Processo nº 340/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B) e C (C), (1° e 2ª) arguidos, com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B., vindo a ser condenados pela prática em co-autoria material de 1 crime de “fraude mercantil”, p. e p. pelo art. 28°, n.° 1, al. a) da Lei n.° 6/96/M, com a alteração dada pela Lei n.° 7/2005, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos; (cfr., fls. 470 a 475-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, os arguidos recorreram, com os seus recursos subindo outros dois “recursos interlocutórios” antes interpostos; (cfr., fls. 371 a 374, 380, 443 a 447, 467, 483 a 490 e 503).
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Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
2. Como se deixou relatado, com o recurso pelos arguidos interposto do Acórdão prolatado pelo Colectivo do T.J.B. subiram outros dois recursos antes interposto e já admitidos (para subir a final).
Um, o primeiro, tendo como objecto um despacho que indeferiu um pedido da (2ª) arguida C no sentido de se apurar se entre ela e o (1°) arguido B existia algum “contrato de trabalho”.
O segundo, sendo ambos os arguidos os recorrentes, tem como objecto uma decisão que indeferiu um pedido no sentido de se declarar a nulidade da apreensão efectuada nos autos.
Ponderando no teor das decisões recorridas, (cfr., fls. 362 e 435), e nas respectivas motivações e conclusões de recurso, cremos que se impõe a improcedência destes dois recursos interlocutórios.
Vejamos, muito não se mostrando de dizer.
2.1 Do “1° recurso interlocutório”.
Aqui, (e como se viu), está em causa uma decisão que indeferiu um pedido da (2ª) arguida C no sentido de se oficiar à Direcção dos Serviços de Finanças solicitando-se informação sobre a existência de (algum) “contrato de trabalho” entre a mesma e o (1°) arguido B.
Entendeu o Tribunal a quo que era tal diligência (evidentemente) irrelevante.
E, por nós, não merece censura.
Eis o porque deste nosso entendimento.
A acusação pública imputava ao (1°) arguido B o facto de “explorar e ser o responsável da agência de Medicina Singapura em Macau”, imputando à (2ª) arguida C o facto de ser a “responsável pela operação do negócio dessa agência”; (cfr., art. 1°).
E, afigurando-se-nos que a não existência, (ou existência), de um “contrato de trabalho” (formal) entre os arguidos, em nada altera o exercício (efectivo ou não) daquelas funções pelos arguidos, à vista está a solução.
Com efeito, e como nos parece evidente, não seria a “informação” solicitada que iria vincular o Tribunal a quo a decidir (num ou noutro sentido), notando-se pois que a “existência” ou “não existência” do dito “contrato de trabalho” não excluiria, (nem implicaria), necessáriamente, o exercício das funções imputadas aos arguidos, (certo sendo outrossim que o Tribunal a quo também não deu como provada a existência de qualquer “contrato de trabalho” entre os arguidos).
Aliás, a própria arguida, em declarações, reconheceu que “ajudou a agência, embora, sem receber qualquer remuneração…”.
Por sua vez, há que ter em conta a arguida C, ora recorrente acabou por juntar aos autos expediente da D.S.F. do qual constava que a agência em questão não tinha celebrado nenhum contrato de trabalho desde 1990, evidente se nos mostrando assim que se está também perante uma inutilidade superveniente do presente recurso.
Dest’arte, e esclarecida que nos parece estar a questão, mais não se mostra de dizer.
2.2 Do “2° recurso interlocutório”.
Neste (2°) recurso discute-se a validade de duas apreensões efectuadas pelos Serviços de Alfândega, alegando os arguidos que as mesmas não foram objecto de “validação por autoridade judiciária no prazo de 72 horas”, considerando-as nulas e pedindo que assim fosse declarado.
Considerando o Tribunal a quo que a falta de validação judiciária da apreensão não constitui “nulidade”, mas (mera) “irregularidade”, e que há muito que decorrido estava o prazo para a sua arguição, decidiu pois indeferir o requerido.
Ora, antes de mais, há que ter em conta que nos termos do art. 163°, n.° 5 do C.P.P.M.:
“As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de 72 horas”.
Contudo, importa também ter presente que no n.° 6 deste mesmo comando legal prescreve-se que “A apreensão que for autorizada, ordenada ou validada pelo Ministério Público é impugnável, no prazo de 10 dias, perante o juiz de instrução”.
Ora, constatando-se que em sede de Inquérito houve expressa validação pelo Magistrado do Ministério Público da apreensão a que se refere o auto de fls. 21, e certo sendo que não foi a mesma objecto de impugnação perante o Juiz de Instrução Criminal no prazo de 10 dias, vista está a solução em relação a esta apreensão.
Porém, e ainda que assim não fosse, na mesma não merece a decisão recorrida qualquer censura.
Vejamos.
Nos termos do art. 105° do C.P.P.M.:
“1. A violação ou a inobservância das disposições da lei processual penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
3. As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova”.
E sendo de confirmar que inexiste preceito que comina a alegada “falta de validação judicial” com o vício de nulidade, há pois que consignar que em causa está uma (mera) irregularidade, há muito sanada, porque não tempestivamente arguida; (nesse sentido, cfr., v.g., F. Gama Lobo, “C.P.P. Anotado”, 2015, pág. 302, e o Ac. da Rel. de Lisboa de 06.11.2007, Proc. n.° 4233/2007, e o da Rel. do Porto de 06.02.2013, Proc. n.° 6/07, podendo-se ver tb., P.P. Albuquerque, in “Comentário do C.P.P.”, pág. 487, que considera tratar-se de uma “nulidade sanável”, e que, em face do exposto, não altera a solução a que se chegou).
Por sua vez, e como bem se nota no douto Parecer do Exmo. Representante do Ministério Público, o “prazo de 72 horas” não é um “prazo para validação”, mas antes um “prazo de apresentação do apreendido para efeitos de apreciação (e eventual validação)”, (cfr., v.g., o Ac. Rel. do Porto de 07.11.2007, Proc. n.° 0745888), o mesmo sucedendo, aliás, com o prazo de “48 horas” previsto no art. 237° do C.P.P.M., sendo igualmente de notar que esta mesma validação não exige uma “decisão expressa e autónoma”, cumprindo-se a exigência legal sempre que houver no processo elementos que demonstram, de forma “inequívoca”, que a autoridade judiciária fiscalizou a legalidade das apreensões efectuadas, e que, embora de forma tácita, as tenha considerado válidas; (cfr., o cit. Ac. da Rel. de Lisboa de 06.11.2007, Proc. n.° 4233/2007).
Ora, no caso, a indicação dos “autos de apreensão” como elemento de prova pelo Ministério Público e a sua aceitação pelo Tribunal a quo, (cfr., fls. 323 a 324-v e 341), é também elucidativa da situação em apreço.
Continuemos.
3. Do “recurso do Acórdão”.
Como se deixou relatado, com o Acórdão do T.J.B. foram os arguidos condenados pela prática, em co-autoria material, de 1 crime de “fraude mercantil”, p. e p. pelo art. 28°, n.° 1, al. a) da Lei n.° 6/96/M, com a alteração dada pela Lei n.° 7/2005, na pena individual de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
No recurso do assim decidido, imputam os arguidos os vícios de nulidade do art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M., (por alteração da qualificação jurídica que constava na acusação sem prévio contraditório), “erro notório na apreciação da prova” e “violação do art. 39° da Lei n.° 6/96/M”.
–– Ponderando nas questões colocadas e nos efeitos processuais em caso da sua procedência, mostra-se de começar pelo assacado “erro”.
Vejamos.
De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.° 94/2016, de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016 e de 26.05.2016, proc. n.° 998/2015).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.03.2016, Proc. n.° 101/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016).
No caso dos autos, os documentos após audiência pelos recorrentes juntos, (para além de extemporâneos), não passam de meros documentos avulsos, (cópias), sem especial valor probatório, não implicando uma decisão da matéria de facto em determinado sentido, não se mostrando assim de considerar que, em conformidade com o alegado fundamento, tenha o Tribunal a quo violado – aqui – qualquer “regra sobre o valor das provas tarifadas” ou “regra de experiência” e/ou “legis artis”.
Contudo, e não obstante o que se deixou consignado, cremos que se terá de decretar o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Eis o porque deste nosso entendimento.
Como se deixou relatado, foram os arguidos, ora recorrentes, condenados pela prática em co-autoria material de 1 crime de “fraude mercantil”, p. e p. pelo art. 28°, n.° 1, al. a) da Lei n.° 6/96/M, com a alteração dada pela Lei n.° 7/2005, (embora estivessem acusados com referência à “alínea b) ” do mesmo art. 28°, e daí a invocada “alteração da qualificação jurídico-penal”, vício cuja apreciação se irá ter por prejudicada em virtude do que se exporá de seguida).
Nos termos do dito art. 28°:
“1. É punido com pena de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias quem, com intenção de enganar os consumidores nas relações negociais, e sem prejuízo dos usos e costumes do comércio, tiver em exposição para venda ou vender mercadorias:
a) Contrafeitas, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas;
b) De natureza diferente ou de qualidade ou quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem; ou
c) Com indicação do preço ou da unidade de medida, de forma que lhes possa causar confusão.
2. Havendo negligência, a pena é de prisão até 1 ano ou multa até 60 dias”.
Por sua vez, preceitua o art. 39° do mesmo diploma legal que:
“1. Nos processos instaurados pelos crimes previstos nos artigos 20.º, 21.º, 22.º e 28.º, há sempre lugar à produção de prova pericial.
2. A perícia é realizada no decurso do inquérito, podendo o arguido, o Ministério Público, o assistente e as partes civis designar um consultor técnico da sua confiança, o qual assiste e coadjuva na realização da perícia.
3. Se o consultor técnico for designado após a realização da perícia, apenas pode tomar conhecimento do relatório pericial.
4. Os depoimentos testemunhais dos consultores técnicos têm o valor de prova pericial.
5. O incumprimento do disposto nos n.os 1 e 2 constitui nulidade processual, a qual deve ser arguida, respectivamente, até ao encerramento da discussão em audiência de julgamento, ou até 5 dias contados da notificação do despacho de encerramento do inquérito”.
Em sede de audiência de julgamento, pelos ora recorrentes foi arguida a “falta de exame pericial”, (referido no transcrito art. 39°, n.° 1).
E, sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, mostra-se de acompanhar, na íntegra, o entendimento sobre a questão pelo Exmo. Representante do Ministério Público exposto no seu Parecer, já que, como aí se explicitou, não se alcança o que se consignou como fundamentação para a sua apreciação e decisão; (cfr., fls. 473-v a 474 e 560 a 562).
Com efeito, e como se consignou no referido Parecer do Ministério Público, a questão prende-se “(…) com o segmento em que o acórdão considerou a arguição tempestiva, por ter entendido que ocorria a nulidade resultante da inobservância do n.° 1 daquele artigo 39.°. Nesta parte, cremos existir incongruência inultrapassável na fundamentação. Na leitura que fazemos do acórdão, foi considerada procedente a arguição da nulidade por reporte ao crime de que os arguidos iam acusados, mas já o não foi para o crime por que vieram a ser condenados. Pois bem, estando em causa, em qualquer dos casos, crimes previstos no artigo 28.° da Lei 6/96/M – o da acusação previsto no n.° 1, alínea b), o da condenação previsto no n.° 1, alínea a) – e reportando-se o artigo 39.° indistintamente aos crimes previstos, entre outros, no artigo 28.°, fica sem se perceber o critério em que se louvou o tribunal para julgar procedente a arguida excepção apenas quanto ao crime constante da acusação, e adoptar uma postura incompatível com esse juízo quanto ao crime pelo qual acabou por condenar os recorrentes. (…)”.
Considerando nós que acertada está esta análise do decidido, impõe-se atento o estatuído no art. 418° do C.P.P.M., o reenvio do processo para novo julgamento, pois que, para além da aludida “contradição” na exposição dos fundamentos em sede de apreciação da questão, a mesma retira a necessária compatibilidade em relação à própria decisão de condenação proferida, notando-se, ainda, que tal “incompatibilidade” na fundamentação não deixa de inquinar a própria “decisão da matéria de facto”, uma vez, que foram julgados “provados todos os factos constantes da acusação”, o que, como se mostra evidente, apresenta-se também “incompatível” com a constatada nulidade por falta de exame pericial.
Assim, e outra solução não se vislumbrando que não seja o referido reenvio do processo para novo julgamento quanto à matéria que se deixou explanada, prejudicadas terão de ficar as restantes questões pelos recorrentes suscitadas.
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Aqui chegados, considera-se justificada uma última nota.
Verifica-se que em sede da acusação se fizeram constar “expressões conclusivas” e “conceitos de direito”.
Com efeito, afirma-se que … “todos os medicamentos em causa eram «falsos» e «contrafeitos»”; (cfr., art. 5°).
Certo sendo que aos arguidos se imputa a prática de 1 crime de “fraude mercantil” do atrás transcrito art. 28° (do “Regime Jurídico das infracções contra a saúde pública e contra a economia”), evidente se apresenta que inadequada é a sua inclusão no texto da acusação, e que, em sede do novo julgamento a efectuar no T.J.B., se deve providenciar por uma “densificação” – materialização dos aludidos “conceitos”, (até mesmo a fim de se proporcionar um efectivo direito ao contraditório e de defesa aos arguidos).
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face do que se deixou exposto, acordam julgar improcedentes os recursos interlocutórios, concedendo-se provimento aos recursos pelos arguidos interpostos do Acórdão, ordenando-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos exactos termos consignados.
Pelo respectivo decaimento, pagará o (1°) arguido B 5 UCs de taxa de justiça, suportando a (2ª) arguida C a taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 14 de Julho de 2016
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng (vencido, por ser de manter a decisão condenatória recorrida, até porque o julgamento do facto acusado respeitante à alteração da etiqueta do prazo de validade do produto em questão não carece da feitura da perícia sobre essa acusada alteração da etiqueta, porque este facto acusado não tem a ver com o juízo científico/técnico).
Proc. 340/2016 Pág. 20
Proc. 340/2016 Pág. 1