade.
SUMÁRIO
1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.
2. O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
3. Constitui “nulidade” a omissão da menção em acta de julgamento da permissão e justificação legal da leitura em audiência de declarações anteriormente prestadas; (cfr., art. 377°, n.° 8 do C.P.P.M.).
4. Todavia, não se tratando de uma “nulidade” do art. 106° do C.P.P.M., há que dar a mesma por sanada se não for tempestivamente arguida; (cfr., art. 107°, n.° 3 do dito C.P.P.M.).
5. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art. 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 344/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência colectiva no T.J.B. responderam A, B e C, (1°, 2° e 3°) arguidos com os restantes sinais dos autos.
A final, decidiu o Tribunal:
–– condenar o (1°) arguido A, como co-autor da prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão; e,
–– condenar os (2° e 3°) arguidos B e C, como co-autores da prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da mesma Lei n.° 17/2009, na pena individual de 12 anos de prisão; (cfr., fls. 635 a 650 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, os arguidos recorreram.
Os (1° e 2°) arguidos A e B, consideram (apenas) que “excessiva é a pena”; (cfr., fls. 671 a 678 e 679 a 688).
O (3°) arguido C, é de opinião que a decisão recorrida padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “violação do princípio in dubio pro reo”, pedindo, também, a redução da pena; (cfr., fls. 730 a 769).
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Respondendo, e, posteriormente, em sede de Parecer, diz o Ministério Público que o recurso do (3°) arguido C merece parcial provimento, pugnando pelo não provimento dos recursos dos (1° e 2°) arguidos A e B; (cfr., fls. 790 a 791-v, 792 a 793-v, 794 a 797 e 815 a 818).
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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 640-v a 645, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem os (1° a 3°) arguidos A, B e C recorrer do Acórdão do T.J.B. que os condenou nos termos atrás já referidos.
Entendem os (1° e 2°) arguidos A e B que “excessiva é a pena” que lhes foi aplicada.
O (3°) arguido C, é de opinião que incorreu o Colectivo a quo no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e violação do “princípio in dubio pro reo”, pedindo também a redução da pena.
–– Comecemos, assim, como parece lógico, por este último recurso, (do 3° arguido), e pelo assacado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.
Repetidamente temos afirmado que o dito vício apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016 e de 16.03.2017, Proc. n.° 164/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão, e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).
Motivos não havendo para se alterar este entendimento que se tem como adequado, evidente se apresenta a improcedência do recurso na parte em questão.
Com efeito, o Tribunal a quo, cumprindo o dever que lhe cabia, emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo – thema decidendum – “elencando os factos que julgou provados”, consignando (expressamente) que “não houve matéria de facto por provar”, (cabendo notar que as contestações apresentadas foram meramente “tabelares”, cfr., 597 e 598), justificando, igualmente, o assim decidido, necessárias não se apresentando mais alongadas considerações sobre a questão.
Quanto à imputada violação do “princípio in dubio pro reo”, a mesma se apresenta a solução.
“O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 22.09.2016, Proc. n.° 528/2016, de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016 e de 16.03.2017, Proc. n.° 867/2016).
Por sua vez, e como entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.° 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, Proc. n.° 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
Face ao consignado, e (igualmente) esclarecido o sentido e alcance do invocado princípio, há pois que dizer que não se incorreu na sua violação, pois que basta uma leitura ao Acórdão recorrido para se constatar que em momento algum teve o Colectivo a quo “dúvidas” ou “hesitações” quanto à culpabilidade do (3°) arguido ora recorrente, tendo, mesmo assim, decidido em seu desfavor ou prejuízo.
Cremos, aliás, que confunde o recorrente a “fundamentação” pelo Colectivo a quo apresentada para justificar a sua convicção quanto ao seu envolvimento e comparticipação na prática do crime de “tráfico”, matéria dos presentes autos, com o que considera a imputada “violação ao princípio in dubio pro reo”.
Aqui chegados, outra questão importa resolver.
Vejamos.
Nos termos do art. 338° do C.P.P.M.:
“1. A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz ou o Ministério Público, houver contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.
2. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 e 8 do artigo anterior”.
Por sua vez, prescreve o n.° 8 do art. 337° que “A permissão de uma leitura e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade”.
No caso dos autos, resulta da fundamentação pelo Tribunal a quo exposta no seu Acórdão que em julgamento foi efectuada a leitura das declarações anteriormente prestadas pelo (1°) arguido A.
Porém, como o diz a recorrente e no mesmo sentido se nota na Resposta e Parecer do Ministério Público, não se fez constar tal leitura na respectiva acta de julgamento.
Que dizer?
Pois bem, que se incorreu em “nulidade”, é evidente, pois que assim resulta (literalmente) do estatuído no transcrito art. 337°, n.° 8 do C.P.P.M..
Contudo, cabe dizer que esta nulidade não é uma “nulidade absoluta” ou “insanável”.
Com efeito, não se tratando de uma “nulidade” do art. 106° do C.P.P.M., impõe-se considerar ser a mesma “sanável”; (cfr., art. 107°, n.° 1 do C.P.P.M. e, L. Henriques, in “Anot. e Com. ao C.P.P.M.”, Vol. II, pág. 694).
Assim, importa ponderar no seu (regime e) prazo de arguição.
Nos termos do art. 107°, n.° 3 do dito C.P.P.M.:
“As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até 10 dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até 10 dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais”.
Ora, no caso, a nulidade em questão apenas vem referida em sede do recurso do (3°) arguido C; (cfr., concl. XXVI).
E, assim sendo, há que ter a aludida nulidade por sanada por falta de oportuna arguição.
Com efeito, os 3 arguidos, que foram julgados presencialmente e estiveram assistidos pelos seus Defensores, nada disseram em relação à necessidade de se fazer constar em acta a leitura que se efectuou das anteriores declarações do (1°) arguido A.
E, nesta conformidade, constatando-se que a “questão” apenas vem colocada em sede do recurso do (3°) arguido C, à vista está a solução; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 03.03.2010, Proc. n.° 11/04, onde se consignou que “(…) a permissão de uma leitura e a sua justificação legal, ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.
Trata-se de nulidade dependente de arguição e sujeita ao regime do art. 120.º, n.ºs. 1 e 3, do CPP. Portanto, quando da acta não conste, tal acto será nulo e, por consequência e por derivação, tal acarretará a proibição da sua valoração.
Todavia, resultando claro dos autos que os arguidos estiveram presentes na audiência de julgamento e não arguiram em qualquer ocasião, a referida nulidade, é de concluir que estes a aceitam expressamente e tal nulidade está sanada, pelo que o acto ficou válido, nada impedindo que a prova assim obtida possa ser valorada na decisão recorrida”, in “www.dgsi.pt”, podendo-se ver também o Ac. do S.T.J. de 12.03.1992, B.M.J., n.° 415-464, citado por P.P. de Albuquerque in “Com. ao C.P.P.”, pág. 875) .
Em face do exposto, e sanada estando a aludida “nulidade por falta de menção em acta (da permissão e justificação legal) da leitura” das anteriores declarações do 1° arguido, nada impede que a “prova” assim obtida possa ser valorada para efeitos de convicção e decisão, como efectivamente sucedeu.
Assim, motivos não havendo para se não dar como boa a decisão da matéria de facto (provada), (e desta forma, razões não havendo para se acolher uma também peticionada “renovação da prova”), continuemos.
–– Vejamos agora das “penas” impostas ao (1°) arguido A, condenado na pena de 9 anos e 6 meses de prisão, e aos (2° e 3°) arguidos B e C, condenados na pena de 12 anos de prisão.
Pois bem, como sabido é, ao crime de “tráfico de estupefacientes” cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8° da Lei n.° 17/2009).
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Temos vindo a entender que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.01.2017, Proc. n.° 530/2016, de 09.03.2017, Proc. n.° 180/2017 e 23.03.2017, Proc. n.° 241/2017).
E, acompanhando o Tribunal da Relação de Évora, temos igualmente considerado que:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 12.01.2017, Proc. n.° 795/2016, 09.03.2017, Proc. n.° 180/2017 e 23.03.2017, Proc. n.° 241/2017).
Recentemente, e no mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
Parente isto, que dizer?
Ora, tendo presente a moldura penal para o crime de “tráfico” – 3 a 15 anos de prisão, cfr., art. 8° da Lei n.° 17/2009 – e ponderando na factualidade dada como provada, cremos que não se pode acolher as pretensões dos ora recorrentes em ver as suas penas reduzidas.
No caso, provado está que agiram com dolo directo e (muito) intenso, (em “comparticipação”), sendo muito elevado o grau de ilicitude da sua conduta, pois que não sendo residentes de Macau, para aqui se deslocaram, em conformidade com um plano préviamente traçado, (e que a factualidade provada revela tratar-se de um “grupo organização com contactos a nível internacional”), transportando e introduzindo estupefaciente em Macau, tendo sido detectados com – note-se – 3.892,00 gramas de “Cocaína”, (quase 4 kilos).
Por sua vez, face aos graves malefícios e prejuízos que o crime de “tráfico de estupefacientes” causa para a saúde pública, evidentes se mostram as (fortes) razões de prevenção criminal.
E, nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, motivos não se vislumbram para qualquer redução das penas, sendo de se julgar improcedentes os recursos apresentados.
*
Uma última nota.
Verifica-se que ao (1°) arguido A foi aplicada uma pena mais leve que as decretadas aos (2° e 3°) arguidos B e C.
E tendo-se presente tal “diferença”, considera-se adequado consignar que nos termos do art. 28° do C.P.M. “Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”, sendo de notar também que os recursos trazidos a este T.S.I. foram interpostos pelos (3) arguidos, e que vedado está a esta Instância um eventual agravamento da pena em virtude do “princípio da proibição da reformatio in pejus”; (cfr., art. 399° do C.P.P.M.).
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça de 4 UCs para os (1° e 2°) arguidos A e B, e de 8 UCs para o (3°) arguido C.
Honorários aos Exmos. Defensores dos (1° e 2°) arguidos no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 11 de Maio de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 344/2017 Pág. 22
Proc. 344/2017 Pág. 3