打印全文
Processo nº 875/2016
(Autos de recurso civil)

Data: 27/Abril/2017

Assuntos: - Regime de bens supletivo: Regime da participação nos adquiridos
- Consentimento de cônjuge na alienação de quotas sociais

SUMÁRIO
- Provado está que os cônjuges, à data do casamento, residiam em Macau e fixaram residência conjugal em Macau depois do casamento, e nada indica que os mesmos tinham outra residência senão em Macau, para além de ser Macau a primeira residência conjugal, conclui-se que ambos tinham residência habitual em Macau, sendo, assim, a lei de Macau a competente para definir o regime de bens dos mesmos, nos termos estatuídos nos artigos 51º e 30º do Código Civil.

- Segundo o regime de bens supletivo, que é o regime da participação nos adquiridos, cada um dos cônjuges tem o domínio e fruição tantos dos bens que lhe pertenciam à data da celebração do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens, ou seja, cada o seu titular pode dispor livremente destes bens próprios sem necessidade do consentimento do outro cônjuge, salvo caso de disposição da casa de morada de família.

- Na medida em que não se logrou demonstrar que as quotas sociais em litígio foram adquiridas com fundos pertencentes ao casal, antes está provado que foram realizadas por outra pessoa com dinheiro desta, a alienação dessas quotas pelo marido não carecia do consentimento da mulher.

- A norma do artigo 1548º do Código Civil tem por objecto a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família, o mesmo é dizer que o acto tem que incidir directamente sobre a casa de morada da família fazendo limitar ou até extinguir os direitos que os cônjuges tinham sobre essa casa.
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 875/2016
(Autos de recurso civil)

Data: 27/Abril/2017

Recorrente:
- A (Autora)

Recorridos:
- B, C, D, E e F (Réus)


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, Autora na acção declarativa sob a forma de processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial de Base, inconformada com a sentença final que julgou improcedentes os pedidos, dela interpõe o presente recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. A Autora e o Primeiro Réu contraíram casamento na República Popular da China, sem convenção antenupcial, em 22 de Janeiro de 2009 (como resulta provado na alínea “A” da matéria de facto assente).
2. Foi já depois da data do casamento que a Autora adquiriu o direito a residir em Macau, por obtenção do Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente de Macau – BIRNP n.º 1574493(1) -, emitido em 10 de Junho de 2013.
3. Para determinação da lei pessoal “(…) presume-se residente habitual no território de Macau aquele que tenha direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau.” (n.º 3 do art.º 30 do Código Civil – adiante “CC”), pelo que deve presumir-se que a Autora apenas se tornou residente habitual de Macau depois dessa data, 10 de Junho de 2013.
4. A definição de qual seja, na falta de convenção, o regime de bens legal, é feita pela lei do local onde o casamento é celebrado, que é também, nos termos do disposto no artigo 49º do Código Civil, a lei que regula forma do casamento.
5. Estabelecendo o artigo 51º do Código Civil que a substância e os efeitos das convenções antenupciais, ou regime de bens, sejam definidos pela lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento, ou da primeira residência conjugal, tal revela, apenas que o conteúdo e as consequências do regime de bens, legal ou convencional, serão definidos pela lei desse local.
6. O que significa que o regime de bens aplicável será determinado de acordo com as leis do local onde o casamento é celebrado, in casu, da República Popular da China, nos termos do disposto no artigo 49º do Código Civil e que a substância e os efeitos desse regime serão definidos de acordo com a lei da primeira residência conjugal, in casu, a lei de Macau, nos termos do disposto no artigo 51º do Código Civil.
7. Desse modo, nos termos dos artigos 17º, 18º e 19º da Lei de Casamento da República Popular da China, no âmbito dos casamentos celebrados sem convenção antenupcial, os bens adquiridos na constância do matrimónio são considerados bens comuns do casal.
8. Pelo que o regime de bens aplicável ao casamento entre a Autora e o Primeiro Réu equivalerá ao do regime da comunhão de adquiridos, regulado pelos artigos 1603º e seguintes do Código Civil que vigora em Macau.
9. Logo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 1603º e no n.º 1 do art.º 1606º, verifica-se que a quota com o valor nominal de MOP$2.500,00, representativa de 10% (dez por cento) do capital social da Quarta Ré e a quota com o valor nominal de MOP$2.500,00, representativa de 10% (dez por cento) do capital social da Quinta Ré, tendo sido constituídas pelo Primeiro Réu na constância do casamento em regime da comunhão de adquiridos (como resulta provado nas alíneas “D”, “E”, “F” e “G” da matéria de facto assente), são bens comuns em que a ora Autora e o Primeiro Réu são contitulares.
10. O n.º 2 do artigo 196º do Código Civil determina expressamente que “às coisas móveis sujeitas a registo público é aplicável o regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado.”
11. E o artigo 1548º regula especialmente que a alienação, oneração, locação ou constituição de outros directos pessoais de gozo sobre empresa comercial (n.º 1) e sobre a casa de morada de família (n.º 2), dependem do consentimento de ambos os cônjuges. Consentimento esse que não foi dado.
12. Estabelecendo, expressamente, o n.º 1 do artigo 1547º que a alienação ou oneração de móveis comuns, cuja administração caiba a ambos os cônjuges, carece do consentimento de ambos.
13. A alienação das participações sociais na Quarta e na Quinta Rés não se trata de actos de administração ordinária, e, como tal, carecem do consentimento de ambos os cônjuges.
14. Por último refira-se, ainda, que, enquanto titular da quota da sociedade Quarta Ré, o Primeiro Réu – e a Autora, com quem casou no regime a comunhão de adquiridos – detém direitos sobre um imóvel que é propriedade dessa sociedade (como resulta provado nas alíneas “I” e “J” da matéria de facto assente), e onde a partir de Abril de 2012, a Autora e o Primeiro Réu passaram a residir (como resulta provado na alínea “I” da matéria de facto assente).
15. Como tal, embora a quota subscrita pelo Primeiro Réu tivesse o valor nominal de MOP$2.500,00, atendendo a que aquela sociedade é proprietária de um imóvel de valor consideravelmente elevado, o valor dessa quota, no momento da sua transmissão, também tinha um valor consideravelmente mais elevado, pelo que, também por isso não podia o Primeiro Réu proceder à sua alienação sem o consentimento da Autora.
16. Por contratos celebrados em 12 de Fevereiro de 2014, o Primeiro Réu declarou ceder as quotas por si tituladas no capital social das Quarta e Quinta Rés, respectivamente, à Segunda Ré e ao Terceiro Réu, este seu pai, pelos valores nominais (como resulta provado na alínea “K” da matéria de facto assente).
17. Essas cessões de quotas foram registadas em 18 de Fevereiro de 2014 junto da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, através das apresentações n.ºs AP.41/18022014 e AP.66/18022014, respectivamente (como resulta provado na alínea “L” da matéria de facto assente).
18. A Autora não interveio nos acordos de transmissão daquelas quotas, nem deles teve conhecimento (como resulta provado na alínea “M” da matéria de facto assente).
19. Por outro lado, desde Abril de 2012, que a Autora e o Primeiro Réu passaram a residir na Rua de Coimbra, Edifício Nova City, Bloco 9, 9º andar “B”, Taipa (como resulta provado na alínea “I” da matéria de facto assente).
20. Essa fracção autónoma foi comprada pela Quarta Ré em 30 de Abril de 2013, data em que foi outorgada a escritura pública de compra e venda, datando de 15 de Maio de 2013 o respectivo registo da compra e venda junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, como consta de certidão junta a fls. 48 dos autos.
21. Assim, aquando da transmissão da quota da Quarta Ré para a Segunda Ré (12 de Fevereiro de 2014), foram também transferidos os direitos sobre o imóvel onde se encontrava instalada a casa de morada de família do casal.
22. Contudo, o artigo 1548º, n.º 2 do Código Civil, dispõe que “a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges”. Consentimento que não foi obtido.
23. Por outro lado, aquando da transmissão da quota da Quarta Ré para a Segunda Ré, foram, também, transferidos os direitos sobre o imóvel ou empresa comercial comuns ao casal.
24. Porém, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 1548º do Código Civil, “Carece de consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração, locação ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis ou empresa comercial comuns, sem prejuízo da lei comercial.”
25. A Autora nunca consentiu nas cessões de quotas da Quarta e da Quinta Rés (como resulta provado no artigo 3º da base instrutória).
26. Pelo que, ao abrigo do disposto pelo n.º 1 do artigo 1554º do Código Civil, os negócios jurídicos celebrados com preterição do consentimento conjugal são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu consentimento.
27. Daí que a Autora entenda que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1554º do Código Civil, deveria ter sido declarada a nulidade do contrato de cessão de quotas celebrado em 12 de Fevereiro de 2014, através do qual o Primeiro Réu cedeu à Segunda Ré.
28. Do mesmo modo e com o mesmo fundamento, deveria ter sido declarada a nulidade do contrato de cessão de quotas celebrado na mesma data, através do qual o Primeiro Réu cedeu ao Terceiro Réu a quota que detinha na Quinta Ré.
29. Consequentemente, deveriam, também, ser cancelados os registos de cessão de quotas da E, em chinês, E, Quarta Ré e da Empresa Comercial e Industrial Fu Wa, Limitada, em chinês, F, Quinta Ré, ambos requeridos mediante as apresentações n.ºs AP.41/18022014 e AP.66/18022014, respectivamente (como resulta provado na alínea “L” da matéria de facto assente).
30. O Segundo Réu e a Terceira Ré, aquando das referidas cessões de quotas, sabiam que o Primeiro Réu era casado com a Autora (como resulta provado no artigo 4º da base instrutória). Logo, também era do conhecimento do Segundo Réu e da Terceira Ré a necessidade do consentimento da Autora naquelas transmissões, pelo que não podem ser considerados adquirentes de boa-fé, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 284º do Código Civil, sendo-lhes oponível a anulação requerida.
31. Nos termos do n.º 1 do artigo 282º do Código Civil, a anulação do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
32. Por tudo a supra exposto e no mais que V. Exas. Doutamente suprirão, a Sentença recorrida viola, salvo o respeito devido por opinião diversa, o disposto nos art.ºs 49º, 50º, no n.º 3 do art.º 30º, no n.º 1 do art.º 1603º, no n.º 1 do art.º 1606º, no n.º 2 do art.º 196º, nos n.º 2 e n.º 3 do art.º 1543º, no n.º 1 do art.º 1547º, no n.º 1 e n.º 2 do art.º 1548º e no n.º 1 do art.º 1554º, todos do Código Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que conheça e dê provimento aos pedidos da Autora.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a douta decisão lavrada a fls. 356 a 367, ora recorrida, por violação dos artigos acima referidas e que se dão por reproduzidos, e substituída por outra que dê provimento aos pedidos da Autora, condenando os Réus nos pedidos.”
*
Ao recurso respondem os Réus, pugnando pela negação de provimento ao mesmo.
*
Corridos os vistos, cumpre apreciar.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A Autora e o Primeiro Réu, B, contraíram casamento na República Popular da China, sem convenção antenupcial, em 22 de Janeiro de 2009 (alínea A) dos factos assentes).
Antes do casamento a Autora e o Réu residiam em Macau mas em locais diferentes (alínea B) dos factos assentes).
Após o casamento, a Autora e o Primeiro Réu estabeleceram a residência familiar comum em Macau (alínea C) dos factos assentes).
Em 31 de Agosto de 2009, o Primeiro Réu e o seu pai, o Terceiro Réu, D constituíram a sociedade comercial por quotas denominada E, em chinês, E e, em inglês, E, a Quarta Ré, com sede em Macau, na Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida, n.ºs 108 a 110, Edifício Pak Wai, rés-do-chão, com capital social de MOP25.000,00, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 34162 (SO) (alínea D) dos factos assentes).
O acto constitutivo desta sociedade comercial (quarta ré) foi registado no registo comercial como tendo o Primeiro Réu subscrito uma participação de 10% no respectivo capital social, equivalente a uma quota com o valor nominal de MOP2.500,00 (duas mil e quinhentas patacas) (alínea E) dos factos assentes).
Em 25 de Fevereiro de 2010, o Primeiro Réu e o seu pai, o Terceiro Réu, D, conjuntamente com outros sócios, constituíram a sociedade comercial por quotas denominada F, em chinês F e, em inglês, F, a Quinta Ré, com sede em Macau, na Avenida Sir Anders Ljungstedt, n.º 408, Edifício Dynasty Plaza, rés-do-chão “BA”, com capital social de MOP25.000,00 (vinte e cinco mil patacas), registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 35540 (SO) (alínea F) dos factos assentes).
Também o acto constitutivo desta sociedade comercial (quinta ré) foi registado no registo comercial como tendo o Primeiro Réu subscrito uma participação de 10% no respectivo capital social, equivalente a uma quota com o valor nominal de MOP2.500,00 (duas mil e quinhentas patacas) (alínea G) dos factos assentes).
Embora a Autora soubesse da existência destas sociedades, e das quotas subscritas pelo Primeiro Réu, era este quem se encarregava de tudo quanto àquelas dizia respeito (alínea H) dos factos assentes).
Em Abril de 2012, a Autora e o Primeiro Réu passaram a residir na Rua de Coimbra, Edifício Nova City, Bloco 9, 9º andar “B”, Taipa, em Macau (alínea I) dos factos assentes).
Esta fracção é propriedade da Quarta Ré (alínea J) dos factos assentes).
Por acordos celebrados em 12 de Fevereiro de 2014, o Primeiro Réu declarou ceder as quotas por si tituladas no capital social das Quarta e Quinta Rés, respectivamente, à Segunda Ré e ao Terceiro Réu, seu pai, pelos valores nominais (alínea K) dos factos assentes).
Cessões de quotas essas que foram registadas em 18 de Fevereiro de 2014 junto da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, através das apresentações n.ºs AP. 41/18022014 e AP. 66/18022014, respectivamente (alínea L) dos factos assentes).
A Autora não interveio nos acordos de transmissão daquelas quotas, nem deles teve conhecimento (alínea M) dos factos assentes).
A presente acção deu entrada em juízo no dia 19/08/2014 e foi registada por apresentação de 14/11/2014 (alínea N) dos factos assentes).
O primeiro réu foi citado em 8/10/2014 (alínea O) dos factos assentes).
A Autora nunca consentiu nas cessões de quotas da 4ª e 5ª rés, antes ou depois da efectiva celebração dos respectivos acordos (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
A 2ª e o 3º Réus, aquando da sessão das referidas quotas, sabiam que o 1º Réu era casado com a Autora (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
Em data não apurada entre 26 de Janeiro de 2013 e 12 de Fevereiro de 2014, a Autora e o 1º Réu deixaram de partilhar a casa onde moravam (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
O 1º Réu chegou a dizer à Autora que nenhum dos dois poderia continuar a residir em tal casa porque o proprietário de facto da mesma era o seu pai, o 3º Réu, apesar de a referida casa constar registada em nome da 4ª Ré (resposta aos quesitos 8º e 12º da base instrutória).
As participações sociais tituladas no registo comercial pelo 1º Réu no capital social das 4ª e 5ª Rés foram integralmente realizadas pelo pai do 1º Réu, o 3º Réu, com dinheiro deste, o que é do conhecimento da Autora (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
Provado o que consta da resposta ao quesito 14º (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
*
Está em causa a seguinte sentença de primeira instância:
“Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Na presente acção, a Autora pede que sejam declaradas nulas duas cessões feitas pelo 1º Réu a favor à 2ª Ré e ao 3º Réu respectivamente, que tinham por objecto quotas sociais que o 1º Réu detinha nas 4ª e 5ª Rés, quotas estas alegadamente pertencentes à Autora e ao 1º Réu como bem comum.
Para o efeito, alega que a Autora e o 1º Réu contraíram casamento, em 22 de Janeiro de 2009, no Interior da China, sem convenção antenupcial e, após o casamento, estabeleceram a residência familiar comum em Macau situando-se, a partir de Abril de 2012, esta residência numa fracção autónoma pertencente à 4ª Ré; que, em 31 de Agosto de 2009, o 1º Réu e o seu pai, o 3º Réu constituíram a sociedade comercial por quotas denominada E, a 4ª Ré dos presentes autos, na qual o 1º Réu subscreveu uma participação de 10% no capital social; que, em 25 de Fevereiro de 2010, o 1º Réu e o 3º Réu constituíram a sociedade comercial por quotas denominada F, a 5ª Ré dos presentes autos, na qual o 1º Réu também subscreveu uma participação de 10% no capital social; que as participações no capital social em ambas as referidas sociedades foram realizadas com recurso a fundos comuns da Autora e do 1º Réu; que aquando da constituição das 4ª e 5ª sociedades, o 1º Réu declarou falsamente o seu estado civil, identificando-se como solteiro, o que era do conhecimento do seu pai, o 3º Réu; que, no decurso de 2013, a relação matrimonial entre a Autora e o 1º Réu começou a degradar-se; que, em 12 de Fevereiro de 2014, o 1º Réu cedeu as quotas sociais que detinha nas 4ª e 5ª Rés, respectivamente, à 2ª Ré e ao 3º Réu; que, aquando da transmissão da quota da 4ª Ré para a 2ª Ré, foram também transmitidos os direitos sobre o imóvel onde se encontrava instalada a casa de morada de família do casal; que a Autora nunca interveio no processo de transmissão daquelas quotas nem deu consentimento sobre a cessão, antes ou depois da efectiva celebração dos respectivos acordos.
Segundo a Autora, as cessões feitas pelo 1º Réu são inválidas por faltar o seu consentimento porque estavam em causa bens comuns e, relativamente às quotas da 4ª Ré, porque a cessão implicou a alienação da casa de morada de família da Autora e do 1º Réu.
Contestando a acção, os 1º a 5ª Réu reconhecem certos factos alegados pela Autora mas alegam outros destinados a excepcionar a pretensão da Autora ou a impugnar os demais factos alegados pela Autora.
Para a sua defesa, os Réus sustentam que (1) o direito de impugnar as cessões se encontrava caducado, que (2) as quotas alienadas não eram bens comuns quer por força do regime de bens em que estavam casados a Autora e o 1º Réu quer porque os fundos utilizados para a sua aquisição foram doados pelo 3º Réu ao 1º Réu, que (3) os actos de constituição das 4ª e 5ª Rés eram simulados porque o 1º Réu interviera nos actos constitutivos apenas para facilitar a gestão da actividade comercial do 3º Réu aquando da sua ausência de Macau, que (4), ainda que essas quotas sociais fossem bens comuns, as alienações feitas pelo 1º Réu não careciam de qualquer consentimento da Autora por as quotas sociais em causa serem bens móveis de que o 1º Réu tinha administração.
*
Flui da exposição feita acima que o que interessa apurar nestes autos é: se o 1º Réu
• estava casado com a Autora;
• se, nesse estado, vivia com esta numa fracção autónoma pertencente à 4ª Ré;
• se era titular das quotas sociais acima referidas;
• se dispôs as referidas quotas sociais sem o consentimento da Autora; e
• se podia livremente dispô-las sem este consentimento.
Está assente que a Autora e o 1º Réu celebraram casamento em 22 de Janeiro de 2009 no Interior da China, sem convenção antenupcial, o 1º Réu, no estado de casado com a Autora, chegou a viver com esta numa fracção pertencente à 4ª Ré e era titular das quotas sociais sub judice as quais foram adquiridas respectivamente em 31 de Agosto de 2009 e 25 de Fevereiro de 2010 aquando da constituição das 4ª e 5ª Rés e alienadas pelo 1º Réu a favor dos 2ª e 3º Réus, respectivamente, em 12 de Fevereiro de 2014, sem qualquer consentimento da Autora.
Assim, das questões colocadas no penúltimo parágrafo, resta tão-só saber se o 1º Réu podia fazê-lo.
*
Segundo a Autora, o 1º Réu não podia alienar as quotas sociais sem o seu consentimento porque as quotas sociais eram bens comuns quer por força do regime de bens do casamento dos mesmos, quer porque foram adquiridas com recursos do casal, e ainda porque, no que se refere às quotas sociais da 4ª Ré, a cessão implicou a transmissão de direitos relativos à casa de morada de família.
Cabe, então e antes de mais, indagar:
a) se as quotas sociais alienadas pelo 1º Réu eram bens comuns deste e da Autora:
1. por força do regime de bens do casamento dos mesmos; ou
2. porque foram adquiridas com recursos do casal; e
b) se a cessão da quota social da 4ª Ré consubstancia uma alienação ou oneração da casa de morada de família da Autora e do 1º Réu.
É que, se os bens em questão não forem bens comuns como sustenta a Autora ou se a alienação da quota social da 4ª Ré não se traduzir numa alienação ou oneração da casa de morada de família da Autora e do 1º Réu, não se coloca qualquer questão da falta do consentimento da Autora.
Ora, sobre a questão colocada na alínea a), além dos factos alegados pela Autora, o tribunal terá que ponderar sucessivamente o que foi alegado pelos Réus nos pontos (2) a (4) indicados na página 9 da presente sentença. Só depois de decidir sobre a questão referida em a) e apenas no caso de se concluir que as quotas sociais eram bens comuns de que o 1º Réu não tinha administração é que se debruça sobre o problema da caducidade referido no ponto (1). Com efeito, se for afastada aquela natureza ou concluir que o 1º Réu tinha administração dos bens em questão, nem sequer se equaciona o problema da tempestividade da presente acção por os actos não serem impugnáveis.
Se a pretensão da Autora não proceder por as quotas sociais não serem bens comuns de que o 1º Réu tinha administração ou por estar caducado o direito para a impugnação dos actos de cessão, debruçar-se-á sobre a questão indicada na alínea b) do penúltimo parágrafo. Se se concluir que se está perante uma alienação ou oneração da casa de morada de família da Autora e do 1º Réu, então, há que apurar se está caducado o direito para impugnar o acto de alienação da quota social que o 1º Réu detinha na 4ª Ré.
*
Natureza das quotas sociais
Segue-se, portanto, a análise do problema da natureza das quotas sociais.
Decorre dos factos acima indicados que a Autora e o 1º Réu estavam casados entre si e as quotas sociais alienadas foram adquiridas na constância do casamento. Assim, ser ou não bens comuns dos mesmos depende da existência ou não de um regime de bens ou das regras que definem a titularidade dos bens adquiridos já depois de a Autora e o 1º Réu estarem casados entre si.
Sustenta a Autora que estava casada com o 1º Réu num regime semelhante ao do regime de comunhão de adquiridos porque à questão é aplicável a lei do Interior da China.
De acordo com os factos assentes, o casamento teve lugar no Interior da China e a Autora e o 1º Réu, nesta data, residiam em Macau tendo, após o casamento, aqui fixado a sua residência familiar. Além disso, resulta dos dados pessoais da Autora e do 1º Réu constantes da petição inicial que ambos são de nacionalidade chinesa e titulares de bilhete de identidade de residente de Macau.
Perante esses dados, a solução da questão a analisar nesta parte da sentença pressupõe a identificação da lei competente para reger o regime de bens ou para definir a titularidade dos bens adquiridos durante a constância do casamento da Autora e do 1º Réu. Com efeito, está-se perante um caso em conexão com mais de um ordenamento jurídico: o ordenamento jurídico do Interior da China e o da Região Administrativa Especial de Macau.
*
A ser competente o do Interior da China, serão aplicáveis as normas dos artigos 17º a 19º da Lei do Casamento da República Popular da China que têm a seguinte redacção:
17º
“夫妻在婚姻關係存續期間所得的下列財產,歸夫妻共同所有:  (一)工資、獎金;(二)生產、經營的收益;(三)知識產權的收益;(四)繼承或贈與所得的財產,但本法第十八條第三項規定的除外;(五)其他應當歸共同所有的財產。夫妻對共同所有的財產,有平等的處理權”
18º
“有下列情形之一的,為夫妻一方的財產:(一)一方的婚前財產;(二)一方因身體受到傷害獲得的醫療費、殘疾人生活補助費等費用;(三)遺囑或贈與合同中確定只歸夫或妻一方的財產;(四)一方專用的生活用品;(五)其他應當歸一方的財產。”
19º
“夫妻可以約定婚姻關係存續期間所得的財產以及婚前財產歸各自所有、共同所有或部分各自所有、部分共同所有。約定應當採用書面形式。沒有約定或約定不明確的,適用本法第十七條、第十八條的規定。夫妻對婚姻關係存續期間所得的財產以及婚前財產的約定,對雙方具有約束力。夫妻對婚姻關係存續期間所得的財產約定歸各自所有的,夫或妻一方對外所負的債務,第三人知道該約定的,以夫或妻一方所有的財產清償。”
Se for a lei de Macau aplicável ao presente caso, o artigo 1579º do CC determina que “Na falta de convenção antenupcial, ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção, o casamento considera-se celebrado sob o regime da participação nos adquiridos.”
A disciplina do regime de comparticipação nos adquiridos consta dos artigos 1581º a 1600º do CC.
*
Do teor dessas normas vê-se que todas elas têm por objecto regular a substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens legal, ou convencional.
Ora, preceitua o artigo 51º do CC que “1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento. 2. Não tendo os nubentes a mesma residência habitual, é aplicável a lei da primeira residência conjugal. 3. Se a lei aplicável for outra que não a de Macau e um dos nubentes tiver a sua residência habitual no território de Macau, pode ser convencionado um dos regimes admitidos neste Código.”
Nos termos do artigo 30º, nºs 2 e 3, do CC, “2. Considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal. 3. Para efeitos dos números anteriores, a residência habitual em Macau não depende de qualquer formalidade administrativa, mas presume-se residente habitual no território de Macau aquele que tenha direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau.”
*
Como foi já referido, a Autora e o 1º Réu são titulares de bilhete de identidade de residente de Macau. Apesar disso, não se pode presumir que os mesmos, à data do casamento, tinham residência habitual comum em Macau porque nada indica que eram então titulares de bilhete de identidade de residente de Macau.
Está provado que a Autora e o 1º Réu, à data do casamento, residiam em Macau e fixaram residência conjugal em Macau depois do casamento. Nada indica que as partes tinham outra residência senão em Macau. O facto de o casamento ter sido celebrado no Interior da China não faz presumir que as mesmas lá residiam muito menos habitualmente.
Assim, em princípio, é de concluir que a Autora e o 1º Réu tinham residência habitual comum em Macau sendo, portanto, a lei de Macau a competente para definir o regime de bens dos mesmos.
Mesmo que assim não se entenda, não há dúvidas de que Macau era a primeira residência conjugal da Autora e do 1º Réu. Por essa via, também é a lei de Macau a competente para reger essa matéria.
Está demonstrado que a Autora e o 1º Réu celebraram o casamento sem qualquer convenção antenupcial. Assim, o regime de bens a que os mesmos estão sujeitos é o da comparticipação nos adquiridos.
*
Dispõe o artigo 1582º do CC, “1. No regime da participação nos adquiridos cada um dos cônjuges tem o domínio e fruição, tanto dos bens que lhe pertenciam à data da celebração do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens, como dos que adquiriu posteriormente por qualquer título, podendo, salvas as excepções previstas na lei, dispor deles livremente. 2. Aquando da cessação do regime da participação nos adquiridos, e com vista a igualar o acréscimo patrimonial obtido por cada um dos cônjuges durante a vigência do regime de bens, é atribuído ao cônjuge cujo acréscimo patrimonial for menor o direito de participar pela metade na diferença entre o valor do acréscimo do património do outro cônjuge e o valor do acréscimo do seu próprio património, designando-se tal direito por crédito na participação. 3. Para efeitos da determinação do acréscimo patrimonial de cada cônjuge, referido no número anterior, só são contabilizados os bens ou valores que nos termos dos artigos seguintes sejam integrados no respectivo património em participação. 4. É nula qualquer estipulação dos cônjuges que altere a fracção referida no n.º 2. 5. Os bens de cada cônjuge são considerados próprios independentemente de comporem ou não o respectivo património em participação.”
Resulta dessa norma que nenhum dos cônjuges adquire automaticamente direitos sobre os bens adquiridos pelo outro cônjuge durante a constância do casamento. Portanto, contrariamente aos regimes de comunhão, nesse regime de bens não existem bens comuns.
A isso acresce que o titular dos bens pode livremente dispor destes bens enquanto bens próprios, ou seja, sem necessidade de consentimento do outro cônjuge, excepto apenas nos casos previstos na lei, como é o caso de disposição da casa de morada de família.
Portanto, nesse regime de bens, o estado de casado, em princípio, não traz qualquer alteração ao património dos cônjuges nem limita os poderes de disposição dos bens que integram o seu património.
Além disso, como decorre claramente do disposto no artigo 1582º, nºs 2 e 3, do CC acima transcritos, apenas aquando da extinção do casamento é que o regime verdadeiramente produz efeitos obrigando os cônjuges ou quem os substituir a determinar os direitos que lhes assistem em virtude de terem estados ligados pelo casamento, direitos estes que se cingem ao valor correspondente a metade do valor acumulado do acréscimo patrimonial verificado durante a vigência do casamento.
Segundo o Coordenador do projecto, Luís Miguel Urbano, na apresentação feita sobre o regime da comparticipação nos adquiridos na Nota de Abertura do Código Civil “De forma necessariamente tosca, poderíamos dizer que esse regime – no modelo adoptado – basicamente se limita a operar uma mistura, aplicada a duas fases distintas, entre, por um lado, o regime da separação de bens e, por outro, o regime da comunhão de adquiridos.
Assim, numa primeira fase (durante a vigência do casamento, ou mais correctamente durante a vigência desse regime de bens) segue-se basicamente o modelo do regime da separação de bens, pelo que cada um dos cônjuges tem, relativamente ao património que leve para o casamento ou adquira posteriormente, quer a título oneroso, quer a título gratuito, o poder de livremente o gerir e alienar, sem necessidade de qualquer consentimento por parte do outro cônjuge.
Apenas que numa segunda fase (aquando da dissolução do casamento por morte ou divórcio, ou da eventual modificação do regime de bens durante a vigência do casamento – ou seja, no momento que à falta de melhor termo designaríamos por dissolução ou «partilha») procede-se, grosso modo, a uma avaliação do património que cada um dos cônjuges haja adquirido onerosamente na vigência desse regime de bens e que nele permaneça integrado nessa data, para que se determine qual o cônjuge que obteve um maior enriquecimento e se proceda à compensação – normalmente de cariz pecuniário – do outro cônjuge, de modo a que se obtenha uma igualação do valor dos acréscimos patrimoniais derivados do casamento.”
É, portanto, destituído de qualquer fundamento qualificar as quotas sociais sub judice como bens comuns apesar de adquiridos já depois da celebração do casamento da Autora e do 1º Réu.
Também o é a pretensão de limitar o poder de disposição que o 1º Réu tinha sobre esses bens. É que, mesmo aquando da extinção do casamento, momento em que o regime de bens supletivo produz os seus efeitos, como foi referido, o cônjuge titular dos bens não perde o poder de livremente dispor dos seus bens visto que o que eventualmente fica sujeito é tão-só o dever de pagar ao seu ex-cônjuge o valor correspondente ao crédito na participação deste.
*
Não sendo bens comuns da Autora e do 1º Réu, estará, ainda assim, o 1º Réu proibido de os alienar sem o consentimento da Autora porque foram adquiridos com recursos do casal?
Nesse cenário, a questão que se coloca é o de a Autora e o 1º Réu serem co-titulares das mesmas e, como tal, o 1º Réu não poder ter feito a alienação da totalidade das quotas desacompanhado da Autora em violação do princípio nemo plus júris in alium transfere potest quam ipse habet.
Porém, a Autora não logrou demonstrar o por si alegado de que as quotas sociais foram adquiridas com fundos pertencentes ao casal. Antes, está provado que as quotas sociais em questão foram realizadas pelo 3º Réu com dinheiro deste, facto de que a Autora não ignora.
Portanto, nem por essa via se pode defender que a Autora tinha que participar nas cessões feitas pelo 1º Réu, consentindo, autorizando ou declarando cedê-las, ainda que na qualidade de co-titular.
*
Na página 11 da presente sentença foi referido que a questão da natureza das quotas sociais tem que ser analisada tendo também em conta a invocada simulação dos negócios que levaram à aquisição das quotas sociais por parte do 1º Réu. Foi assim dito porque, a serem simulados tais negócios e, portanto, nulos, o 1º Réu não terá adquirido as citadas quotas sociais e, como tal, nunca tais quotas sociais terão sido bens comuns do casal.
Trata-se, como é bom de ver, de uma excepção arguida pelos Réus para afastar a pretensão da Autora de considerar tais bens como bens comuns. Ora, afastada essa qualificação nos termos acima consignados, em princípio é destituído de interesse analisar essa questão.
Porém, por estar em causa um vício que a lei comina com a sanção da nulidade a qual é de conhecimento oficioso, terá o tribunal indagar se tais negócios eram simulados.
Os Réus alegaram factos para demonstrar a simulação dos citados negócios, designadamente, o de o 1º Réu nunca ter tido intenção de ser sócio das 4ª e 5ª Rés sendo o 3º Réu o único verdadeiro sócio das mesmas.
Feito o julgamento da matéria de facto, os Réus apenas lograram demonstrar que as participações sociais tituladas no registo comercial pelo 1º Réu no capital social das 4ª e 5ª Rés foram integralmente realizadas pelo 3º Réu, com dinheiro deste, o que é do conhecimento da Autora.
Como é bom de ver, é manifestamente insuficiente para concluir pela existência de qualquer vício nos referidos negócios.
*
Na página 9 da presente sentença foi referido que os Réus entendiam que, mesmos que as quotas sociais fossem bens comuns, as alienações feitas pelo 1º Réu não careciam de qualquer consentimento da Autora por se estar perante bens móveis de que o 1º Réu tinha administração.
Uma vez que mais acima se entendeu que as quotas sociais não eram bens comuns, fica destituído de interesse debruçar-se sobre essa questão levantada pelos Réus.
*
Os Réus também excepcionaram a pretensão da Autora com fundamento na caducidade do direito de impugnação.
Mais acima na página 11 da presente sentença foi já dito que essa questão só seria apreciada se se concluísse que as quotas sociais eram bens comuns. Ora, afastada essa natureza, fica precludida a necessidade de se debruçar sobre a excepção da caducidade.
*
Alienação ou oneração da casa de morada de família
Segundo a Autora, a alienação da quota social da 4ª Ré traduz-se numa transmissão dos relativos à casa de morada de família da Autora e do 1º Réu visto que a 4ª Ré é a proprietária da fracção autónoma onde aqueles viviam juntos.
Na perspectiva da Autora, por está em causa a casa de morada de família, a validade da cessão da quota social da 4ª Ré dependia do seu consentimento nos termos do artigo 1548º, nº 2, do CC.
Nos termos desse preceito, “A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges.”
*
Trata-se, como é bom de ver, de uma excepção à regra da livre disponibilidade no âmbito da comparticipação nos adquiridos acima referida. Além disso, por ser uma norma que disciplina a relação patrimonial dos cônjuges que nada tem a ver com os regimes de bens, é uma norma que integra o estatuto matrimonial patrimonial primário subsumível no conceito quadro do artigo 50º do CC.
Segundo essa última norma, “1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum. 2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.”
Uma vez que a Autora e o 1º Réu residem em Macau, são titulares do bilhete de identidade de residente de Macau e não há qualquer indicação de que os mesmos têm outra residência, os mesmos, para os efeitos aqui em análise, têm residência habitual comum em Macau.
Assim, essa norma é aplicável ao presente caso porque a lei de Macau é a competente para reger as relações entre a Autora e o 1º Réu, enquanto cônjuges.
*
Está apurado que a Autora e o 1º Réu, já casados entre si, passaram a residir numa fracção autónoma pertencente à 4ª Ré a partir de Abril de 2012. Ou seja, tinham a casa de morada de família nessa fracção autónoma. Também está provado que o 1º Réu cedeu a quota social que tinha na 4ª Ré à 2ª Ré.
Carece a alienação feita pelo 1º Réu do consentimento da Autora?
Julga-se que não.
É que, a norma do artigo 1548º do CC tem por objecto a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família. Ou seja, o acto tem que incidir directamente sobre a casa de morada de família fazendo limitar ou até extinguir os direitos que os cônjuges tinham sobre a casa de morada de família.
Ora, o acto praticado pelo 1º Réu consiste na alienação das quotas e nada indica que este acto tem alguma implicação directa nos eventuais direitos que a Autora e/ou o 1º Réu pudesse/pudessem ter sobre a fracção autónoma. É que, nada demonstra a existência de qualquer relação entre a Autora e/ou o 1º Réu, por um lado, e a 4ª Ré, por outro lado, relativamente à fracção autónoma: arrendamento, comodato ainda que por força da qualidade de sócio do 1º Réu, etc., que permita concluir que a alienação da quota social fez sair da esfera jurídica do 1º Réu ou da Autora ou de ambos um qualquer direito que pudesse/pudessem ter sobre a fracção autónoma.
Assim, não é possível concluir que a cessão consubstanciou numa alienação, oneração ou constituição de direitos sobre a casa de morada de família da Autora e do 1º Réu.
*
Os Réus também excepcionaram a pretensão da Autora alegando a caducidade do direito de impugnação.
Mais acima nas páginas 11 e 12 da presente sentença foi referido que essa questão só é apreciada se se concluir que a cessão da quota social da 4ª Ré consistiu numa alienação ou oneração da casa de morada de família da Autora e do 1º Réu. Ora, afastada essa qualificação, fica precludida a necessidade de se debruçar sobre a excepção da caducidade.
*
Pedidos da Autora
Com fundamento na falta do seu consentimento, pede a Autora que as cessões das quotas da 4ª e 5ª Rés feitas pelo 1º Réu sejam anuladas e os respectivos registos comerciais canceladas.
Flui da análise acima feita que os fundamentos invocados pela Autora não podem proceder. Pois, aí conclui-se que nem as quotas sociais eram bens comuns nem a cessão da quota social da 4ª Ré implicava a alienação ou oneração de eventuais direitos que a Autora e/ou o 1º Ré tinha/tinham sobre a fracção autónoma onde estava a sua casa de família, razão por que as cessões impugnadas não careciam do consentimento da Autora.
Assim, os pedidos formulados pela Autora não podem deixar de improceder.”
Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada douta decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução para o caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito doutrinária constante da sentença recorrida, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631º, nº 5 do CPC.
Apenas mais umas asserções.
Entende a recorrente que, quanto ao regime de bens, deveria ser aplicada a norma prevista no artigo 49º do Código Civil, que tem o seguinte teor:
“1. A forma do casamento é regulada pela lei do lugar em que o acto é celebrado, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
     2. O casamento de dois estrangeiros em Macau pode ser celebrado segundo a forma prescrita na lei nacional de qualquer dos contraentes, perante os respectivos agentes consulares.”
Salvo o devido respeito por opinião contrária, julgamos não lhe assistir qualquer razão, na medida em que a referida disposição legal apenas regula a forma do casamento, nada dispondo sobre o regime de bens do casamento.
*
Em boa verdade, o facto de a recorrente ter apresentado agora, em sede de recurso, o seu BIRM no qual consta que a data de sua primeira emissão é no dia 10 de Junho de 2013, não releva para a apreciação do recurso.
Ora bem, estatui o artigo 51º do Código Civil que a lei competente para reger a matéria do regime de bens do casamento é a lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento, não tendo eles a mesma residência habitual, é aplicável a lei de primeira residência conjugal.
Por sua vez, de acordo com o disposto no artigo 30º do mesmo diploma legal, a residência habitual é o lugar onde o individuo tem o centro efectivo e estável da sua pessoal, e para tal efeito, não depende de qualquer formalidade administrativa, mas presumindo-se residente habitual em Macau aquele que tenha direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau.
Seguramente, da matéria alegada pela recorrente não consta o facto de que ela era (ou não) titular do bilhete de identidade de residente de Macau nem de qual tenha sido a data da primeira emissão desse bilhete, daí que não se pode extrair a presunção de que a mesma tinha o estatuto legal de residente de Macau.
E mesmo que tenha sido alegado e provado que a recorrente só a partir de determinada altura é que passou a ser titular do bilhete de identidade de residente de Macau, isso não significa necessariamente que antes dessa data ela não podia ter aqui o centro efectivo e estável da sua vida pessoal.
No caso vertente, ficou assente que a recorrente e o 1º Réu, à data do casamento, residiam em Macau e fixaram residência conjugal em Macau depois do casamento, e nada indica que os mesmos tinham outra residência senão em Macau, pelo que se pode concluir que a recorrente e o 1º Réu tinham residência habitual em Macau, sendo, portanto, como vem referido na sentença recorrida, a lei de Macau a competente para definir o regime de bens dos mesmos. Mesmo que assim não se entenda, é também a lei de Macau a competente para reger essa matéria, por ser Macau a primeira residência conjugal da recorrente e do 1º Réu.
*
Em consequência, sendo o regime de bens supletivo o regime da participação nos adquiridos, cada um dos cônjuges tem o domínio e fruição, tanto dos bens que lhe pertenciam à data da celebração do casamento, como dos que adquiriu posteriormente a qualquer título, conforme se preceitua no nº 1 do artigo 1582º do Código Civil.
Aliás, da matéria provada resulta que as quotas sociais não foram adquiridas com fundos pertencentes ao casal, mas sim foram realizadas pelo 3º Réu com dinheiro deste.
Com efeito, não sendo as quotas sociais bens comuns, não é necessário o consentimento da recorrente para a sua alienação.
*
Vem ainda a recorrente defender a aplicação do disposto no artigo 1548º do Código Civil, que dispõe o seguinte:
“1. Carece do consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração, locação ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis ou empresa comercial comuns, sem prejuízo do disposto na lei comercial.
     2. A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges.”
Para já, não sendo as quotas sociais bens comuns do casal, inaplicável seria o disposto no nº 1.
Mas será que a respectiva quota social pode configurar-se como um direito de gozo sobre a casa de morada da família? Salvo o devido respeito por melhor opinião, julgamos que a resposta não deixa de ser negativa.
Em boa verdade, a quota social de um cônjuge numa sociedade comercial é um direito que a lei equipara a um bem móvel, sendo aplicável o regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado, nos termos consagrados no nº 2 do artigo 196º do Código Civil.
Conforme dito na sentença recorrida, e bem, a norma do artigo 1548º do CC tem por objecto a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família, o mesmo é dizer que o acto tem que incidir directamente sobre a casa de morada da família fazendo limitar ou até extinguir os direitos que os cônjuges tinham sobre essa casa, e nada nos autos permita concluir que a alienação da quota social fez sair da esfera jurídica do 1º Réu ou da recorrente ou de ambos um qualquer direito que pudesse ter sobre a fracção autónoma.
Desta sorte, improcedendo as razões invocadas pela recorrente, há-de negar provimento ao recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela Autora ora recorrente A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
***
RAEM, 27 de Abril de 2017
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Joao A. G. Gil de Oliveira



Recurso Cível 875/2016 Página 31