Proc. nº 76/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 25 de Maio de 2017
Descritores:
-Conflito negativo de competência
-Providência cautelar
-Identidade de causa de pedir
SUMÁRIO:
I. A providência cautelar, dado o seu carácter instrumental, é dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado.
II. Entre a providência e a acção de que aquela depende não tem que haver identidade de pedidos e em relação à causa de pedir a identidade não tem que ser total.
III. A propositura de uma acção especial de exame à sociedade, prevista no art. 1262º e sgs. do CPC, tendo em vista o seu objectivo e as diligências e providências que o juiz pode determinar, pode funcionar como causa principal em relação ao procedimento cautelar comum, para efeito do disposto no art. 328º, nºs 1 e 3 do CPC e, consequentemente, para efeito da atribuição da competência para o conhecimento deste.
Proc. nº 76/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
Sob iniciativa do Ministério Público, vem suscitado o conflito negativo de competência entre o juiz titular do procedimento cautelar comum a que coube o nº CV2-16-0010-CPV, do 2º Juízo Cível, e o Juiz do 3º Juízo cível, ambos do TJB.
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Foram colhidos os vistos legais, após o parecer do digno Magistrado do MP, que opinou no sentido de que a competência pertence ao juiz titular da causa principal registada sob o nº CV3-16-0098-CPE, a correr no 3º juízo cível.
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Cumpre decidir.
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II - Os factos
1 - Em 22/06/2016, deu entrada na secretaria do TJB, um Procedimento Cautelar Comum, o qual foi registado sob o nº CV2-16-0010-CPV, do 2º Juízo Cível do TJB.
2 - Por despacho de 31/10/2016 o Juiz titular do processo no 2º Juízo Cível determinou a remessa dos autos ao 3º juízo através do seguinte despacho: “Remeta os presentes autos de procedimento cautelar para apensação à causa principal de que de que são dependentes”.
3 - Por despacho de 04/11/2016 o Juiz do 3º Juízo julgou-se incompetente para a sua apreciação, ordenando a devolução dos autos 2º Juízo Cível do TJB.
4 - Este despacho transitou em julgado em 21/11/2016.
5 - O teor do despacho referido em 3. apresenta o seguinte teor:
“ (…)
Da falta de relação entre o procedimento cautelar e a acção principal.
A presente PC foi apensada a um processo de exame à sociedade. A questão está em saber se existe a imposta relação de instrumentalidade entre a PC e a dita acção.
Vejamos.
Dispõe o art. 328 nº 1 CPC que “o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva”.
É certo que não tem que verificar-se identidade de pedidos, numa e noutra acção.
Como se refere no Ac TRC de 19.12.92 (BMJ 414, 646) “não tem que existir uma perfeita coincidência entre os pedidos formulados no procedimento cautelar e na acção principal”. Todavia ti deve existir coincidência de partes e de causa de pedir”.
De B, (obra citada pago 146) retira-se, a propósito, a seguinte citação: “Embora não se pressuponha na acção e no procedimento cautelar uma total identidade dos direitos que se pretendem tutelar, nem tão pouco se exija a alegação do mesmo circunstancialismo fáctico integrador da causa de pedir na acção definitiva e nos fundamentos da providência solicitada) a função instrumental que a lei atribui aos procedimentos não é compatível com um total divórcio entre os respectivos objectos. A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos. que o facto que serve de fundamento à providência integre a causa de pedir da acção principal ”.
Revertendo-nos ao caso vertente.
Como sabemos o exame à sociedade (acção principal) é a forma adjectivamente consagrada com vista à tutela do acesso à informação e documentação societária por parte dos sócios.
Todavia não é isso, denodadamente, que se pretende acautelar na presente PC, ou seja, não se pretende que se imponha cautelarmente o acesso a informação societária. Nada disto é pedido, nada disso resulta do seu objecto consequencial.
O que deriva do objecto da PC, essencialmente do seu pedido, é que a requerente pretende a proibição da actuação da A Ldª, pretende limitar o exercício do respectivo objecto societário e por alegadamente recear prejuízos (tem medo que os veículos continuem a ser vendidos e com o consequente descaminhamento do produto da venda - cfr. o resumo do pretendido e articulado no artº 90 da pi), tudo isto apesar de, aqui e ali, se ir inconsequentemente falando que não lhe é facultada informação.
Temos, pois, por certo, que o corpo declarado da PC e lido à luz do seu pedido (como deve ser) aponta noutro sentido que não da instrumentalidade da mesma com uma acção de exame à sociedade.
De resto, cremos que se poderá inclusivamente referir (apesar de ainda não se conhecer o teor factual concreto da acção por falta de tradução) que a requerente, também administradora da C Ldª, em face do alegado e dos documentos juntos, das duas uma: Primo - ou não tem acesso efectivo à informação pretendida porque não quer; Secundo - ou não tem porque está impedida de facto a aceder à mesma, nomeadamente por acção de terceiro.
Naquele caso não se justifica qualquer PC ou acção, desde logo por falta de interesse em agir. Cabe no quadro dos seus poderes de administradora o direito a aceder a qualquer tipo de informação societária, sendo a interessada administradora sócia ou não sócia.
Na segunda hipótese, que cremos ser a configurada pela requerente, teria a requerente de conformar um pedido adequado para obter cautelarmente a efectividade de funções, em concreto estribando-se no disposto no artº 215 do CCom e configurando como acção principal a prevista no artº 1271 do C.P.C., sendo que, com base neste processo, visto o teor da p.i., a acção estaria bem conformada subjectivamente porque direccionada contra quem alegadamente lhe impede o exercício das suas funções na sociedade referida.
Como quer que seja, o que em concreto temos é uma PC que não joga instrumentalmente com o exame à sociedade (a nossa acção), esta exigindo que, no procedimento, além da invocação do não acesso à informação, um pedido que desse corpo e consequência a essa negação, ou seja, o acesso cautelar à informação alegadamente sonegada.
Qual a consequência da conclusão que se deixa?
Sem prejuízo da supra decisão de absolvição da instância a consequência é a remessa da presente PC para o primitivo juízo e para que aí seja realizada a competente audiência final, ficando a PC dependente de outra acção principal a introduzir pela requerente e que com ela instrumentalmente se relacione.
A consequência é a competência, que nos foi deferida por via da apensação e ao abrigo do artº 328 nº3 do CPC, ficar “órfã” de pressuposto factual que a sustente, donde se nos impor a nossa declaração de incompetência.
Custas pela requerente.
Notifique.
Após trânsito remeta os presentes a autos ao Juízo remetente”.
6 - Por despacho de 14/12/2016 o Mmo Juiz do 2º Juízo julgou-se igualmente incompetente “para conhecer do presente procedimento cautelar”, considerando que tal competência cabia ao 3º Juízo TJB.
7 – Este despacho tem o seguinte conteúdo:
“Dispõe o art. 328º do CPC que “o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado...” (nº 1) e dispõe ainda que “requerido antes da proposição da acção, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada; e se a acção for proposta ou vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa” (nº 3).
Decorre do normativo referido que, depois de interposta a acção respectiva, a competência para apreciar e decidir os procedimentos cautelares só cabe ao juiz competente para apreciar e decidir a acção a que o procedimento cautelar respeita, nenhum outro podendo fazê-lo, por lhe faltar competência para tanto.
Como saber se um procedimento cautelar “pertence” a uma acção por ser dependente desta? Se na acção se pretender exercer o mesmo direito que no procedimento cautelar se afirma como ameaçado e ao qual se pretende assegurar efectividade. Quando no procedimento cautelar se pretende assegurar a efectividade de um direito e na acção se prende exercer esse mesmo direito. Portanto, quando se pretende tutelar pela via judicial o mesmo direito, acautelando-o provisoriamente num lado e exercendo-o em definitivo no outro.
Para saber qual o direito que o requerente/autor pretende acautelar e qual o que pretende exercer tem de procurar-se qual o direito que invoca como ameaçado e qual o que invoca como violado, ou que invoca para ser declarado ou para ser constituído ou modificado, consoante a espécie de acção seja de condenação, de simples apreciação ou constitutiva (“causa que tenha por fundamento o direito acautelado”, diz-se no referido art. 328º). Mas para aferir a identidade dos direitos não releva saber se a medida cautelar pedida em concreto é possível, adequada ou eficaz, nem se o exercício concreto que se pretende fazer é admissível, pois que isso já é questão do mérito do procedimento e da acção. Não deve, pois, para além do meramente indiciário, atender-se ao pedido, mas à causa de pedir, a qual, entre outros, encerra os factos constitutivos do direito invocado como ameaçado e como violado. Na verdade, por mero exemplo, o pedido de arrolamento prévio ao divórcio nada tem a ver com o pedido de divórcio e o pedido de condenação no pagamento de uma obrigação nada tem a ver com o pedido de arresto. São as causas de pedir e não os pedidos que têm uma ligação no mesmo direito que funda a pretensão cautelar e a pretensão definitiva. De facto, o pedido de condenação do réu a pagar “X” pode ter por base uma situação jurídica de empréstimo ou de responsabilidade civil, sendo essa situação jurídica que revela qual o direito que se pretende exercer com igual pedido. E um pedido de arresto pode visar acautelar um direito de crédito e não outro idêntico direito de crédito do mesmo credor, pelo que só a factualidade relativa ao concreto crédito a acautelar o pode identificar, mas já não o pedido de arresto.
Vejamos o caso em apreço.
Analisado o requerimento inicial do presente procedimento cautelar e a petição inicial da acção que corre termos neste tribunal sob o nº CV3- 16-0098-CPE, a qual nos foi verbalmente traduzida pela srª tradutora da secção de processos, crê-se que é o mesmo o direito que se pretende acautelar e exercer e para o qual se reclama tutela cautelar e definitiva: o direito geral corporativo ou social do sócio a contribuir para a definição dos destinos da sociedade comercial que ele próprio integra com vista à obtenção de lucros e pressupondo a necessária informação e votação/deliberação destinada à formação da vontade social (não visassem as sociedades a contribuição para o exercício em comum de uma actividade económica destinada a criar riqueza - art. 184º do CC). O direito à participação social, portanto. Um “feixe de direitos vários”, na expressão de Ferrer Correia. Na verdade, quer no requerimento inicial do procedimento cautelar quer na petição inicial da acção, alega-se que os requeridos, como sócios (na acção, arts. 7º a 9º da PI, diz-se que os requeridos são apenas formalmente sócios, sendo efectivamente sócio D) e administradores de uma sociedade de que a requerente é sócia (C, Limitada), praticam actos em prejuízo desta sociedade comercial e para lá dos seus poderes de administração (arts. 6º, 38º e 43º do requerimento inicial do procedimento e arts. 12º,42º e 47º da petição inicial), além de que prejudicam a referida sociedade comercial em benefício de outras sociedades de que são sócios e que são fornecedoras daquela, ocultaram informação e dinheiro proveniente da venda de bens de comércio da C, Limitada (veículos automóveis).
Também a própria requerente conclui que é o mesmo direito que necessita de tutela cautelar e definitiva, quer ao ter pedido a apensação dos processos, quer nos arts. 83º do requerimento do procedimento cautelar e 93º da petição inicial, que têm o mesmo teor, ao dizer que os requeridos a impediram de exercer os seus direitos enquanto sócia (note-se a epígrafe do capítulo XXIII do título XV do Livro V do CPC onde se insere a acção especial de exame à sociedade - “exercício de direitos sociais”). É pois o referido direito de participação social que a requerente pretende acautelar no procedimento cautelar, proibindo-se os requeridos de continuar a praticar as alegadas irregularidades prejudiciais que contendem com aquele direito de participar na condução da vida da sociedade e criando-se-lhes obstáculo a isso mesmo. E é também o mesmo direito que a autora pretende exercer na acção especial de exame à sociedade que interpôs, pois com esta visa auditar a alegada actividade irregular dos requeridos e saber do paradeiro de dinheiros alegadamente “desviados”, não se podendo esquecer que se trata de jurisdição voluntária não apenas destinada a exercer o direito do sócio à informação, como acontece no inquérito judicial à sociedade, mas destinada a apurar irregularidades e a regularizá-las (art. 211º, nº 5 do CComercial e art. 1267º, nº 1 do CPC).
Analisado o requerimento inicial do presente procedimento cautelar e a petição inicial da acção especial de exame à sociedade que corre termos neste tribunal sob o nº CV3-16-0098-CPE, conclui-se que a [actualidade cuja prática irregular é atribuída aos requeridos é essencialmente a mesma (com ligeiras alterações relativas à venda ou à ocultação de veículos automóveis e à identificação de alguns deles - Mercedes Benz, aos elementos de informação pedidos pela requerente e omitidos pelos requeridos), assim como é a mesma privação do exercício do mesmo direito de participar nos destinos da mesma sociedade comercial que fundamenta o pedido para que seja decretada uma determinada providência cautelar e para que seja feito exame à sociedade. Assim, conclui-se também que o direito que se pretende acautelar no presente procedimento é o mesmo que se pretende exercer na acção especial de exame à sociedade que a requerente intentou, sendo esse direito que fundamenta essa acção especial.
Ora, o critério atribuidor de competência para apreciar e decidir o procedimento cautelar depois de interposta a acção de que aquele é dependente reside, como se viu, no facto de o procedimento e a acção terem, ou não terem, o mesmo direito como fundamento, pelo que a competência para conhecer do presente procedimento, nos termos do disposto no art. 328º do CPC, pertence ao juiz titular da referida acção especial.
Assim sendo, como se julga que é, e, nunca é demais referi-lo, sem prejuízo do respeito que merecem as opiniões alheias, especialmente quando são diferentes e ressalvado o respeito devido, que é muito e merecido, e a consideração, que é a mais elevada, não se concorda com o douto despacho de fls. 210 a 212 na parte que tange à competência.
Por tudo que fica exposto profere-se a presente declaração de incompetência para continuar a conhecer do presente procedimento cautelar por para tanto ser competente o Exmº juiz titular dos autos que correm termos neste tribunal sob o nº CV3-16-0098-CPE.
Notifique e, após trânsito, abra vista ao Ministério Público a fim de suscitar a resolução do conflito de competência”.
8 – O digno Magistrado do MP, em 7/04/2017, nesta instância, emitiu o seguinte parecer:
“Nos seus despachos (vide. fls.37 a 42 e 45 a 49 dos autos), ambos os MMºs. Juízes declararam incompetentes para conhecer e decidir do procedimento cautelar comum registado sob o n.º CV2-16-0010-CPV que tinha sido distribuído ao MMº Juiz do 2º Juízo Civil do TJB.
Procedendo à leitura atenciosa dos dois despachos, extraímos que a única questão essencial consiste em saber se o sobredito procedimento cautelar comum reúne o pressuposto de ser apensado à acção de exame à sociedade registada sob o n.º CV3-16-0098-CPE.
Ora bem, a solução desta questão depende, em primeiro lugar, da interpretação do n.º 1 do art. 328º do CPC, segmento legal que prescreve: O procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva.
Antes de mais, perfilhamos a prudente jurisprudência emanada pelo RC no seu acórdão de 19/02/1992 que assevera “as questões a debater no procedimento cautelar e na acção da qual aquele é dependente são as mesmas e, embora não tenha que coincidir os pedidos formulados num e na outra, têm que coincidir as partes e as causas de pedir.” (citada por Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Código de Processo Civil de Macau - Anotado e Comentado, Volume II, Faculdade de Direito da Universidade de Macau 2008, p.326)
Na petição inicial da acção de exame à sociedade, designadamente no art. 92º desta peça, a Autora declarou pretender o exercício do direito à informação consignado na alínea c) do n.º 1 do art. 195º e no art. 209º do Cód. Comercial, a fim de apurar se o capital investido por si, como sócia maioritária, na sociedade requerida tenha sido devidamente aproveitado?
Com todo o respeito pela melhor opinião diferente, parece-nos que no Requerimento Inicial do procedimento cautelar comum supra aludido, a requerente alegou, na essencialidade, os mesmos factos que na petição da mencionada acção de exame à sociedade. O que nos deixa a impressão de se verificar a coincidência da causa de pedir entre aquele e esta.
Na nossa modesta opinião, os pedidos do procedimento cautelar comum visam, dum lado, a acautelar a exactidão das informações às quais a requerente pretendeu exercer o seu direito por via da dita acção e, de outro, a evitar a agravação da irregularidade e anormalidade na vida da sociedade requerida. Daí decorre que são instrumentais tais pedidos.
Bem, resta referir que é ponto líquido e assente que as duas partes processuais são as mesmas. Pois, a requerente do procedimento cautelar é a autora da acção, e os três requeridos do mesmo procedimento vêem configurados como réus da mesma acção.
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Nesta linha de ponderação, e à luz do preceituado nos n.º l e n.º 3 do art. 328º do CPC, afigura-se-nos que o referido procedimento cautelar comum é dependência da acção de exame à sociedade n.º CV3-16-0098-CPE e deve ser apensado a esta, e compete ao MMº Juiz titular da acção conhecer e decidir daquele procedimento.”
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III – Decidindo
1 – Os dados estão lançados: quem é competente para fazer tramitar e conhecer a providência cautelar comum requerida por “E Limited”?
Será o juiz titular do 2º juízo do Tribunal Judicial de Base onde a providência deu entrada sob o nº CV2-16-0010-CPV?
Ou -----
O juiz titular da acção distribuída no 3º juízo do mesmo tribunal sob o nº CV3-16-0098-CPE, também intentada pela mesma requerente?
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À partida, damos conta, desde logo, de uma situação plurisubjectiva de quatro ângulos:
“E Limitada”, sociedade registada em Hong Kong, é sócia maioritária, com 75% do capital, da sociedade macaense designada “C Limitada”, e de que fazem parte também os sócios F e G.
“C Limitada” seria a sociedade que em Macau venderia, em condição de exclusividade, veículos automóveis da marca “H”.
Mas, acontece que a requerente da providência traz ao processo uma grande preocupação que, a ser verdadeira, decerto pode tombar para a revelação de um ilícito de natureza criminal.
De acordo com as suas palavras, os sócios de Macau - F e G - parece estarem a gerir e explorar a empresa “C Limitada” de forma lesiva dos seus (requerente) interesses, por:
- Indiciariamente misturarem despesas da empresa com as de outras empresas de que eles – F e G - também são sócios (repercutindo os custos sociais dessas empresas nos custos desta sociedade);
- Não fornecerem recibos de despesas;
- Não darem justificação para a não contabilização das receitas provenientes das vendas de alguns veículos daquela marca “H”;
- Não ser possível, por falta de explicação e de conhecimento dos elementos sociais por parte da requerente, ficar a saber o que aconteceu a outros veículos que aparentemente estão desaparecidos (escondidos?).
Mas, para se bem se perspectivar a finalidade da providência, nada melhor do que dar uma mirada no pedido formulado na providência, e que é o seguinte:
- Seja proibida a venda, a promessa de venda, a troca ou a disposição de forma qualquer dos veículos "H" listados nos artios 64º e 69º do presente requerimento inicial pelos Requeridos individualmente na qualidade de administrador da C, Limitada;
- Oficie à Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis para que se recuse efectuar o registo da propriedade que incide sobre os veículos “H” listados nos artigos64º e 69 do presente requerimento inicial e vendidos pelos Requeridos individualmente na qualidade de administrador da C, Limitada;
- Seja proibida a disposição ou movimentação das contas bancárias da C, Limitada pelos requeridos individualmente na qualidade de administrador da C, Limitada;
- Sejam proibidos os actos de disposição dos bens pertencentes à C, Limitada pelos requeridos individualmente na qualidade de administrador da C, Limitada;
- Oficie à PSP de Macau com vista a apurar a posição dos veículos “H” listados nos artigos 64º e 69º do presente requerimento inicial, depois, seja informado do Tribunal sobre o resultado respectivo; e
- Após tal conhecimento da posição de tais veículos, seja nomeado I(masculino, morada de contacto em Macau, Av. XX XX, XXº andar, sala XX) para ter a custódia temporária dos referidos veículos.
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Antes de se prosseguir, importa esclarecer que a espécie processual a que corresponde a distribuição CV3-16-0098-CPE é a “acção especial” de exame à sociedade, prevista no art. 1262º e sgs. do CPC e não, note-se bem, a acção especial de “exame à escrita” prevista no art. 879º do CPC.
Esta diferença pode passar despercebida, mas tem o seu “quid” de relevante no quadro da decisão que ora se nos pede. É que, numa primeira impressão, podíamos ser levados a pensar que a motivação da requerente da providência, caracterizada por uma alegada situação de desconhecimento das contas da empresa de que é sócia, a “C, Limitada”, face à atitude dos outros sócios, melhor caberia naquela espécie processual.
Contudo, se olharmos bem para os elementos típicos de cada uma delas, chegaremos à conclusão de que a acção intentada tem um escopo mais amplo e atinge bem melhor o desiderato eleito pela autora/ora requerente.
Com efeito, e tal como relatado, o caso não é apenas de desconhecimento da escrita e das contas, mas igualmente o de uma imputação social concreta e contrária aos interesses da requerente por parte dos requeridos F e G, traduzida, nomeadamente, no desaparecimento de alguns “H” e na ocultação de valores (receitas) de vendas de outros veículos e até desvio de verbas resultantes de algumas dessas vendas em benefício pessoal desses sócios e, por conseguinte, em prejuízo da requerente.
A acção em apreço tem por missão, pois, e como facilmente se adivinha, trazer à luz do dia aquilo que parece estar escondido ou sonegado e expor com transparência a actividade social da empresa em todos os seus contornos e não apenas com um fito de análise à escrita. Ou seja, o que pretende a autora com aquela acção especial de exame à sociedade é mais do que um exame à escrita; é averiguar, em toda a dimensão possível, eventual e aparente acção ilícita e irregular dos dois sócios de Macau.
E se nos dermos ao cuidado de atentar nas possibilidades abertas por este tipo de acção verificamos que ela serve bem os desígnios da requerente. Em particular, registamos os seguintes normativos:
- Art. 1264º do CPC – que consagra a ampliação do objecto do exame, para além do exame aos bens e livros e documentos da sociedade, ainda que estejam em posse de terceiros, tal como previsto no art. 1263º, nº2, al. a), do CPC;
- Art. 1265º do CPC – que estabelece a possibilidade de outras providências cautelares tidas por “convenientes” pelo juiz como garantia dos interesses da sociedade e dos sócios e dos credores sociais;
- Art. 1267º do CPC – que prevê ainda que o juiz ordene providências indicadas na lei comercial, desde que tal lhe seja requerido.
O que evidenciam estas disposições?
Quanto a nós, e sempre no respeito por diferente juízo, como é claro, reflectem a ideia de que esta acção mostra ser, porque outra com melhor fim não parece haver in casu, a causa principal adequada à protecção definitiva do direito que cautelar e provisoriamente quer ver tutelada. Ou seja, a acção escolhida aponta para servir de amparo, protecção e escudo ao direito alegadamente existente na esfera da interessada requerente e aparentemente ameaçado.
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Se isto é assim, então estamos convencidos de que a providência e a acção referida estão bem uma para a outra.
Ou seja, a providência escolhida caberá bem no âmbito do art. 326º do CPC e o interesse da requerente funda-se num direito que decorre da sua posição de sócio, e que é o de conhecer o funcionamento da pessoa colectiva a que pertence e o de travar os procedimentos lesivos que os restantes estão a levar a cabo.
Neste sentido, a dependência à referida acção, tal como a implica o nº1, do art. 328º do CPC, não apresenta aqui qualquer obstáculo. O direito aqui acautelado está bem projectado na missão definidora do direito a reconhecer na acção.
Não cabem aqui, portanto, as dificuldades que tenham que ver com a igualdade das causas de pedir, embora – reconheçamo-lo - esta questão não seja isenta de todas as dúvidas, porque escapa ao modelo mais generalizado de protecção cautelar no quadro da sua dependência em relação a uma acção principal. Quer dizer, na medida em que a acção, a ser procedente, revelará a escrita, as informações necessárias à compreensão do modo como a sociedade está ser administrada pelos sócios de Macau, nomeadamente a respeito da alegada sonegação de informação, desvio de bens e da eventual dissipação de receitas (produto das vendas) em proveito próprio daqueles dois sócios, então ela mostra-se crucial.
Quer dizer, se o tribunal da acção der razão ao autor, no sentido da realização do “exame à sociedade” (repetimos, não é simplesmente um “exame à escrita”, nem sequer uma “prestação de contas”), então estará a reconhecer em definitivo que esse direito lhe pertence, enquanto membro social, tudo fazendo para que ele seja efectivo e eficaz, nomeadamente ordenando e realizando as diligências e providências que julgar pertinentes, tal como já dito mais atrás. Ao menos, não se duvida que o facto que serve de fundamento à providência integra a causa de pedir da acção principal, o que já é suficiente para fundar a dependência de uma à outra (neste sentido, B, Temas da Reforma do Processo Civil, III, pág. 146).
Não há uma completa identidade de causa de pedir? Pois não. Mas também não é preciso; necessário é que o direito a acautelar tenha alguma correspondência de fundo com a solução definitiva ao ponto de se reconhecer nela uma compatibilidade útil e relevante (reconhecendo que não é precisa uma identidade total entre pedidos ver, v.g., Ac. STJ, de 1/03/2007, Proc. nº 07A4669; e sobre a desnecessidade de uma total identidade de causa de pedir, ver José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., pág. 17).
E, se bem nos parece, não se crê sequer despiciendo acrescentar que nem será até imprescindível que o tribunal tenha que fazer um prévio juízo sobre essa identidade de causas. O tribunal da acção receberá a providência porque assim o manda o art. 328º, nº1, do CPC. Essa ligação aparente entre a cautela e a certeza do direito fica desse modo assegurada. Se de todo essa dependência não existir – o que o juiz da acção terá que apurar através de um juízo posterior – por os pedidos e causas de pedir estarem de tal ordem afastados e em tamanha dessintonia, então a questão não nos parece que deva ser resolvida por uma decisão adjectiva e formal de incompetência jurisdicional, mas sim por uma decisão relacionada com a substância e o mérito do caso.
Cumpre-nos, então, concluir que, por apenso à acção aludida, a competência para a providência deverá, salvo melhor opinião, pertencer ao 3º juízo.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em resolver o conflito instalado, conferindo a competência para a tramitação e conhecimento da providência cautelar ao 3º juízo do TJB por apenso aos autos de acção especial ali distribuída sob o nº CV3-16-0098-CPE.
Sem custas.
TSI, 25 de Maio de 2017
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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