Proc. nº 148/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 18 de Maio de 2017
Descritores:
-Princípio do contraditório
-Dever de fundamentação
SUMÁRIO:
I. O princípio do contraditório previsto no art. 3º do CPC, que, entre outras coisas, visa evitar confrontar os interessados com uma decisão surpresa, apenas deve observado apenas quanto às partes, o que equivale a dizer aos sujeitos processuais de um processo específico em curso.
II. Se um despacho recai sobre uma pretensão determinada, e se ele se limita a deferi-la sem adicionais considerandos, parece claro que a decisão que assim procede está a acolher também a fundamentação em que a pretensão se louva, o que significa que está a observar o disposto no art. 108º, nº2, do CPC.
Proc. nº 148/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
“A Bank Limited” com os demais sinais dos autos, instaurou execução ordinária no TJB (Proc. nº CV2-09-0130-CEO) contra “B Limitada”.
No âmbito dessa execução ordinária “C Association”, deduziu embargos de terceiro, que foram julgados improcedentes por decisão transitada em julgado.
Foi decretado arresto sobre a fracção autónoma “XXX” para indústria, que corresponde ao andar XX andar XX, do prédio sito nos nºs 175, 181, da Avenida da Concórdia, 4, 10, 20, 44 e 48, 176 da Rua Conselheiro Borja e 31 da Travessa Norte do Patane, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 21915, a fls. 106v, livro B106, inscrito matriz predial da freguesia de N. Senhora de Fátima sob o artigo nº 070593.
O arresto foi decretado no âmbito de procedimento cautelar que correu termos sob o número de processo CV3-09-0010-CPV, no 3º Juízo Cível do TJB, que entretanto foi apensado aos autos de execução.
O arresto foi entretanto convertido em penhora no âmbito dos autos principais de execução ordinária acima referidos.
Nessa execução “A Bank Limited” e o fiel depositário D requereram que fosse notificada a embargante “C Association” para proceder à desocupação da fracção “XXX” e á entrega das chaves em 5 dias, sob pena de desobediência.
Por despacho de 9/05/2016 foi o pedido deferido.
É contra este despacho que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente “C Association” formulou as seguintes conclusões:
“ I. Vem o presente Recurso interposto do despacho de fls. 604 do qual consta Fls. 602 e 603: Deferido (art. 725.º do CPC).
II. Por sua vez, através o requerimento de fls. 602 e 603 o Banco Exequente pede que o tribunal proceda à “notificação da embargante “C Association” paro proceder à desocupação da Fracção “XXX” e à entrega das chaves em 5 (cinco) dias úteis, sob pena de desobediência.”
III. À ora Recorrente não foi dada a possibilidade de se pronunciar acerca do requerimento de fls. 602 e 603 apresentado pelo Banco Exequente, tendo o douto Tribunal a quo deferido as pretensões constantes do mesmo através do despacho que ora se recorre.
IV. A garantia do exercício do direito do contraditório, que se encontra plasmado no artº 3º, nº 3, do CPC, visa, como princípio estruturante de todo o nosso processo civil, evitar “decisões surpresa”, ou seja, baseadas em fundamentos que não tenham sido previamente considerados pelas partes e, consequentemente, reforçar, assim, o direito de defesa.
V. No requerimento de fls. 602 e 603, são imputados comportamentos à ora Recorrente que mereciam lhe fosse dado o direito de resposta, assim como é pedida a sua condenação na prática de actos que lhe são desfavoráveis.
VI. O douto Tribunal a quo não aponta quaisquer razões, quer sejam de urgência quer sejam de desnecessidade, para assim relegar à ora Recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre o requerimento de fls. 602 e 603 antes de proferir o despacho sob recurso.
VII. Foi assim a ora Recorrente confrontada com uma decisão surpresa que defere a pretensão do Banco Exequente.
VIII. Estando esta nulidade a coberto de uma decisão judicial, podendo assim ser impugnadas no recurso da decisão que lhes deu cobertura
IX. Face ao supra exposto, por violar o princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, deve o despacho sob recurso ser declarado nulo.
X. No requerimento de fls. 602 e 603 onde, a final, o requerente pede ao Tribunal a quo: “notificação da embargante “C Association” para proceder à desocupação da Fracção “XXX” e à entrega das chaves em 5 (cinco) dias úteis, sob pena de desobediência.”, a resposta do Tribunal a quo foi: “Fls. 602 e 603: Deferido (art. 725.º do CPC).”
XI. Salvo devido respeito, não se alcança o sentido do Despacho recorrido, pois não se compreende se o referido despacho ordena a entrega da chave no prazo de 5 (cinco) dias úteis, sob pena de desobediência, ou se, determina a realização das diligências a que se refere o artigo 725.º do CPC, as quais, de resto não foram objecto do requerimento de fls. 602 a 603.
XII. A não percepção do alcance do Despacho recorrido prende-se com a sua manifesta falta de fundamentação, a qual, de resto, salta à vista.
XIII. A fundamentação de uma decisão é um elemento essencial que visa permitir aos destinatários da mesma compreender os motivos por que foi assim tomada, o seu alcance e consequências e a fundamentação de qualquer decisão judicial visa permitir aos seus destinatários o exercício do fundamental direito de reagir contra qualquer decisão que os afecte de uma forma consciente e esclarecida.
XIV. Assim, atento o teor do despacho recorrido, salvo devido respeito que é muito, salta à vista a sua falta de fundamentação o que conduz também à sua nulidade, por violação do já supra citado artigo 108.º do CPC.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. douta mente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente e ser o despacho recorrido declarado nulo.
Termos em que farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA! ”.
*
Respondeu ao recurso o exequente “A Bank Limited”, que concluiu as suas alegações da seguinte maneira:
“ 1. O presente recurso tem por objecto o despacho de fls. 604, em concreto da decisão do Tribunal a quo em deferir o pedido formulado pelo Exequente, ora Recorrido, a fls. 602 e 603.
2. O recurso foi admitido por despacho de fls. 672 e 673.
3. Ao contrário do defendido pela Recorrente, o despacho ora recorrido é uma decisão acertada e insusceptível de recurso, muito menos pode proceder com os fundamentos apresentados.
4. Por essa razão, o recurso sub judice está condenado ao insucesso.
5. Antes de mais, importa requerer ao Venerando TSI que altere o efeito do presente recurso e determine que o mesmo deve subir em separado.
6. A Recorrente requereu que o presente recurso tivesse “subida imediata em separado”, e que tivesse efeito suspensivo.
7. O Tribunal a quo aceitou o recurso e fixou o efeito suspensivo, no entanto nada referiu quanto à subida nos próprios autos ou em separado.
8. Ora, com o devido respeito por opinião contrária, o presente recurso não pode ter efeito suspensivo, pois não cabe nos casos mencionados no art. 607.º do CPC.
9. Acresce que, conforme referiu, a Recorrente não é parte nos presentes autos principais, não lhe assistindo nenhum direito na Execução.
10. E também não é embargante, nem sequer credora reclamante.
11. Na verdade, a Recorrente viu serem-lhe negados, em juízo e por diversas vezes, quaisquer direitos sobre a Fracção “XXX”.
12. Quer em sede de embargos de terceiro, quer em sede de alegado direito de retenção.
13. Pelo que, se não tem quaisquer direitos sobre a Fracção “XXX”, não se vislumbra nenhum prejuízo irreparável ou de difícil reparação que possa advir da entrega efectiva ao Fiel Depositário.
14. Assim, obviamente que não há fundamento legal para a atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
15. Sendo que, nesse caso, deverá ser atribuído efeito meramente devolutivo.
16. Acresce que, o presente recurso deverá sempre subir em separado.
17. Desde logo porque, não tendo efeito suspensivo, não cabe obviamente no âmbito do disposto no art. 603.º do CPC.
18. Mas mesmo que tivesse efeito suspensivo, suspenderia a instância apenas quanto ao bem em causa, i.e. a Fracção “XXX”.
19. Devendo a Execução prosseguir os seus termos quantos aos demais bens penhorados.
20. Ou seja, deverá sempre subir em separado nos termos e para os efeitos do art. 604.º do CPC.
21. Mas feito este ponto prévio, analisemos agora as razões pelas quais o presente recurso deverá ser julgado totalmente improcedente.
22. Importa referir alguns factos para enquadrar melhor a questão ora em apreço.
23. Primeiramente, a Recorrente não é parte nos presentes autos de execução.
24. Depois, a Fracção “XXX” está arrestada e penhorada a favor do Exequente, ora Recorrido, desde 2009.
25. No entanto, a mesma está a ser ocupada ilegalmente pela Recorrente.
26. A Recorrente passou a ocupar ilegitimamente a Fracção “XXX”, sem qualquer título ou fundamento legal, razão pela qual foram julgados totalmente improcedentes, por não provados, os embargos de terceiro que correram termos no âmbito do Apenso B.
27. Acresce ainda que, a Recorrente havia reclamado créditos no âmbito do Apenso D com base num alegado direito de retenção sobre a Fracção “XXX”, o qual não lhe foi reconhecido.
28. Cumpre ainda chamar a atenção para o facto de há mais de 6 anos que a Recorrente não faz mais do que - ilicitamente - impedir que o Exequente, ora Recorrido, consiga proceder à venda da Fracção “XXX” para satisfação parcial do seu crédito.
29. Com efeito, em vez de desocupar a Fracção “XXX”, a Recorrente intentou o presente recurso numa última tentativa de fazer perdurar a situação de ocupação ilegal que vem fazendo e impedir a venda da mesma.
30. Importa ainda salientar que a ocupante da Fracção “D12”, numa situação em tudo idêntica à da Recorrente, já procedeu à sua desocupação e entrega das chaves.
31. Em face do exposto, resulta por demais evidente que estamos perante uma diligência dilatória por parte da Recorrente.
32. Feito este enquadramento, vejamos então em concreto as razões pelas quais deve ser julgado improcedente o presente recurso.
33. Conforme referido supra, a Recorrente não é parte nos autos.
34. Pelo que, só o Exequente, ora Recorrido, e a Executada podem promover diligências e reclamar das decisões proferidas pelo Tribunal a quo no âmbito da Execução.
35. Assim, a Recorrente não tem legitimidade de parte para recorrer.
36. Por outro lado, a Recorrente não concretiza em que medida se considera directa e efectivamente prejudicada, e a sê-lo a que título é que teria legitimidade para interpor recurso.
37. À excepção de reconhecer no requerimento de interposição de recurso que se recusa a entregar a Fracção “XXX” que sabe perfeitamente não ter título para ocupar, a Recorrente não diz uma palavra a respeito do alegado prejuízo nas suas alegações de recurso.
38. Note-se, aliás, que há muito que a Recorrente sabia que tinha que desocupar a Fracção “XXX”.
39. Tinha a obrigação legal de o fazer!
40. Não se vislumbrando, pois, em que medida se pode aceitar a alegação de que, por continuar a ocupar ilegalmente a Fracção “XXX”, é prejudicada pelo despacho a ordenar a entrega efectiva da mesma.
41. Pelo que, a Recorrente também não tem legitimidade para recorrer de terceiro.
42. Aliás, as únicas partes prejudicadas com toda esta situação estão a ser exclusivamente o Exequente, ora Recorrido, e, bem assim, a Executada.
43. Mas mesmo que assim não se entenda - o que não se aceita, mas apenas se concede por mero dever de patrocínio -, o recurso não ter provimento porquanto nenhum dos fundamentos apresentados pela Recorrente é válido.
44. Antes de mais, importa chamar a atenção para o facto de a Recorrente ter recorrido nos termos do art. 817.º, n.º 1, al. b), do CPC, disposição legal que só é aplicável a despachos proferidos no âmbito de apensos de embargos de terceiro e de graduação de créditos.
45. Esta situação só por si, e salvo melhor opinião, é suficiente para rejeitar o recurso interposto pela Recorrente.
46. Dito isto, e conforme já mencionado supra, a Recorrente recorreu com base num alegado prejuízo de difícil reparação.
47. No entanto, sobre esse ponto nem uma palavra nas suas alegações de recurso.
48. Por outro lado, a Recorrente vem alegar ter havido uma suposta decisão “surpresa” e, por isso, violação do princípio do contraditório por parte do Tribunal a quo.
49. Porém, tal alegação da Recorrente não tem qualquer suporte legal que a sustente na medida em que o art. 3.º, n.º 3, do CPC, só é aplicável a quem é parte no processo.
50. E nunca a terceiros, nomeadamente a quem é estranho à causa objecto dos autos e está à margem do processo.
51. Não houve assim, pois, qualquer violação legal por parte do Tribunal a quo ao ter proferido o despacho ora recorrido sem ter ouvido a Recorrente.
52. Muito pelo contrário!
53. O despacho ora recorrido é um despacho típico de mero expediente com vista à prossecução dessa finalidade.
54. A Recorrente, por estar a ocupar (ilegalmente) o imóvel penhorado, é a destinatária de uma ordem judicial e tem que cumprir com essa ordem.
55. Ora, os destinatários dos despachos judiciais não podem ser considerados “pessoas directa e efectivamente prejudicadas”.
56. Defender tese contrária seria admitir que qualquer terceiro destinatário de ordens judiciais pudessem não cumprir com as mesmas por se achar parte no processo ou directamente prejudicado.
57. Isto é, o Tribunal pode ordenar as diligências processuais adequadas, mas o destinatário das ordens teria sempre o direito de paralisar a marcha do processo.
58. Ora, tal não é assim... obviamente!
59. Mas mesmo que assim não se entenda - o que não se aceita, mas apenas se concede por mero dever de patrocínio -, também não é verdade que a Recorrente tenha sido confrontada com uma decisão “surpresa” conforme alega.
60. É que, conforme referido supra, a Recorrente reagiu em sede própria, nomeadamente através de embargos de terceiro e de reclamação de créditos (com base num alegado direito de retenção).
61. Sendo que, uma vez que os respectivos pedidos foram julgados improcedentes, certo é que a Recorrente bem sabe que tem que desocupar e entregar a Fracção “XXX” ao cuidado do fiel depositário.
62. Ou seja, o despacho ora recorrido é uma decisão tudo, menos “surpresa”.
63. É uma decisão expectável e é, de resto, a única decisão possível perante um ocupante ilegal que se recusa a entregar a fracção penhorada que ocupa sem qualquer título.
64. A Recorrente alega ainda ter havido falta de fundamentação do despacho ora recorrido, nomeadamente pelo facto de o Tribunal a quo ter deferido o pedido do Exequente, ora Recorrido.
65. Também aqui não assiste qualquer razão à Recorrente.
66. Desde logo, porque, salvo melhor opinião, não se trata de uma questão controvertida.
67. Primeiro, porque a Recorrente não é parte na execução, e se não é parte não há controvérsia possível.
68. Depois, recorde-se que o que está aqui em causa é um despacho do Tribunal a quo de deferimento do pedido de entrega efectiva, um despacho para regular os termos do processo.
69. Ou seja, um despacho irrecorrível.
70. Em suma, a Recorrente esgotou os meios de reacção possível e mantém a situação de ocupação ilegal, interpondo o presente recurso com único fito de impedir a marcha normal da execução.
71. Por outro lado, também não se aceita a alegação feita pela Recorrente de que não se entende o alcance da decisão ora recorrida.
72. Com todo o respeito, é perfeitamente claro o alcance do despacho ora recorrido: é cristalino!
73. O Exequente, ora Recorrido, há muito que pretende prosseguir com a venda de todas as fracções penhoradas nos autos, incluindo a Fracção “XXX” que continua a ser ilegalmente ocupada pela Recorrente.
74. O novo Fiel Depositário deslocado-se várias vezes à Fracção “XXX” (e à Fracção “D12”) no sentido de a guardar e administrar.
75. Contudo, o novo Fiel Depositário viu-se impossibilitado de exercer os seus deveres porquanto a Fracção “XXX” continua a ser ocupada ilegalmente pela Recorrente que se tem recusado a proceder à sua desocupação e entrega.
76. Pelo que, em 03.05.2016, o Exequente, ora Recorrido, e o Fiel Depositário vieram requerer novamente a entrega efectiva, desta feita demonstrando efectivamente as dificuldades encontradas - cfr. requerimento de fls. 602 e 603.
77. Dito isto, a verdade é que o requerimento de fls. 602 e 603 tem dois pedidos por parte do Exequente, ora Recorrido.
78. Em face desta explicação, facilmente se conclui que o despacho ora recorrido é, de facto, muito claro.
79. E quanto à referência feita ao art. 725.º do CPC, não só é perfeitamente perceptível o seu alcance, como é, aliás, uma menção que se mostra obrigatória precisamente para fundamentar a decisão do Tribunal a quo.
80. É que a referida disposição legal é aquela que regula a entrega efectiva, conforme havia sido requerido o Exequente, ora Recorrido.
81. Pelo exposto, não há qualquer violação do disposto no art. 108.º do CPC.
82. Por tudo o que acima se demonstrou, dúvidas não podem restar que o presente recurso da Recorrente está fadado ao insucesso.
83. Devendo, pois, o Venerando Tribunal julgar o mesmo totalmente improcedente.
84. Para terminar, o Exequente, ora Recorrido, vem reiterar o pedido de condenação da Recorrente em litigância de má fé.
85. Conforme mencionado supra, a Recorrente começou por deduzir embargos de terceiro contra o arresto que incidia sobre a Fracção “XXX” (posteriormente convertido em penhora), os quais foram julgados improcedentes.
86. Separadamente, a Recorrente apresentou reclamação de créditos, alegando ter um direito de retenção sobre a Fracção “XXX”, mas a respectiva acção também foi julgada improcedente.
87. Ou seja, mesmo sabendo que não lhe assiste nenhum direito relativamente à Fracção “XXX” e que não mantém nenhuma qualidade no âmbito dos presentes autos principais, nem nos respectivos apensos, a Recorrente continua a prejudicar os direitos do Exequente, ora Recorrido.
88. Fá-lo, sem sombra de dúvidas, consciente e deliberadamente.
89. Pelo que, facilmente se conclui estar-se perante um uso manifestamente reprovável dos meios processuais para atingir os direitos do Exequente, ora Recorrido, por alguém que sabe perfeitamente não ter quaisquer direitos sobre a Fracção “XXX”.
90. Em face do exposto, deve a ora Recorrente ser condenada como litigante de má fé e ao pagamento de uma multa em valor nunca inferior a MOP 100.000,00. (…)
NESTES TERMOS, deve o Venerando Tribunal alterar o efeito do recurso, determinando que o mesmo tem efeito meramente devolutivo, e que sobe em separado.
Em qualquer caso, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, e, em consequência, ser mantida a decisão recorrida.
Mais se requer a V. Exa. se digne condenar a Recorrente em litigância de má fé, com os fundamentos e nos termos acima referidos.”
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
Para melhor se perceber o iter processual alinhemos os principais desenvolvimentos processuais ocorridos no âmbito da execução ordinária referida no relatório do presente aresto:
- No âmbito dessa execução ordinária “C Association”, deduziu embargos de terceiro, que foram julgados improcedentes por decisão transitada em julgado (cfr. Ac. do TSI, de 5/11/2015, Proc. nº 252/2015: cfr. 712 e sgs. dos autos e 26 e sgs. do recurso).
- Foi decretado arresto sobre a fracção autónoma “XXX” para indústria, que corresponde ao andar XX andar XX, do prédio sito nos nºs 175, 181, da Avenida da Concórdia, 4, 10, 20, 44 e 48, 176 da Rua Conselheiro Borja e 31 da Travessa Norte do Patane, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 21915, a fls. 106v, livro B106, inscrito matriz predial da freguesia de N. Senhora de Fátima sob o artigo nº 070593.
- O arresto foi decretado no âmbito de procedimento cautelar de Arresto, que correram termos sob o número de processo CV3-09-0010-CPV, no 3º Juízo Cível do TJB, que entretanto foi apensado aos autos de execução.
- O arresto foi entretanto convertido em penhora no âmbito dos autos principais de execução ordinária acima referidos.
- A recorrente instaurou acção destinada a obter o reconhecimento do direito de retenção a que coube o Nº CV1-11-0034-CAO, no 1º juízo cível do TJB, que veio, porém, a terminar com uma sentença de homologação da desistência do pedido (doc. fls. 45, 46 e a certidão de fls. 113 e sgs.).
- No âmbito da execução a exequente e o fiel depositário requereram ao tribunal, em termos que aqui damos reproduzidos, que este ordenasse a notificação da recorrente para proceder à desocupação da fracção “XXX” e à entrega das respectivas chaves.
- O despacho proferido foi: “Fls. 602 e 603: deferido (artigo 725º do CPC)”.
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III – O Direito
1 – Da legitimidade da recorrente
Considera a recorrida que a recorrente não tem legitimidade para o recurso jurisdicional que interpôs, por não ser parte nos autos, por os embargos que deduziu terem sido julgados improcedentes e por lhe não ter sido reconhecido o direito de retenção sobre a fracção “XXX”, a qual assim está a ocupar ilegalmente.
Tal como referiu o Ex.mo juiz quando admitiu o recurso (cfr. fls. 70), uma coisa é a legitimidade para a impugnação, que lhe reconhece nos termos do art. 585º, nº2, do CPC, outra é o fundamento para a sua procedência. Efectivamente, mesmo sem ser parte principal no processo, a recorrente pode ser directa e efectivamente prejudicada pela decisão impugnada, na medida em que tem que abrir mão da fracção que vem a ocupar (art. 585º, nº2, do CPC).
De resto, e tal como reconheceu o acórdão proferido no Proc. nº 252/2015, deste TSI (doc. fls. 26), a recorrente tem posse sobre a dita fracção na sequência da celebração do contrato de compra e venda com a proprietária.
A legitimidade para o presente recurso, portanto, não é senão o prolongamento da legitimidade que lhe foi reconhecida para os autos de embargo e para o pedido de reconhecimento de direito de retenção na acção supra referida.
Não tem, pois, razão a recorrida.
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2 – Da base processual para o recurso
i) A recorrida considera que o recurso deve ser rejeitado, por ter sido fundado no art. 817º, nº1, al. b), do CPC, preceito apenas aplicável a despachos proferidos no âmbito dos apensos de embargos de terceiro e de graduação de créditos, o que não seria o caso.
Não é assim. O facto de ter citado uma disposição legal, que pode não ter aplicação para dar sustento e suporte à instauração do recurso, não é suficiente para a rejeição deste.
Efectivamente, o que o juiz deve fazer – mesmo que não invocado qualquer preceito para justificar o requerimento do recurso – é avaliar se a decisão é recorrível. E quanto a isso, pelo que se disse, estamos conversados: não há dúvida nenhuma acerca da recorribilidade do despacho posto em crise. O erro na indicação do preceito não compromete a pretensão recursória, nem compromete a sua apreciação.
ii) Da mesma maneira, a circunstância de não ter reiterado nas suas alegações o prejuízo de difícil reparação invocado na interposição do recurso em nada conduz necessariamente à improcedência, ao contrário do que defende o recorrido “A Bank Limited” a fls. 16.
São coisas distintas. A invocação do prejuízo de difícil reparação apenas foi feita como modo de convencer o tribunal a atribuir o efeito suspensivo ao recurso, o que até acabaria por ser acolhido num primeiro momento. Mas, essa circunstância, a que acresce a de a recorrente não ter insistido nessa tónica do prejuízo, não é factor substantivo de improcedência.
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3 – Do mérito do recurso
Foram dois os fundamentos da impugnação:
- O primeiro foi a violação do princípio do contraditório;
- O segundo foi a falta de fundamentação.
Vejamos.
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3.1 – Da violação do princípio do contraditório
Sustentando estar perante uma nulidade, acha a recorrente que antes do despacho recorrido ora em apreço, deveria ela ter sido notificada para se pronunciar, a fim de não ser, como diz ter sido, colocada perante uma decisão surpresa, o que em sua óptica contraria o disposto no art. 3º do CPC.
Não tem razão. Todo o art. 3º, quando obriga à observância do princípio do contraditório, visa conferir transparência à marcha processual, permitir a participação dos interessados nas decisões que os possam afectar, e evitar, portanto, decisões-surpresa. Assenta num pressuposto inquestionável: o de que o cumprimento do plasmado no preceito deve ser observado relativamente às partes no processo, o que equivale a dizer aos sujeitos processuais de um dado processo em curso.
Nem faria sentido que de outro modo fosse. Com efeito, numa acção que apenas opõe A a B não faz sentido ouvir C, alheio ao processo, estranho e terceiro à relação jurídico-processual-material.
A este respeito, acompanhamos de perto o que a recorrida teve oportunidade de argumentar. Se o art. 3º não fosse interpretado com a restrição indicada do ponto de vista subjectivo, então poderiam dizer-se interessados e merecedores de uma notificação, por exemplo, um banco a respeito de uma penhora de uma conta bancária de um cliente, ou os devedores do executado relativamente à penhora de montantes de que este seja credor. E sabemos que assim não é, uma vez que só os sujeitos processuais dos autos são litigantes num pleito que carece de solução.
Portanto, não sendo a recorrente parte no processo de execução, e tendo os embargos que deduziu sido julgados definitivamente improcedentes, a recorrente era estranha à causa e não tinha que ser notificada do requerimento formulado por A Bank Limited e D antes da decisão de deferimento de tal pretensão.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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3.2 – Da falta de fundamentação
Neste passo, e com base no art. 108º do CPC, a recorrente ainda chama à colação uma alegada falta de fundamentação na decisão judicial alvo do recurso.
E diz ainda que o despacho manda aplicar realizar as diligências a que se refere o art. 725º do CPC, sem, sequer, terem sido requeridas.
Discordamos. Antes de mais nada, a exequente e o fiel depositário, ao pedirem a entrega efectiva da fracção “B2”, fizeram-no expressamente “…nos termos e para os efeitos do ar. 725º do CPC” (fls. 66).
E quanto à fundamentação, se um despacho recai sobre uma pretensão determinada, e se ele se limita a deferi-la sem adicionais considerandos, parece evidente que a decisão que assim procede está a acolher também a fundamentação em que a pretensão se louva. Desse modo, a fundamentação do requerimento passa a ser concomitantemente a fundamentação da decisão.
Foi o que aconteceu no caso em apreço através daquilo a que poderemos chamar de remissão implícita. Mas, alem disso, o despacho invocou expressamente o art. 725º do CPC, circunstância adicional que serve de auxílio para adensar a concretização da fundamentação - que só a recorrente não vê – além de mostrar também a necessidade eventual de realizar as diligências ali previstas.
Isto quer dizer, em suma, que não estamos perante uma violação do dever de fundamentação, mas sim perante uma forma de fundamentar tal como prevista no art. 108º, nº2, do CPC.
Improcede, por isso, também este fundamento do recurso.
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4 – Da má fé
O exequente, ora recorrido, defende que a recorrente tem feito um reiterado, consciente e reprovável uso dos meios processuais, apesar de bem saber que não tem quaisquer direitos sobre a fracção “XXX”. Por tal motivo, e por tal comportamento estar a prejudicar os seus direitos, pede que a recorrente seja condenada como litigante de má fé.
Pensamos, porém, que, quer os embargos, quer a reclamação de créditos, quer ainda a acção ordinária que a recorrente instaurou com vista ao reconhecimento de um alegado direito de retenção sobre a coisa, são atitudes legítimas de quem se acha, mesmo erradamente, titular de um direito violado. Não é por não vingarem as causas judiciais em que alguém se envolve que o perdedor se diz automaticamente estar de má fé.
Dúvidas já são mais legítimas com a interposição do presente recurso recaído sobre um despacho que defere o pedido de notificação da recorrente para proceder à desocupação do prédio e entrega das chaves. Realmente, se a recorrente não tem direito de retenção sobre o prédio (por ter desistido do pedido na referida acção ordinária nº CV1-11-0034-CAO não mais poderá fazê-lo e, por isso mesmo, se ter extinguido o direito que ela pretendia fazer valer: art. 257º, do CPC) e se os embargos de terceiro que deduziu foram julgados improcedentes, então parece não ter mais motivos legais para se opor à desocupação.
Neste sentido, um recurso como este, sobretudo tendo em conta os fundamentos utilizados pela recorrente, centrados exclusivamente em razões adjectivas e formais (não observância do princípio do contraditório e falta de fundamentação) denota ter sido realmente apresentado como forma de impedir ou retardar o cumprimento do dito despacho. O que é censurável e caracteriza um exercício reprovável do processo (cfr. arts. 9º e 385º, do CPC).
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IV – Decidindo
1 - Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
2 - Pela má fé da recorrente, condenámo-la:
Na multa de 5 UC (art. 101º, nº2, RCT).
Por se nos afigurar que o mandatário teve responsabilidade pessoal na actividade que esteve na base da condenação por litigância de má fé, cumpra o disposto no art. 388º, do CPC.
Custas pela recorrente.
TSI, 18 de Maio de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
148/2017 23